A ILC-AO é o instrumento legal adequado — Parecer jurídico

 

Ciclicamente, surgem dúvidas sobre a adequação desta Iniciativa Legislativa para reverter a entrada em vigor do Acordo Ortográfico, tendo em conta que está em causa um Tratado Internacional. Como a negociação de Tratados é uma competência do Governo e as Iniciativas Legislativas de Cidadãos são admitidas no Parlamento, será uma ILC, à luz da Constituição da República Portuguesa, o instrumento adequado para tratar esta questão?

Pois bem: quaisquer objecções nesta matéria caem de imediato pela base, visto que a nossa ILC não contende com o “acordo ortográfico”, enquanto Tratado entre Estados soberanos; a ILC intervém, isso sim, apenas no âmbito do instrumento legal (RAR 35/2008) que fez o AO90 entrar em vigor na ordem jurídica interna do Estado português, ou seja, em matéria da estrita competência do parlamento português.

No entanto, apesar de a nossa Iniciativa ser estranha à questão de Direito Internacional, atinente à Convenção de Viena, com toda a complexidade técnico-jurídica de que se reveste, tanto na vertente constitucional como na do Direito dos Tratados, quaisquer dúvidas sobre a questão, ainda que raras ou descabidas, deverão ser completamente dissipadas e claramente separados os diversos planos em que se inserem. É certo que já por várias vezes tentámos esclarecer este assunto mas também é verdade que algumas pessoas (por regra, as do costume) vão repetindo o tema e reinventando variações sobre o mesmo. E então cá estamos nós, de novo como sempre, renovando, reiterando esclarecimentos.

A ILC tem sido objecto de análise por diversos juristas (o que, de certo modo, também é significativo) e, assim sendo, para não estarmos sempre a dizer a mesma coisa quanto à parte que respeita ao “acordo” enquanto Tratado e, por conseguinte, não cabendo esse facto nos pressupostos da Iniciativa, pedimos desta vez ajuda a um dos subscritores, o Professor Francisco Ferreira de Almeida, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

E em boa hora o fizemos, porquanto o parecer que o Professor Ferreira de Almeida teve agora a amabilidade de elaborar e de nos enviar, e que transcrevemos na íntegra, não só reitera a nossa posição de sempre como aduz uma novidade: o próprio tempo decorrido sem que o Acordo Ortográfico entre em vigor na ordem jurídica interna de cada um dos Estados da CPLP é, per se, um factor de decisiva relevância. Vivemos num estado de incumprimento do Acordo Ortográfico, um factor sine qua non de extinção da vigência do mesmo enquanto Tratado. Isto não será objectivamente o fulcro da nossa argumentação mas serve perfeitamente como mais uma achega, outro fôlego, respaldo acrescido do objectivo primordial — a entrada em vigor do AO90.

Quanto à questão da legitimidade formal da ILC também fica patente, no mesmo parecer, segundo é profunda convicção do douto redactor, que a competência do Governo, que Francisco Ferreira de Almeida define como “residual”, se limita à negociação dos termos do Tratado, sendo de igual modo a sua aprovação uma competência da Assembleia da República. No caso concreto da RAR 35/2008, e se bem que não seja esta a objecção principal em que se baseia o Projecto de Lei que apresentaremos a discussão e votação, não só essa Resolução jamais deveria ter sido aprovada, também por violação flagrante do Direito Internacional, como, tendo-o sido, assiste agora à Assembleia da República toda a legitimidade para corrigir esse erro (formal e legal) — aprovando o Projecto de Lei, veiculado pela nossa ILC, que reverte a aprovação da referida Resolução parlamentar de 2008 e que assim revogará a entrada em vigor do “acordo ortográfico” de 1990.

Daqui expressamos ao Excelentíssimo Senhor Doutor Francisco Ferreira de Almeida os nossos mais sinceros agradecimentos e com imensa honra pelo seu envolvimento nesta Causa nacional deixamos-lhe um profundo e sentido cumprimento de homenagem.

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DIREITO CONSTITUCIONAL:
1 – Do ponto de vista do Direito Constitucional, importa ter em mente que, ainda que adoptada na sequência de um projecto do Governo, a Resolução nº 35/2008 constitui um acto da Assembleia da República. Ora, fazer depender o exercício do poder revogatório da AR – relativamente a um acto da sua competência – de uma solicitação do Governo, significaria um cerceamento das competências do órgão parlamentar que, além de juridicamente insólito em termos gerais, não encontra (não poderia encontrar…) qualquer respaldo na Constituição da República Portuguesa;
2 – Acresce, no que respeita aos tratados internacionais, que a competência do Governo é meramente residual, cingindo-se, como é sabido, à respectiva negociação e à subsequente aprovação, em Conselho de Ministros, de uma proposta de resolução a submeter à AR. Compete a esta (e apenas a esta), ex vi do art. 161.º, i), da CRP, proceder à aprovação desses tratados solenes, pelo que, aceitar-se como válida a tese de que a revogação da supracitada Resolução nº 35/2008 carece de uma prévia proposta do Governo nesse sentido, redundaria numa autêntica subversão (essa sim) do sistema de repartição de competências entre ambos os órgãos de soberania, na matéria em apreço. E isto, note-se, estando em causa uma Resolução discrepante com a Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969 (à qual o Estado português se encontra vinculado) – desconformidade essa que viola o princípio da prevalência, ou, quando menos, da preferência aplicativa, do Direito Internacional face ao direito interno infraconstitucional;
3 – Sublinhe-se, por último, não ser possível contestar a compatibilidade – quer no plano formal, quer no plano substantivo – da presente ILC com a CRP. O entendimento acima descrito, de cujo bem fundado nos permitimos discordar frontalmente, teria apenas uma consequência: a de, adrede e sem qualquer justificação material válida, esvaziar completamente de sentido o instrumento da ILC.

DIREITO INTERNACIONAL:
1 – O Acordo Ortográfico é um tratado multilateral restrito (com um número limitado de Estados parte). Para esse tipo de tratados internacionais a regra é a de que eles apenas poderão entrar em vigor quando todos os Estados que hajam participado na respectiva negociação tiverem procedido à sua ratificação. Regra essa que, relativamente a um tratado que se propunha criar uma ortografia comum para a língua portuguesa, se suporta – convenhamos – num argumento a fortiori, mas da qual, estranhamente, se afastou o Protocolo Modificativo II, de 2004, ao AO, criando, ao arrepio do Direito Internacional Geral, uma autêntica contradictio in adjecto;
2 – Mesmo a não se entender assim, uma outra questão agora se sobrepuja: o reiterado incumprimento do AO por parte dos demais Estados de LOP, dá ensejo à invocação, por parte do Estado português, da exceptio non adimpleti contratus, que se consubstancia numa causa de extinção da vigência de convenções internacionais fundada no comportamento das partes.

Francisco António de M. L. Ferreira de Almeida
[Professor da Faculdade de Direito de Coimbra]

Coimbra, 26 de Dezembro de 2019

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