Parece impossível mas é verdade

Nestes tempos de crise, é difícil evitarmos um sentimento de frustração quando vemos a Assembleia da República em regime de conta-gotas, e entretanto a Língua Portuguesa a ser massacrada diariamente nos rodapés da televisão, com tantos “infetados” (curiosamente, continuam a ser “infectados” quando as notícias chegam do Brasil).

Parece impossível, mas é verdade: a ILC-AO foi entregue na Assembleia da República há mais de um ano. Propositadamente, não assinalámos esse aniversário, no passado dia 10 de Abril. Não é uma efeméride que valha a pena celebrar.

Porém, frustração não tem de ser sinónimo de impotência. Quando a vida nos dá limões podemos sempre fazer limonada — e foi o que fizemos. Enquanto o Parlamento se delonga em Orçamentos de Estado e outros debates avulsos, enquanto a pandemia adia tudo o que não é (ou não parece ser…) essencial, enquanto resistimos apesar de tudo, podemos, pelo menos, aproveitar este tempo para estudar e assim dar um rebate radical para o debate sobre o nosso Projecto de Lei.

Há dúvidas sobre a conformidade da ILC-AO à luz da Constituição? Aí vai mais um parecer, desta feita da autoria do Professor José Lucas Cardoso (Universidade Lusíada de Lisboa/IPL).

Note-se que este parecer é apenas mais um. José Lucas Cardoso junta-se a nomes como José de Faria Costa ou Francisco Ferreira de Almeida, subscrevendo o entendimento destes e de muitos outros juristas. Mas, por outro lado, tal como outros antes dele, também José Lucas Cardoso nos trouxe algo de novo, validando a ILC sob diferentes perspectivas e questionando até a competência de outra instância que não o próprio Plenário para decidir da admissibilidade do nosso Projecto de Lei.

Esperamos que este parecer, que de imediato enviámos a todos os deputados com assento nas 1ª e 12ª Comissões Permanentes, possa contribuir para dissipar todas as dúvidas e, em especial, contribuir para um mais rápido agendamento do debate e votação da ILC-AO em plenário.

É tempo de começarmos a pôr cobro ao desnorte ortográfico instalado no país. Se é verdade que nunca é tarde para corrigir um erro, também é certo que quanto mais depressa virarmos a página do AO90, melhor. É tempo de os nossos deputados perceberem que o Projecto de Lei 1195/XIII pode ser a oportunidade perfeita para concretizarem esse objectivo.

Parecer

  1. A consulta

A comissão representativa dos cidadãos subscritores da petição pela revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de Julho, que aprova o acordo referente ao Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa solicita o nosso parecer sobre a admissibilidade constitucional da Assembleia da República revogar sponte sua uma resolução que aprova um acordo internacional, considerando a repartição constitucional de competências entre os órgãos de soberania.

A questão controvertida foi suscitada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, nomeado relator no procedimento, quando, no decurso da respectiva fase de apreciação, se pronunciou pela “existência de dificuldades, ou pelo menos legítimas dúvidas constitucionais, relativamente à iniciativa da Assembleia da República, sem a intervenção prévia do Governo, no uso dos seus poderes constitucionais exclusivos em matéria de relações e direito internacional”. O Sr. Deputado Pedro Cegonho sugere, em suma, neste contexto, que a reserva de competência governamental para “negociar e ajustar convenções internacionais” (artigo 197.º, n.º 1, b), CRP) obsta a qualquer impulso de outro órgão de soberania, ou mesmo do povo soberano, para adopção dos actos subsequentes no procedimento de vinculação, ou desvinculação, do Estado português a tratados e acordos internacionais.

  1. O parecer

Sobre esta questão, verificamos que a Assembleia da República vem agora invocar uma alegada inconstitucionalidade procedimental-formal, que não sendo impeditiva da vinculação do Estado português (cfr. artigo 277.º, n.º 2, CRP), pela mesma ordem de argumentos em que o Sr. Deputado Pedro Cegonho se louva, i. é, a desvinculação há-de obedecer aos requisitos exigidos para a vinculação [1], também não será impeditiva da respectiva desvinculação, quando foi a própria Assembleia da República que durante quase três décadas não se dignou exercer a sua competência de fiscalização (artigo 162.º, a), CRP) no que concerne as várias incondicionalidades materiais de que padece o Acordo Ortográfico, essas sim preclusivas da vinculação do Estado português.

Com efeito, como nós próprios demonstrámos em escrito anterior, o Acordo Ortográfico padece de inconstitucional por violação do (i) direito de usar a língua portuguesa (artigo 11.º, n.º 3, CRP), por colisão com o (ii) princípio da neutralidade do Estado na esfera cultural (artigo 42.º, n.º 3, CRP) e ainda por arrepiar ao cumprimento das (iii) tarefas do Estado no que concerne à protecção e à valorização do acervo cultural do povo português (artigos 9.º, e), 1.ª parte, 9.º, f), 2.ª e 3.ª partes, e 78.º, n.º 2, c), todos da CRP)[2]. As inconstitucionalidades em apreço revestem a natureza jurídica de inconstitucionalidades materiais que obstam inequivocamente, essas sim, a que um tratado ou acordo internacional produza efeitos na ordem jurídica portuguesa (cfr. novamente artigo 277.º, n.º 2, CRP).

Ora, considerando as inconstitucionalidades em apreço, no caso da Assembleia da República considerar, pela maioria constitucionalmente definida para as deliberações em plenário, corresponder ao interesse público a revogação da Resolução n.º 35/2008 não estará a agir no exercício de uma competência política activa strictu-sensu de vinculação internacional do Estado português (cfr. artigo 161.º, i), CRP) mas, ao invés, no exercício da competência de fiscalização que a habilita a vigiar pelo cumprimento da Constituição (cfr. artigo 162.º, a), CRP).

Assim sendo, se em preceito algum do texto constitucional encontrávamos suporte para a conclusão indiciária avançada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, segundo a qual a Assembleia da República estaria dependente de uma proposta de outro órgão de soberania, o Governo, para exercer a sua competência política strictu-sensu, por argumento à fortiori não é possível fazer depender a competência parlamentar de fiscalização de uma iniciativa do órgão fiscalizado, na medida em que uma solução com esse teor redundaria na insusceptibilidade de exercício da mesma competência pelo órgão de controlo e, segundo uma conhecida expressão, converteria o artigo 162.º, a), da CRP, em papel de embrulho por impedir ao órgão do controlo o exercício cabal das suas competências.

Além disso, ainda que consideramos não estar o Acordo Ortográfico eivado das várias inconstitucionalidades materiais que exigem da Assembleia da República o exercício da sua competência de fiscalização e que, desse modo, a Assembleia da República estaria a agir no exercício de uma competência política activa tendente à revogação tout court da Resolução n.º 35/2008, não procede a conclusão indiciária avançada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, pelos seguintes motivos.

Com efeito, embora a Constituição da República Portuguesa estabeleça como competência política do Governo, entre outras as de “negociar e ajustar convenções internacionais” (artigo 197.º, n.º 1, b)) e exista uma praxis em sede de cooperação institucional de propulsão pelo Governo da aprovação parlamentar dos tratados e ainda dos acordos internacionais mencionados no artigo 161.º, i) da CRP, nada obsta, em termos do texto e do espírito da Constituição, a que a Assembleia da República possa vincular, sponte sua, o Estado português a convenções internacionais que estejam abertas, a nível internacional, a adesão pelos Estados e que, portanto, o Governo português não haja participado na respectiva negociação. Cai assim por terra, salvo o devido respeito, o argumento invocado pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho quanto à necessidade de observar no procedimento de desvinculação a tramitação devida para o procedimento de vinculação.

Além disso, o princípio do Estado de Direito impõe aos órgãos de soberania o dever de “observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição” (artigo 111.º, n.º 1). Ora, se a mesma Constituição confere à Assembleia da República a competência para aprovar tratados e acordos internacionais (artigo 161.º, i)), nada obsta a que este órgão de soberania exerça as suas competências por iniciativa dos deputados, ou como acontece no presente caso, dos cidadãos. Apesar do preceito mencionar a possibilidade do Governo propor à Assembleia da República a aprovação de tratados e acordos internacionais, não o menciona em termos de reserva de iniciativa, como acontece v.g. no que concerne à legitimidade para desencadear a aprovação dos Estatutos da Regiões Autónomas e das leis relativas à eleição dos deputados às respectivas Assembleias Legislativas (cfr. artigo 226.º) ou das propostas de legislação ou de referendo que “envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento” (cfr. artigo 167.º, n.º 2). Assim sendo, o Governo deve circunscrever-se neste contexto aos mecanismos de interdependência expressamente previstos na própria Constituição, sob pena de estar a subverter o princípio da separação de poderes, enquanto sub-princípio concretizador do princípio do Estado de Direito[3].

Ainda neste contexto, o princípio democrático impõe não apenas que aos órgãos de soberania seja reconhecida a possibilidade de exercerem as competências que a Lei Fundamental lhes confere como também a possibilidade de o fazerem sem interferências externas, isto é, por iniciativa dos seus próprios membros, pelo que arrepia também ao princípio democrático que a lei ou os regimentos consagrarem reservas de iniciativa externas, bloqueantes da decisão dos órgãos de soberania, para além dos casos e dos termos expressamente previstos na própria Constituição.

Ainda que assim não se entendesse e aceitássemos a conclusão indiciária avançada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, isso não seria motivo para arquivamento puro e simples da iniciativa legislativa dos cidadãos em curso mas apenas para que a Assembleia da República solicitasse ao Governo a apresentação de uma proposta de resolução sobre o assunto, ao abrigo do dever de cooperação institucional[4] entre os órgãos de soberania, decorrente do mencionado princípio da separação e a interdependência de poderes.

Advertimos ainda para um último aspecto, orgânico e procedimental, sobre a decisão de admissibilidade da iniciativa legislativa dos cidadãos em curso. Qualquer decisão sobre a admissibilidade de uma iniciativa legislativa dos cidadãos, assim como de petição apresentada por cidadãos à Assembleia da República nos termos gerais, sobretudo como a decisão sobre a constitucionalidade da mesma, nos termos em que é suscitada pelo Sr. Deputado Pedro Cegonho, carece de ser adoptada pelo plenário da Assembleia da República e apenas o plenário tem legitimidade para o efeito, nunca o Presidente da Assembleia da República.

Com efeito, a Constituição da República Portuguesa distingue a competência da Assembleia da República (artigo 161.º e ss.) da competência do Presidente da Assembleia da República (artigo 176.º) e seja qual for a competência que a Assembleia da República invoque para decidir da admissibilidade da iniciativa em apreço, política strictu-sensu ou de fiscalização, são em ambos os casos competências reconhecidas pela Lei Fundamental à Assembleia e não ao seu Presidente.

Serão, deste modo, inconstitucionais as normas legais (artigo 8.º, n.º 1, b), da Lei da iniciativa legislativa dos cidadãos) e regimentais (artigo 125.º, n.º 1, do RegAR) que conferem uma putativa competência ao Presidente da Assembleia da República para realizar o auto-controlo da juridicidade dos projectos e propostas, pelo que não poderá o Sr. Presidente da Assembleia da República invocar uma norma de competência que é, ela própria, inconstitucional para apreciar uma alegada inconstitucionalidade no diploma que lhe é presente para efeitos de admissão, devendo remeter ex officio a decisão para o plenário da Assembleia da República.

Salvo melhor, é este o nosso parecer,

José António Martins Lucas Cardoso[1] Cfr. parecer do Sr. Deputado Pedro Cegonho, p. 6, in fine.
[2] Cfr. JOSÉ LUCAS CARDOSO, A dimensão cultural do EstadoContributo para uma análise do núcleo cultural da Constituição da República Portuguesa, Coimbra, 2013, inédito, p. 655 e ss.
[3] Subscrevemos assim a conclusão avançada por FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA no parecer que apresentou no âmbito do procedimento de apreciação parlamentar da iniciativa legislativa dos cidadãos em curso.
[4] Sobre este assunto, cfr. PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, vol. II – Organização do poder político, Coimbra, Livraria Almedina, 2010, p. 21 e ss.

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