Assembleia da República: entre o essencial e o acessório

A Constituição
fonte: Museu da Assembleia da República

Esteve para acontecer na passada quarta-feira, mas ainda não foi desta: a Comissão de Assuntos Constitucionais adiou a elaboração de um parecer sobre a ILC-AO para o próximo dia 3 de Junho.

Infelizmente, “sobre a ILC-AO” é uma frase que não traduz fielmente o que está a acontecer. Na verdade, se a ILC-AO fosse uma escultura, poderíamos dizer que a Assembleia da República está desde Novembro a debater o plinto.

Não estão em causa os méritos desta Iniciativa Legislativa ou a importância de rapidamente se começar a resolver os problemas criados pelo Acordo Ortográfico.

Bem tentámos, na audiência que teve lugar na Comissão de Cultura, trazer o debate para o campo da substância: demonstrámos que o Acordo Ortográfico é um acto falhado que nunca irá “unificar” a Ortografia — seja porque as suas regras não só não o permitem como criam mesmo divergência, seja porque só Portugal, entre os sete países realmente afectados, tenta manter o Acordo em vigor.

Também nas diversas reuniões com os diferentes grupos parlamentares procurámos chamar a atenção para o cAOs instalado no dia-a-dia dos portugueses e para o afastamento do Português de Portugal da matriz das restantes Línguas europeias (com efeitos nefastos na aprendizagem do Inglês e do Francês, por exemplo). Alertámos para a perda de identidade, nossa e de quase todos os países envolvidos, perante esta tentativa de terraplanagem em que a diferença genuína se apaga, dando lugar ao remendo artificial.

Indiferente a tudo isto, a Assembleia da República preferiu centrar-se nesta questão dilacerante: será uma ILC a melhor forma de resolver todos estes problemas? Poderá uma ILC revogar o Acordo Ortográfico?

Trata-se de não-questões, como sempre tivemos o cuidado de sublinhar: não está escrito, em parte alguma do nosso Projecto de Lei, que se revoga o Acordo Ortográfico.

É claro que não queremos, apesar de tudo, desvalorizar esta vertente do debate. Se há dúvidas, talvez possamos esclarecê-las.

Recorde-se que a própria “nota de admissibilidade” da ILC-AO, elaborada pelos serviços da AR, já apontava para a inexistência de incompatibilidades entre esta Iniciativa Legislativa e a Constituição da República Portuguesa:
“Conclusão: A apresentação desta iniciativa cumpre os requisitos formais de admissibilidade previstos na Constituição, no Regimento da Assembleia da República e na Lei sobre a Iniciativa Legislativa dos Cidadãos.” (o destaque é da própria AR)

Logicamente, se houvesse essa incompatibilidade a ILC-AO não teria sido sequer admitida. Mas, ainda assim, entendemos por bem dar o nosso contributo para esta discussão. Quando a ILC-AO esteve em apreciação na 12ª Comissão tomámos a liberdade de enviar aos deputados um parecer do Professor Francisco Ferreira de Almeida que sublinha, sem margem para dúvidas, a legitimidade da ILC-AO, entretanto designada como Projecto de Lei 1195/XIII/4ª.

Ainda assim, as dúvidas subsistiram: a 12ª Comissão entendeu por bem pedir uma “segunda opinião” à Comissão de Assuntos Constitucionais. Mais uma vez — e porque também não podíamos fazer mais nada — quisemos participar nesta discussão: enviámos à 1ª Comissão um novo parecer, desta vez da autoria do Professor José Lucas Cardoso, que mais uma vez nos dá razão, corroborando e aprofundando todos os pareceres anteriores.

E agora? Podemos finalmente falar de Língua Portuguesa?

Vale a pena lembrar que a referida “nota de admissibilidade” já referia, por exemplo, o alargamento deste debate à Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas. Isso, sim, faria sentido, e seria um dos muitos passos que podem ser dados na resolução dos problemas criados pelo AO90. Infelizmente, até agora, tal não aconteceu.

Por muito apaixonante que seja o actual debate, a verdade é que esta discussão é completamente lateral aos objectivos desta ILC. Todos nós, subscritores desta Iniciativa Legislativa, aguardamos. Somos 21.206 cidadãos eleitores (para referir apenas os números oficiais) mas podíamos ser muitos mais. Precisamente porque entregámos a ILC no Parlamento deixámos — há mais de um ano — de recolher assinaturas. Mas não precisamos de o fazer para sabermos que representamos uma fatia muito maior de portugueses que não se revêem no AO90. Suspensos, de braços cruzados, subscritores da ILC e todos quantos lutam contra o Acordo Ortográfico, aguardam que a AR decida finalmente falar do problema que nos mobiliza.

A perdurar, este impasse coloca em xeque, não a ILC-AO, mas a própria figura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos. É costume dizer-se que o Parlamento português já é um dos que oferece mais condições para o exercício desta forma de cidadania. A ser verdade, lamentamos o mau estado da democracia participativa no resto do mundo. Em Portugal, as condicionantes das ILC são mais que muitas. Há limitações materiais (impossibilidade de alterar o Orçamento de Estado, entre outras), processuais (mais do dobro das assinaturas necessárias para criar um partido político) e de âmbito (não interferência na competência do Governo, entre outras). Por alguma razão, até hoje apenas uma ILC conseguiu ser aprovada na Assembleia da República, numa iniciativa da Ordem dos Arquitectos. Mesmo essa, não teve quaisquer efeitos práticos — findo o período de transição previsto na Lei, a própria Assembleia da República se encarregou de revogar esse diploma. Para utilizar uma imagem agora em voga, bem pode o Parlamento dizer que o copo está meio cheio. Pelo andar da carruagem, começamos mesmo a duvidar que o copo exista.

Mais: com esta Iniciativa Legislativa está em causa o papel da própria Assembleia da República. Como é sabido, o nosso Projecto de Lei resume-se a um único e simples objectivo: revogar uma Resolução da Assembleia da República. Não terá a Assembleia da República competência para rever uma Resolução que ela própria aprovou? Não terá o Parlamento a possibilidade de, em face dos resultados e à luz da experiência vivida, reconhecer que errou e emendar esse erro?

Se a Assembleia da República não pode fazer isso, pode fazer o quê?

No cenário actual, debate-se, “na secretaria”, uma matéria que pouco ou nada tem que ver com o problema que temos em mãos e que carece de resolução urgente. Ao mesmo tempo que mantém o Acordo Ortográfico longe do Plenário, a Assembleia da República parece querer remeter-se ao papel de mera sancionadora da política do Governo, abdicando quer das suas obrigações de fiscalização da acção governativa quer da sua própria voz e competência na área dos tratados internacionais como é o caso do Acordo Ortográfico.

Esperamos que, na próxima quarta-feira, a Assembleia da República deixe definitivamente de discutir o seu umbigo e comece a falar das soluções, que estão ao seu alcance, para um problema que se arrasta há demasiado tempo na sociedade portuguesa.

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1 comentário

    • Maria José Abranches G. dos Santos on 2 Junho, 2020 at 19:22
    • Responder

    A democracia, como a paz, constrói-se dia-a-dia , com a participação esclarecida e responsável de todos nós, e não se esgota nos actos eleitorais – «A democracia participativa não se opõe à democracia representativa: prolonga-a e valoriza-a.» (Congresso «Portugal: Que futuro?»)
    Esta ‘nossa’ Iniciativa Legislativa de Cidadãos é uma forma legal de intervenção de cidadãos eleitores, conscientes da sua responsabilidade na defesa da nossa língua, património nacional, junto da Assembleia da República. O empenho, a persistência e a confiança democrática que nos animaram e animam, nesta iniciativa cidadã, terão forçosamente de merecer o respeito dos Deputados encarregados de dar vida e alma à Casa da Democracia. Por isso, termino fazendo minhas estas interrogações:
    «E agora? Podemos finalmente falar de Língua Portuguesa?»

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