Parece impossível mas é verdade

Nestes tempos de crise, é difícil evitarmos um sentimento de frustração quando vemos a Assembleia da República em regime de conta-gotas, e entretanto a Língua Portuguesa a ser massacrada diariamente nos rodapés da televisão, com tantos “infetados” (curiosamente, continuam a ser “infectados” quando as notícias chegam do Brasil).

Parece impossível, mas é verdade: a ILC-AO foi entregue na Assembleia da República há mais de um ano. Propositadamente, não assinalámos esse aniversário, no passado dia 10 de Abril. Não é uma efeméride que valha a pena celebrar.

Porém, frustração não tem de ser sinónimo de impotência. Quando a vida nos dá limões podemos sempre fazer limonada — e foi o que fizemos. Enquanto o Parlamento se delonga em Orçamentos de Estado e outros debates avulsos, enquanto a pandemia adia tudo o que não é (ou não parece ser…) essencial, enquanto resistimos apesar de tudo, podemos, pelo menos, aproveitar este tempo para estudar e assim dar um rebate radical para o debate sobre o nosso Projecto de Lei.

Há dúvidas sobre a conformidade da ILC-AO à luz da Constituição? Aí vai mais um parecer, desta feita da autoria do Professor José Lucas Cardoso (Universidade Lusíada de Lisboa/IPL).

Note-se que este parecer é apenas mais um. José Lucas Cardoso junta-se a nomes como José de Faria Costa ou Francisco Ferreira de Almeida, subscrevendo o entendimento destes e de muitos outros juristas. Mas, por outro lado, tal como outros antes dele, também José Lucas Cardoso nos trouxe algo de novo, validando a ILC sob diferentes perspectivas e questionando até a competência de outra instância que não o próprio Plenário para decidir da admissibilidade do nosso Projecto de Lei.

Esperamos que este parecer, que de imediato enviámos a todos os deputados com assento nas 1ª e 12ª Comissões Permanentes, possa contribuir para dissipar todas as dúvidas e, em especial, contribuir para um mais rápido agendamento do debate e votação da ILC-AO em plenário.

É tempo de começarmos a pôr cobro ao desnorte ortográfico instalado no país. Se é verdade que nunca é tarde para corrigir um erro, também é certo que quanto mais depressa virarmos a página do AO90, melhor. É tempo de os nossos deputados perceberem que o Projecto de Lei 1195/XIII pode ser a oportunidade perfeita para concretizarem esse objectivo.

Parecer

  1. A consulta

A comissão representativa dos cidadãos subscritores da petição pela revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de Julho, que aprova o acordo referente ao Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa solicita o nosso parecer sobre a admissibilidade constitucional da Assembleia da República revogar sponte sua uma resolução que aprova um acordo internacional, considerando a repartição constitucional de competências entre os órgãos de soberania.

A questão controvertida foi suscitada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, nomeado relator no procedimento, quando, no decurso da respectiva fase de apreciação, se pronunciou pela “existência de dificuldades, ou pelo menos legítimas dúvidas constitucionais, relativamente à iniciativa da Assembleia da República, sem a intervenção prévia do Governo, no uso dos seus poderes constitucionais exclusivos em matéria de relações e direito internacional”. O Sr. Deputado Pedro Cegonho sugere, em suma, neste contexto, que a reserva de competência governamental para “negociar e ajustar convenções internacionais” (artigo 197.º, n.º 1, b), CRP) obsta a qualquer impulso de outro órgão de soberania, ou mesmo do povo soberano, para adopção dos actos subsequentes no procedimento de vinculação, ou desvinculação, do Estado português a tratados e acordos internacionais.

  1. O parecer

Sobre esta questão, verificamos que a Assembleia da República vem agora invocar uma alegada inconstitucionalidade procedimental-formal, que não sendo impeditiva da vinculação do Estado português (cfr. artigo 277.º, n.º 2, CRP), pela mesma ordem de argumentos em que o Sr. Deputado Pedro Cegonho se louva, i. é, a desvinculação há-de obedecer aos requisitos exigidos para a vinculação [1], também não será impeditiva da respectiva desvinculação, quando foi a própria Assembleia da República que durante quase três décadas não se dignou exercer a sua competência de fiscalização (artigo 162.º, a), CRP) no que concerne as várias incondicionalidades materiais de que padece o Acordo Ortográfico, essas sim preclusivas da vinculação do Estado português.

Com efeito, como nós próprios demonstrámos em escrito anterior, o Acordo Ortográfico padece de inconstitucional por violação do (i) direito de usar a língua portuguesa (artigo 11.º, n.º 3, CRP), por colisão com o (ii) princípio da neutralidade do Estado na esfera cultural (artigo 42.º, n.º 3, CRP) e ainda por arrepiar ao cumprimento das (iii) tarefas do Estado no que concerne à protecção e à valorização do acervo cultural do povo português (artigos 9.º, e), 1.ª parte, 9.º, f), 2.ª e 3.ª partes, e 78.º, n.º 2, c), todos da CRP)[2]. As inconstitucionalidades em apreço revestem a natureza jurídica de inconstitucionalidades materiais que obstam inequivocamente, essas sim, a que um tratado ou acordo internacional produza efeitos na ordem jurídica portuguesa (cfr. novamente artigo 277.º, n.º 2, CRP).

Ora, considerando as inconstitucionalidades em apreço, no caso da Assembleia da República considerar, pela maioria constitucionalmente definida para as deliberações em plenário, corresponder ao interesse público a revogação da Resolução n.º 35/2008 não estará a agir no exercício de uma competência política activa strictu-sensu de vinculação internacional do Estado português (cfr. artigo 161.º, i), CRP) mas, ao invés, no exercício da competência de fiscalização que a habilita a vigiar pelo cumprimento da Constituição (cfr. artigo 162.º, a), CRP).

Assim sendo, se em preceito algum do texto constitucional encontrávamos suporte para a conclusão indiciária avançada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, segundo a qual a Assembleia da República estaria dependente de uma proposta de outro órgão de soberania, o Governo, para exercer a sua competência política strictu-sensu, por argumento à fortiori não é possível fazer depender a competência parlamentar de fiscalização de uma iniciativa do órgão fiscalizado, na medida em que uma solução com esse teor redundaria na insusceptibilidade de exercício da mesma competência pelo órgão de controlo e, segundo uma conhecida expressão, converteria o artigo 162.º, a), da CRP, em papel de embrulho por impedir ao órgão do controlo o exercício cabal das suas competências.

Além disso, ainda que consideramos não estar o Acordo Ortográfico eivado das várias inconstitucionalidades materiais que exigem da Assembleia da República o exercício da sua competência de fiscalização e que, desse modo, a Assembleia da República estaria a agir no exercício de uma competência política activa tendente à revogação tout court da Resolução n.º 35/2008, não procede a conclusão indiciária avançada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, pelos seguintes motivos.

Com efeito, embora a Constituição da República Portuguesa estabeleça como competência política do Governo, entre outras as de “negociar e ajustar convenções internacionais” (artigo 197.º, n.º 1, b)) e exista uma praxis em sede de cooperação institucional de propulsão pelo Governo da aprovação parlamentar dos tratados e ainda dos acordos internacionais mencionados no artigo 161.º, i) da CRP, nada obsta, em termos do texto e do espírito da Constituição, a que a Assembleia da República possa vincular, sponte sua, o Estado português a convenções internacionais que estejam abertas, a nível internacional, a adesão pelos Estados e que, portanto, o Governo português não haja participado na respectiva negociação. Cai assim por terra, salvo o devido respeito, o argumento invocado pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho quanto à necessidade de observar no procedimento de desvinculação a tramitação devida para o procedimento de vinculação.

Além disso, o princípio do Estado de Direito impõe aos órgãos de soberania o dever de “observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição” (artigo 111.º, n.º 1). Ora, se a mesma Constituição confere à Assembleia da República a competência para aprovar tratados e acordos internacionais (artigo 161.º, i)), nada obsta a que este órgão de soberania exerça as suas competências por iniciativa dos deputados, ou como acontece no presente caso, dos cidadãos. Apesar do preceito mencionar a possibilidade do Governo propor à Assembleia da República a aprovação de tratados e acordos internacionais, não o menciona em termos de reserva de iniciativa, como acontece v.g. no que concerne à legitimidade para desencadear a aprovação dos Estatutos da Regiões Autónomas e das leis relativas à eleição dos deputados às respectivas Assembleias Legislativas (cfr. artigo 226.º) ou das propostas de legislação ou de referendo que “envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento” (cfr. artigo 167.º, n.º 2). Assim sendo, o Governo deve circunscrever-se neste contexto aos mecanismos de interdependência expressamente previstos na própria Constituição, sob pena de estar a subverter o princípio da separação de poderes, enquanto sub-princípio concretizador do princípio do Estado de Direito[3].

Ainda neste contexto, o princípio democrático impõe não apenas que aos órgãos de soberania seja reconhecida a possibilidade de exercerem as competências que a Lei Fundamental lhes confere como também a possibilidade de o fazerem sem interferências externas, isto é, por iniciativa dos seus próprios membros, pelo que arrepia também ao princípio democrático que a lei ou os regimentos consagrarem reservas de iniciativa externas, bloqueantes da decisão dos órgãos de soberania, para além dos casos e dos termos expressamente previstos na própria Constituição.

Ainda que assim não se entendesse e aceitássemos a conclusão indiciária avançada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, isso não seria motivo para arquivamento puro e simples da iniciativa legislativa dos cidadãos em curso mas apenas para que a Assembleia da República solicitasse ao Governo a apresentação de uma proposta de resolução sobre o assunto, ao abrigo do dever de cooperação institucional[4] entre os órgãos de soberania, decorrente do mencionado princípio da separação e a interdependência de poderes.

Advertimos ainda para um último aspecto, orgânico e procedimental, sobre a decisão de admissibilidade da iniciativa legislativa dos cidadãos em curso. Qualquer decisão sobre a admissibilidade de uma iniciativa legislativa dos cidadãos, assim como de petição apresentada por cidadãos à Assembleia da República nos termos gerais, sobretudo como a decisão sobre a constitucionalidade da mesma, nos termos em que é suscitada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, carece de ser adoptada pelo plenário da Assembleia da República e apenas o plenário tem legitimidade para o efeito, nunca o Presidente da Assembleia da República.

Com efeito, a Constituição da República Portuguesa distingue a competência da Assembleia da República (artigo 161.º e ss.) da competência do Presidente da Assembleia da República (artigo 176.º) e seja qual for a competência que a Assembleia da República invoque para decidir da admissibilidade da iniciativa em apreço, política strictu-sensu ou de fiscalização, são em ambos os casos competências reconhecidas pela Lei Fundamental à Assembleia e não ao seu Presidente.

Serão, deste modo, inconstitucionais as normas legais (artigo 8.º, n.º 1, b), da Lei da iniciativa legislativa dos cidadãos) e regimentais (artigo 125.º, n.º 1, do RegAR) que conferem uma putativa competência ao Presidente da Assembleia da República para realizar o auto-controlo da juridicidade dos projectos e propostas, pelo que não poderá o Sr. Presidente da Assembleia da República invocar uma norma de competência que é, ela própria, inconstitucional para apreciar uma alegada inconstitucionalidade no diploma que lhe é presente para efeitos de admissão, devendo remeter ex officio a decisão para o plenário da Assembleia da República.

Salvo melhor, é este o nosso parecer,

José António Martins Lucas Cardoso[1] Cfr. parecer do Sr. Deputado Pedro Cegonho, p. 6, in fine.
[2] Cfr. JOSÉ LUCAS CARDOSO, A dimensão cultural do EstadoContributo para uma análise do núcleo cultural da Constituição da República Portuguesa, Coimbra, 2013, inédito, p. 655 e ss.
[3] Subscrevemos assim a conclusão avançada por FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA no parecer que apresentou no âmbito do procedimento de apreciação parlamentar da iniciativa legislativa dos cidadãos em curso.
[4] Sobre este assunto, cfr. PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, vol. II – Organização do poder político, Coimbra, Livraria Almedina, 2010, p. 21 e ss.

Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2020/05/20/parece-impossivel-mas-e-verdade/

“Onde estão os outros países?” (Nuno Pacheco, PÚBLICO, 14.05.2020)

Público_14Mai2020

Façam à língua o mesmo que ao euro: igual na face, mas reversos diferentes

O único acordo admissível é reconhecer as variantes nacionais e fixá-las como partes de um corpo comum, o da língua portuguesa.

Como pedra lançada num lago, o Dia da Língua não cessa de produzir ondulações. Há dias, chegou-nos a mensagem que, a tal propósito, difundiu o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo. Disse ele: “A experiência humana não se narra num idioma global asséptico, invertebrado. Narra-se nas línguas específicas. Em cada qual a humanidade se articula em formas diferentes. Em cada língua há coisas que somente nela se podem dizer.” Pois. Já o primeiro-ministro português, António Costa, dissera à agência Lusa: “O português tem uma característica importante, tem-se sabido adaptar a diferentes territórios onde tem evoluído. […] Hoje é uma língua que pertence a muito mais pessoas no Mundo do que só a nós portugueses e isso traduz-se em formas diversas de escrever.” Impossível não pensar num dos poemas que o modernista brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) incluiu no seu livro “Pau Brasil” (1925): “Para dizerem milho dizem mio/ Para melhor dizem mió/ Para peor pió/ Para telha dizem têia/ Para telhado dizem teado/ E vão fazendo telhados.” (“Vicio na fala”, pág. 33).

Porquê? Porque dizem “telhados”, mas fazem “teados”. Uma atitude coerente com declarações como estas seria olhar para a língua portuguesa como um património comum, sim, mas com pleno direito às suas diferenças: orais, vocabulares e ortográficas. E não insistir num acordo ortográfico moribundo que a ninguém aproveita. Um bom exemplo foi-nos dado pela moeda única europeia, o euro. Cada moeda de 1 euro tem o mesmíssimo valor e a mesma imagem numa das faces; mas na outra são todas diferentes, reflectindo cada qual o seu país. Assim podia ser a língua portuguesa: com o mesmo valor para cada uma das suas variantes nacionais, mas reservando cada qual os seus traços específicos, aplicáveis nos respectivos países. A insistência num acordo ortográfico que ignora tais diferenças, fingindo que não existem, já não fazia sentido em 1945 nem em 1990, mas hoje é cada vez mais obsoleta.

Um pequeno exemplo, retirado do inglês: escrevamos no programa de texto Word as palavras britânicas colour, centre, grey, mould, plough, theatre, traveller e as suas variantes americanas color, center, gray, mold, plow, theater e traveler. Se as sujeitarmos ao corrector ortográfico do Reino Unido, vemos que ele só valida as primeiras. Idem, com os correctores ortográficos (são 16, ao todo) da África do Sul, Austrália, Belize, Caribe, Hong Kong, Irlanda, Jamaica, Malásia, Nova Zelândia, Singapura, Zimbabwe e Trinidad e Tobago — aceitando, apenas esta última, o uso de dupla grafia em plow/plough. O corrector dos Estados Unidos só “chumba” as variantes britânicas colour, centre, mould e traveller, admitindo como aceitáveis as grafias das restantes; o das Filipinas idem, embora rejeitando a grafia theatre; e o Canadá aceita todas as variantes.

O que sucede no nosso idioma? Mesmo com o acordo “unificador”, há no programa Word duas variantes no corrector ortográfico: “Portuguese (Portugal)” e “Portuguese (Brazil)”. Onde estão os outros países? Optam, que remédio, por uma ou outra! Quem ousa falar em “colonialismo” a propósito da rejeição do acordo, devia reflectir nisto. Porque “colonialismo” é o que o acordo ortográfico veio reforçar, ao pretender impor uma norma “universal” que afinal… são duas.

De modo ínvio, o dito Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) acolhe vocabulários nacionais (cada um com a sua bandeirinha), mas para os despejar num “saco” comum que é uma misturada inqualificável. Feito com critério, o que não sucedeu no VOC (como já aqui se demonstrou), essa poderia ser uma base para a fixação das variantes nacionais e o seu uso posterior nos correctores de texto, trabalho que não dispensaria um dicionário normativo comum (que até hoje não existe), consagrando nele todas as variantes, mas indicando explicitamente a sua etimologia e os países onde se aplicam.

Recorrendo a dois paladinos do acordo ortográfico, Evanildo Bechara disse em 2014 no Congresso Nacional Brasileiro: “O problema educacional da ortografia, do ensino da língua escrita, não se prende rigorosamente à ortografia, prende-se ao bom ensino de língua, a um desenvolvimento pedagógico (…). As mais complicadas são a inglesa e a francesa, e sabemos que o índice cultural desses dois países mostra que não é por uma reforma ortográfica que o índice cultural de um país vai melhorar”; e João Malaca Casteleiro afirmou ao PÚBLICO, no ano seguinte, 2015, que “se não houvesse esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na ortografia: os ingleses não mexem há muito tempo na deles, porque não tem sido preciso”.

Aqui, têm razão. O único pressuposto errado é a “necessidade de um acordo com o Brasil”. Porque o único acordo admissível é reconhecer as variantes nacionais e fixá-las como partes de um corpo comum, o da língua portuguesa. Que se tenha feito o inverso, não espanta; e há até no Parlamento uma iniciativa legislativa de cidadãos para corrigir esse acto abusivo. Mas porquê, ainda hoje, insistir nesta indescritível e tão inútil pantomina?

nuno.pacheco@publico.pt

Nota: transcrição integral de artigo publicado na edição de quinta-feira, 14 de Maio de 2020.

Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2020/05/15/onde-estao-os-outros-paises-nuno-pacheco-publico-14-05-2020/

“O vírus” (Pacheco Pereira, PÚBLICO, 09.05.2020)

Nota Prévia: o texto que se segue é a transcrição integral de um artigo de José Pacheco Pereira no PÚBLICO de ontem.

Entre os vários exemplos que enuncia, o autor refere as nossas bancas recolha de assinaturas contra o Acordo. Esta Iniciativa Legislativa já foi entregue na Assembleia da República. Ora, precisamente por já ter sido entregue, mais assinaturas são desnecessárias; a  respectiva “nota de admissibilidade” já foi emitida .

Em alternativa à recolha de assinaturas, e considerando que a ILC está neste momento a aguardar o agendamento para debate e votação em Plenário, permitimo-nos sugerir aos leitores de José Pacheco Pereira, aos subscritores da ILC e a todos quantos amam a Língua Portuguesa, que identifiquem o “vosso” deputado na Assembleia da República — eleito com o vosso voto pelo círculo eleitoral onde residem — e lhe escrevam, chamando a sua atenção para a importância do debate que se avizinha. No sítio do parlamento encontrarão facilmente, junto de perfil de cada deputado, o respectivo formulário de contacto.

Nas palavras de José Pacheco Pereira, a Língua Portuguesa precisa de nós.


O vírus que atacou a língua portuguesa

José Pacheco Pereira

 

“No tempo do Getúlio (Brasil) e de Salazar (Portugal) foram feitos acordos que não prevaleceram, porque, na realidade, quem faz a língua não são as academias, nem os governos. Quem faz a língua é o povo.”
Carlos Heitor Cony

Tenho à minha frente uma série de jornais e de outras publicações do Brasil, de Angola, de Cabo Verde, de Moçambique, da Guiné, de Macau e de Timor. São actuais e nenhum respeita o Acordo Ortográfico. Se acrescentar a esses jornais e publicações mais uma série oriunda de Portugal, ou explicitamente recusam o Acordo, ou misturam artigos escritos nas duas línguas, o “acordês” e o português. Já não ponho livros em cima da mesa, romances, poemas, ensaios, porque quanto mais conhecido e criativo é o autor, menos usa o “acordês”.

Por detrás destas publicações está uma série de acordos diplomáticos que, ou estão a ser ilegalmente aplicados, ou foram ratificados e metidos na gaveta, com explícitas declarações de que são para meter na gaveta, ou, por fim, não foram aprovados pelos países que deveriam tê-los incorporado na legislação nacional. Como monumental falhanço diplomático, é um caso exemplar. O problema nem sequer é esse: é que, como falhanço cultural, é uma desgraça, mas, vindo de quem vem, é previsível.

A razão é muito simples: a língua é uma coisa viva, e o “acordês” é uma língua morta. Foi ferida por um vírus pior nos seus efeitos sociais e culturais do que o coronavírus, e é mantida moribunda por duas forças infelizmente poderosas nos nossos dias: a inércia e a arrogância de não querer perder a face e admitir o erro. E não adianta virem dizer-me que língua e ortografia são coisas diferentes e que a ortografia é uma convenção, e que há muitos precedentes de acordos. Há, mas nenhum como este, nem no tempo deste.

A ortografia é uma espécie de impressão digital da língua, faz parte da sua identidade e qualidade cultural. Transporta a sua memória e a sua história, as suas raízes nas línguas que foram a sua origem e que a fazem comunicar com as outras línguas com o mesmo tronco latino. E, como ser vivo, a língua e a sua ortografia evoluem todos os dias, traduzindo o dinamismo dos povos e das sociedades onde é falada e escrita. O tragicamente ardido Museu da Língua, em S. Paulo, traduzia esse dinamismo com a enorme vitalidade do português do Brasil, incorporando no vocabulário milhares de novas palavras oriundas de outras línguas trazidas pela emigração ou pelos tempos modernos. Não foi por acaso que este museu foi feito pelo Brasil, com a sua única e excepcional homenagem à língua portuguesa, enquanto por cá ninguém sequer aproveitou a oportunidade da sua desaparição para fazer um museu à língua cá, nem sequer pediu aos brasileiros que fizessem uma réplica cá, com a adaptação necessária. Não, em vez disso, continuamos a manter um Acordo que estraga a nossa língua e que é imposto administrativamente nas escolas e no Estado, para ainda mais afundar a nossa cultura, em tempos de ignorância agressiva.

É por ter lido com indignação um artigo publicado no PÚBLICO por quatro ministros autoglorificando-se pelo que têm feito pela língua portuguesa, numa altura em que toda a gente sabe que tem havido um considerável recuo da presença do português de Portugal por tudo quanto é universidade estrangeira, escola, instituição paga pelos contribuintes como o Instituto Camões, que escrevo. E se a situação não é pior, deve-se ao Brasil. Mas o que mais me encanita é o estarem muito contentes pela “dignificação” da língua portuguesa, quando eles próprios e os seus antecessores do PS e do PSD, desde 1990, são os principais responsáveis por a manter menos digna, menos própria, menos lavada, menos forte, menos saudável, doente.

É uma causa quixotesca? Não, não é. Há muita coisa que ainda não se fez. Faça-se como o lóbi das armas nos EUA (eu sei, péssimo exemplo, mas de lóbis percebem eles…) e, quando houver uma eleição, pergunta-se ao candidato, seja autárquico, seja legislativo, qual a sua posição. Depois ajuda-se por todos os meios os que explicitamente são contra o Acordo, de modo a criar um caucus (que vem do latim e do grego) na Assembleia e noutras instituições para fazer recuar o uso do Acordo e criar condições para acabar com ele, ou com a sua aplicação imposta, sorrateira e maliciosa.

Eu não desisto, porque há ainda muita coisa a fazer contra o Acordo. Angarie-se algum dinheiro, e há quem esteja disposto a dá-lo, seja mais, seja uma contribuição de um euro, façam-se anúncios de página inteira nos jornais, coloquem-se outdoors nas ruas, peça-se a escritores, criativos, artistas, cientistas, que escrevam uma frase em defesa da nossa língua ou façam um desenho, um grafismo, uma história aos quadradinhos, façam-se bancas nas ruas para recolha de assinaturas com a presença das muitas pessoas conhecidas e de prestígio que ainda escrevem português, faça-se uma associação de defesa da língua portuguesa ou dinamize-se uma que já exista, exija-se direito de antena e pressionem-se os órgãos de comunicação a darem voz a estes críticos da degradação da língua e da cultura.

A língua portuguesa precisa de nós. E não se esqueçam deste facto: o Acordo é impopular.

Historiador


Nota: transcrição integral de artigo publicado na edição de sábado, 9 de Maio de 2020. Destaques e “links” nossos. Cópia a partir de PDF. Edição em papel (online) AQUI.

Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2020/05/10/o-virus-pacheco-pereira-publico-09-05-2020/

Ortografia em tempos de crise

No passado dia 3 de Março a Comissão de Cultura e Comunicação da Assembleia da República decidiu… nada decidir sobre o Projecto de Lei 1195/XIII/4ª.

Insistindo numa dúvida que julgámos já estar debelada, a Comissão de Cultura remeteu a questão para a 1ª Comissão (Assuntos Constitucionais), à qual solicitou um parecer sobre uma possível inconstitucionalidade desta Iniciativa Legislativa.

Desta vez, pelo menos, este novo parecer prometia ser rápido. No dia 11 de Março, volvidos apenas oito dias sobre o pedido da Comissão de Cultura, já a 1ª Comissão nomeava o deputado-relator encarregado de elaborar este novo relatório — foi designado, para o efeito, o deputado Pedro Delgado Alves, do Partido Socialista.

À rapidez da nomeação somava-se a rapidez dos diversos passos decorrentes: segundo nos foi comunicado pela Divisão de Apoio às Comissões, o parecer sobre a constitucionalidade da ILC-AO deveria estar pronto no prazo de uma semana, para de imediato ser remetido à 12ª Comissão — que, para todos os efeitos, continua a ser a Comissão competente para a apreciação desta Iniciativa Legislativa. Pelas nossas contas, devíamos ter tido notícias no passado dia 18 de Março.

Claro que, para não variar, alguma coisa tinha de acontecer. Desta vez, aconteceu o coronavírus. Há que reconhecer: entre os muitos percalços que esta Iniciativa Legislativa já enfrentou, nunca nos tinha calhado uma pandemia.

Ao longo desta luta já nos confrontámos, muitas vezes, com a estranha ordem de prioridades da nossa sociedade e dos nossos órgãos de soberania. Seja em campanhas eleitorais, seja em discursos “10 de Junho”, seja em debates sobre o Estado da Nação, muitas vezes nos interrogámos: será “isto” mais importante do que a Língua Portuguesa?

Desta vez, convenhamos, não se trata de um simples “percalço”. Desta vez, como é evidente, e por todas as razões, é de toda a conveniência ultrapassarmos, antes de mais, o actual momento de crise. Inclusivamente, no próprio interesse da Língua Portuguesa. O Projecto de Lei que apresentámos à Assembleia da República implica um debate sereno e responsável e uma disponibilidade que não existe nestes dias de grande aflição.

Também para a ILC-AO este é, agora, um tempo de resistência. Nada a que não estejamos já habituados — mesmo sem coronavírus. Para que tenhamos uma ideia, a deliberação que a Comissão de Cultura (não) tomou no dia 3 de Março começou a ser preparada no dia 3 de Novembro do ano passado. Um prazo de trinta dias passou a quatro meses, graças a “percalços” como a aprovação do Orçamento de Estado ou o debate sobre a eutanásia.

Antes disso, numa luta que já vai longa, já tivemos o desemprego, a troika, a crise económica, a cimeira do clima e o assalto ao paiol de Tancos, entre outros assuntos igualmente únicos, de semelhante gravidade, intensidade e densidade política.

Em rigor, a Ortografia raramente é um tema oportuno. Quando se estabelecem prioridades, tudo tem precedência sobre o tema “chato” que é o Acordo Ortográfico. É compreensível… afinal, trata-se apenas da Língua Portuguesa. Trata-se apenas do nosso amor-próprio enquanto povo. Por alguma razão estamos a poucos dias de se completar um ano (!) sobre a entrega da ILC-AO no Parlamento.

A verdade é esta: para a Ortografia, o estado de crise não é de agora. Já nos habituámos há muito a vivê-lo como permanente. O coronavírus é só mais uma etapa a ultrapassar.

Numa luta que já vai longa, uma das primeiras lições — e uma das mais importantes — foi a que nos ensinou a resistir. Sempre.


Portal das Comissões Parlamentares

Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2020/03/27/ortografia-em-tempos-de-crise/

Quando [um] parecer não basta

No passado dia 3 de Março, em reunião ordinária da Comissão de Cultura e Comunicação, foi finalmente aprovado o parecer daquela Comissão sobre o Projecto de Lei 1195/XIII, promovido por esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos. O documento foi aprovado com os votos favoráveis do PS, BE e PSD e com o voto contra do PCP. O CDS-PP e o PAN estiveram ausentes no momento da votação.

Quando dizemos “finalmente”, referimo-nos apenas ao atraso com que esta votação decorreu. A Lei determina que a aprovação deste documento seja levada a cabo em trinta dias — um prazo que, para esta ILC, está a contar desde 12 de Novembro do ano passado, mesmo se descontarmos os 30 dias da discussão do Orçamento do Estado.

Quanto ao documento propriamente dito, a expressão mais adequada para o qualificar será “infelizmente”.

Com efeito, o parecer aprovado pela 12ª Comissão confirmou os nossos piores receios: nos termos desse relatório, a Comissão de Cultura (ou, pelo menos, os partidos que o votaram favoravelmente) persiste na (absurda) teoria de que o nosso Projecto de Lei poderá ser inconstitucional.

De nada serviu a reunião que tivemos com Pedro Cegonho (PS), o deputado encarregado de redigir o documento, no passado dia 18 de Dezembro. Nesse encontro, disse-nos o deputado que “tinha dúvidas” quanto à conformidade do nosso Projecto de Lei, no que diz respeito à Constituição da República. De imediato nos disponibilizámos para lhe enviar um parecer capaz de esclarecer essa questão, o que fizemos, remetendo-o igualmente aos demais deputados que integram a Comissão de Cultura. Pedro Cegonho agradeceu esse envio e, efectivamente, citou na íntegra esse parecer, da autoria do Professor Doutor Francisco Ferreira de Almeida, na parte em que se aborda a questão do ponto de vista do Direito Constitucional. Mas concluiu, ainda assim, pela existência de “dúvidas razoáveis”.

Ora então, vejamos: em que consistem as dúvidas de Pedro Cegonho em representação da Comissão Parlamentar de Cultura?

Como é sabido, uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos não pode incidir sobre uma matéria que não seja da competência do Parlamento. A ILC-AO pretende revogar uma RAR, isto é, uma Resolução da Assembleia da República. Não terá a Assembleia da República competência para deliberar sobre uma Resolução… da própria Assembleia da República?

O parecer aprovado pela Comissão de Cultura tenta contornar esta lógica, tão simples quanto evidente. Citando o constitucionalista Jorge Miranda, assegura aquele deputado que “se a vinculação jurídica do Estado a um tratado ou acordo reclama a colaboração de diferentes órgãos, de harmonia com estritas regras de competência e de forma, também a desvinculação há-de obedecer a idênticos requisitos“.

Acontece que a revogação da RAR 35/2008 não constitui uma renegociação, revogação ou desvinculação do Acordo Ortográfico de 1990, que continuará a existir e ao qual Portugal permanecerá vinculado, nos termos do Tratado de Roma (Direito dos Tratados). Não constitui sequer, a nossa iniciativa cívica, uma hipotética proposta de alteração do II Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico.

É certo que, se tudo correr bem, a revogação da RAR 35/2008 deverá levar o Governo a intervir — assim saiba o executivo encarar esse desenvolvimento como uma oportunidade e não como um contratempo. No entanto, nesta fase, a autonomia da Assembleia da República para deliberar sobre uma sua Resolução é por demais evidente.

Em que ficamos?

Neste momento, em face das “dúvidas razoáveis” ou de “diferentes posições doutrinárias”, o relatório aprovado pela 12.ª Comissão limitou-se a solicitar um parecer sobre a possível inconstitucionalidade da ILC-AO à 1ª Comissão (Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias).

Quanto à Iniciativa Legislativa propriamente dita, o texto aprovado pela Comissão de Cultura nada diz. Não é dedicada uma única palavra aos méritos deste Projecto de Lei, nem se reconhece a oportunidade que assim se cria para a correcção de um erro. O parecer do Professor Francisco Ferreira de Almeida, citado na íntegra no que respeita ao Direito Constitucional, foi completamente ignorado, no capítulo do Direito Internacional. Aí se demonstra que a RAR 35/2008 nunca devia ter sido proposta, e muito menos aprovada, à luz do Direito Internacional (por violar vários preceitos da Convenção de Viena). Tendo-o sido, encontra-se agora vazia de sentido à luz desse mesmo Direito — ou não estivesse ainda por cumprir a tão desejada “unificação da Língua”.

Entretanto, e para todos os efeitos, a Comissão competente continua a ser a 12ª. O parecer que vier a ser produzido na 1ª Comissão será enviado à 12ª e, aí sim, será finalmente proposto o agendamento da ILC-AO para debate e votação no Plenário.

Ou não.

Para se ter uma ideia da gravidade que este momento pode vir a assumir, tão inusitado quanto “estranho”, temos de compreender que este novo parecer, solicitado à 1ª Comissão, poderá significar, na prática, o fim da ILC-AO. Se a 1ª Comissão se manifestar no sentido da inconstitucionalidade — e, nos tempos que correm, tudo é possível — pode suceder que o Projecto de Lei 1195/XIII não suba a Plenário. Ainda que estes pareceres não sejam vinculativos, não é crível que a Presidência da Assembleia da República ignore a aposição de um tal selo de descrédito nesta Iniciativa Legislativa. Nesta… e em qualquer outra que porventura se constitua, para este ou para qualquer outro efeito.

A confirmar-se este cenário, estaríamos perante uma limitação grave das competências da Assembleia da República, e acima de tudo, perante um ataque frontal à figura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos enquanto forma de intervenção cidadã.

Esperamos, sinceramente, que os nossos receios sejam infundados. Se a lógica não for uma batata, o trânsito pela 1ª Comissão não pode senão fortalecer esta Iniciativa Legislativa, reforçando a sua legitimidade.

Se isso não acontecer, bem podemos perguntar: quem tem medo deste debate?

A verdade é que a posição de quem defende o Acordo Ortográfico está, mais do que nunca, fragilizada. Além da delapidação da norma ortográfica, que sucessos podem apresentar, em sua defesa, os promotores do AO90? Ao fim de trinta anos de utopia, conseguiu-se a unificação ortográfica? As nossas editoras tomaram de assalto o mercado lusófono, a começar pelo Brasil, sem necessidade de “traduzir” os seus textos? O “prestígio” e o “valor” da Língua Portuguesa viram-se repentinamente catapultados na cena geopolítica mundial? Com o “acordo” houve alguma espécie de “difusão e expansão da Língua Portuguesa no mundo“?

Nada disto aconteceu. Pelo contrário, o Acordo Ortográfico tem servido de cortina de fumo, ocultando o desinvestimento numa verdadeira política de intercâmbio, na promoção da Língua, nos leitorados e no ensino do Português além fronteiras.

É tempo de PS, PSD e BE, para referir apenas os partidos “com dúvidas”, deixarem de assumir as dores de um Acordo Ortográfico que ninguém pediu, não era preciso para nada e só tem prejudicado o normal relacionamento entre os diversos países da CPLP.

 

Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2020/03/13/quando-um-parecer-nao-basta/