Esta análise estende-se, naturalmente, ao campo estético — convenhamos que os aportuguesamentos, por exemplo, nem sempre são felizes. Pela parte que me toca, dificilmente trocarei um dia a graça de um “dossier” pelo desengonçado “dossiê” português. Em última análise, estaremos sempre a falar do bom gosto (ou do mau gosto) de quem escreve — o que é, e será sempre, um tema controverso.
Acresce que um estrangeirismo é um fenómeno natural. As Línguas sempre se comeram umas às outras e, em larga medida, é também dessa forma que se desenvolvem. Com o Acordo Ortográfico ocorre precisamente o oposto. Um estrangeirismo é uma palavra que achamos interessante noutra Língua e que, voluntariamente, decidimos “roubar” e integrar na nossa. Com o Acordo Ortográfico, milhares de novas palavras, criadas artificialmente, sem qualquer adequação à nossa pronúncia — quase todas de uma deselegância atroz — estão a ser-nos impostas, sem apelo nem agravo.
É por isso que se torna particularmente doloroso assistir a esta moda que parece acometer agora os defensores do Acordo Ortográfico: como é possível que alguém não só tolere como até defenda a enorme agressão que o Acordo Ortográfico representa para o Português Europeu, para de seguida se indignar, a ponto de rasgar as próprias vestes, com uma questão de interesse duvidoso como é a dos estrangeirismos? Que autoridade esperam que lhes reconheçamos nesse papel de paladinos da Língua Portuguesa?
Jorge Miranda é um dos expoentes dessa moda acordista de ver no inglês todos os males da Língua Portuguesa. É impossível que o presidente da Comissão Organizadora do Dia de Portugal não tenha noção de que, na sua boca, essa argumentação é uma anedota de mau gosto.
Não se percebe, portanto, porque insiste Jorge Miranda nessa tecla. Consciência pesada? Esforço desesperado para, apesar de tudo, tentar atamancar uma imagem de defensor da Língua? Tentativa de assobiar para o lado, assacando a outros a responsabilidade pelo mau estado da Língua Portuguesa, enquanto finge ignorar a sua própria?
Talvez um “mix” de tudo isto — passe o estrangeirismo.
Parece que o 10 de Junho, ou o que dele decorre, está fadado a estas sortes. Este ano, em Braga, ao discursar como presidente da Comissão Organizadora do Dia de Portugal, quis o professor Jorge Miranda dedicar uma parcela dessa sua intervenção à língua portuguesa (1 minuto e 15 segundos num total de 10m35: confira-se dos 7m14s aos 8m29s). Falou dela como “um direito” [dos povos que a escrevem e falam] e “também um dever”, apontando depois o dedo “contra os atropelos que vem sofrendo entre nós”: “Constantes erros de sintaxe na comunicação social, ensino em escolas superiores portuguesas por professores portugueses a alunos portugueses em língua estrangeira; denominações de algumas escolas superiores, muitas das quais públicas, também em inglês; alastramento de denominações comerciais de empresas portuguesas operando em Portugal em inglês – outra coisa é o inglês ter-se tornado língua franca universal.”
Não é nova, esta indignação de Jorge Miranda. Já a expressara várias vezes, até no PÚBLICO, em artigos como Brevíssimas notas sobre três questões sérias (13/7/2011) ou Outro direito fundamental em risco: o direito à língua (11/2/2013), que o Ciberdúvidas reproduziu. Neste último, aliás, recorria à Constituição (de que é um dos “pais”, na sua génese) para reafirmar “o direito de uso da língua, sabendo-se como a língua materna, por seu turno, é o primeiro ou um dos primeiros elementos distintivos da identidade cultural”; havendo “o direito de defender, mesmo em tribunal, o património cultural [art. 52.º, n.º 3, alínea d)].” Mesmo em tribunal? Pois nem na Assembleia da República (AR), onde a Constituição foi feita e refeita.
Há um ano, numa destas crónicas, dávamos conta do silêncio a que fora votada na Assembleia da República uma iniciativa legislativa de cidadãos em torno do Acordo Ortográfico de 1990 (ILC-AO). Pretendia tal iniciativa, como foi amplamente divulgado, que a AR revogasse a sua Resolução n.º 35/2008, de 29 de Julho, pois esta aprovara o segundo protocolo modificativo do AO90, permitindo que este entrasse em vigor com a ratificação de apenas três países, em vez dos oito subscritores iniciais, contrariando o disposto na Convenção de Viena que Portugal ratificara escassos anos antes, em 2004. Entregue em Abril de 2019 (com 21.206 assinaturas validadas), foi transformada em projecto de lei (1195/XIII) por cumprir “os requisitos formais de admissibilidade.”
Mas não foi a plenário, porque a lei 17/2003, que obrigava, esgotados os prazos, a um agendamento “para uma das dez reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade” teve, em Agosto de 2020, este acréscimo no final: “salvo se o parecer da comissão tiver concluído pela não reunião dos pressupostos para o respectivo agendamento.” E assim foi barrada pela comissão e remetida ao silêncio. Uma exposição dos promotores à Provedoria de Justiça (declaração de interesses: subscrevi ambas), com pedido de um parecer, teve o mesmo efeito. O que levou Rui Valente, em nome da ILC-AO, a escrever um artigo na página desta iniciativa intitulado A Provedoria de Justiça também não dá resposta, onde conclui: “Parece-nos evidente que não se poupam esforços quando o objectivo é manter o debate sobre o Acordo Ortográfico longe do Plenário. Vale tudo, incluindo a mais completa degradação da figura das Iniciativas Legislativas de Cidadãos. Em Portugal, a Língua Portuguesa vive momentos dramáticos, em que o Português Europeu luta pela sobrevivência. A democracia participativa parece ir pelo mesmo caminho.” E a culpa não é do inglês.
A ideia geral é esta: desistam. O AO90 é um facto consumado, habituem-se a ele, as crianças já não conhecem outra grafia, editoras, jornais, livros, televisões afinam pelo mesmo diapasão, com “exceção” [sic] de um punhado de teimosos a lutar contra moinhos de vento. A conversa do costume. Mas o plural expresso no título desta crónica também é verdadeiro: não desistimos. Porque o acordo, em lugar da propalada unificação ortográfica (promessa que é hoje absoluta vacuidade), continua a dar-nos “impatos”, “estupefatos”, “artefatos”, “convições”, “egícios”, “adetos”, “réteis”, “abrutos”, “inteletuais”, “mastetomias”, “nétares”, “fições”, “oções”, “evições”, “eruções”, “frições”, “autótones”, “invitos”, “galáticos”, “ténicos” e outras tantas aberrações que o acordo tem incentivado, ao desestruturar a escrita.
Talvez isto passe ao lado de Jorge Miranda, embora até já o inglês sofra cortes sob tal influência. Mas enquanto nada mudar, e a atitude de quem manda diz-nos que por sua vontade não mudará uma só vírgula, haverá resistência e resistentes.
Nota: transcrição integral de artigo publicado no jornal PÚBLICO na edição de quinta-feira, 16 de Junho de 2022.
]]>Recordamos que esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos, ao arrepio da Lei n.º 17/2003, foi barrada pela Assembleia da República de forma grosseira e ostensiva. O debate desta ILC, que devia ter ocorrido pela simples observância da referida Lei, foi-nos pura e simplesmente sonegado.
Naturalmente, não podemos aceitar que uma Iniciativa legislativa de Cidadãos possa ser tratada desta forma na própria Assembleia da República. Como tal, num gesto que hoje reconhecemos ter sido inútil, decidimos apresentar perante a Provedoria de Justiça, uma exposição, baseada numa questão essencial e três questões acessórias:
• QUESTÃO ESSENCIAL — Violação grosseira, por parte da Assembleia da República, dos prazos previstos da Lei n.º 17/2003 de 4 de Junho (Iniciativa Legislativa de Cidadãos). Nos termos dos artigos 9º e 10º da referida Lei, a Assembleia da República, passados trinta dias sobre a data de admissão da ILC-AO (oficialmente, 6 de Novembro de 2019), devia ter promovido o agendamento do debate e votação na generalidade desta Iniciativa Legislativa. Infelizmente, apesar dos nossos sucessivos alertas e protestos exigindo o cumprimento da Lei, a ILC-AO só chegaria à Conferência de Líderes quase um ano depois, no dia 16 de Setembro de 2020. Nesse dia, ao invés de se limitar a aplicar a Lei, a Conferência de Líderes optou por aceitar pareceres produzidos sobre a ILC-AO, ignorando a sua entrega completamente fora de prazo.
• QUESTÃO ACESSÓRIA 1 — Mesmo que tivessem sido entregues dentro do prazo, a Conferência de Líderes ignorou o carácter necessariamente controverso da conclusão a que chegaram os deputados-relatores sobre esta Iniciativa Legislativa, catalogando-a como inconstitucional, ao arrepio de outros pareceres em sentido contrário, desde logo dos próprios serviços da Assembleia (Divisão de Apoio ao Plenário, Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar e Divisão de Apoio às Comissões).
• QUESTÃO ACESSÓRIA 2 — Alterações cirúrgicas à Lei n.º 17/2003 (Iniciativa Legislativa de Cidadãos). Em Agosto de 2020 — convenientemente a tempo de servir de respaldo à decisão que a Conferência de Líderes iria tomar no mês seguinte — entra em vigor uma alteração ao n.º 1 do Artigo 10.º da Lei n.º 17/2003 (Iniciativa Legislativa de Cidadãos), nos seguintes termos:
Onde se lia
Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade.
Passa a ler-se
Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade, salvo se o parecer da comissão tiver concluído pela não reunião dos pressupostos para o respectivo agendamento.
Em nosso entender, esta alteração confere às comissões um poder que estas não podem nem devem deter — o de se substituírem ao Tribunal Constitucional sempre que os “pressupostos” em questão envolvam a Lei Fundamental.
• QUESTÃO ACESSÓRIA 3 — Ausência reiterada de resposta da Assembleia da República às comunicações da ILC-AO ao longo de todo o processo, com destaque para o pedido formal para que se agendasse o debate da ILC tendo em conta o esgotamento do prazo para o fazer e, mais tarde, à nossa proposta de convolação da ILC-AO em Projecto de Resolução (contornando desta forma qualquer resquício de inconstitucionalidade que, aos olhos dos relatores, pudesse subsistir).
Naturalmente, aquilo que aqui se resume em quatro parágrafos, assumiu, perante a Provedoria de Justiça, a forma de uma exposição detalhada, com 16 páginas e 26 anexos, submetida no dia 25 de Setembro de 2021, à qual se seguiu um pedido de audiência com S. Excia. a Senhora Provedora de Justiça.
Em resposta a tudo isto, volvidos mais de dois meses, no dia 13 de Dezembro de 2021, enviou-nos a Provedora-Adjunta, Doutora Teresa Anjinho, uma carta de duas páginas, nos seguintes termos:
• Atendendo ao “recorte de competências” da Provedoria de Justiça, é-lhe vedada qualquer intervenção sobre o funcionamento dos órgãos de soberania. Ficam assim sem resposta a questão central da nossa exposição, bem como as questões acessórias 1 e 3.
• No que respeita à alteração introduzida na Lei que rege as Iniciativas Legislativas de Cidadãos (questão acessória 2), a Provedoria de Justiça salienta que estas não são obstáculo à prevalência da “maioria parlamentar”. Dito de outro modo, apesar da nova redacção da Lei, o “chumbo” da ILC na Conferência de Líderes de 16 de Setembro de 2020 foi fruto de uma deliberação, naturalmente por maioria, e não de uma leitura da Lei.
Naturalmente, apressámo-nos a responder, dizendo que, como é evidente, conhecemos o “recorte de competências” da Provedoria de Justiça. Nos termos do Art.º 22º do Estatuto do Provedor de Justiça “ficam excluídos dos poderes de inspecção e fiscalização do Provedor de Justiça os órgãos de soberania”. No entanto, como também é evidente, na nossa exposição à Provedoria de Justiça solicitámos apenas uma simples recomendação, uma figura que é perfeitamente enquadrada nessas mesmas competências. Veja-se, por exemplo, as notícias vindas a público, em que a Provedora de Justiça “recomenda que o Parlamento legisle de modo a evitar novos estados de emergência devido a pandemias“. O próprio sítio da Provedoria de Justiça é pródigo em notícias sobre recomendações ou questionamentos a outros órgãos de soberania, entre outras intervenções.
Parece-nos por demais evidente que a Provedoria de Justiça optou por se manter à distância de um assunto que sabe ser polémico. Para que não restassem dúvidas, a resposta da Provedoria, numa formulação não muito elegante, acrescenta ainda que os esclarecimentos prestados respondem também ao pedido de audiência entretanto formulado, pelo que o considera sem efeito.
Damos de barato as explicações produzidas pela Provedoria no que diz respeito às alterações introduzidas na Lei n.º 17/2003 — embora seja evidente que essas alterações vão no sentido de facilitar a rejeição de Iniciativas Legislativas de Cidadãos e constituem mais um rude golpe na sempre mal-amada democracia participativa.
Quanto ao resto, lamentamos que a Provedoria de Justiça tenha fugido deste assunto como o diabo da cruz, não sendo sequer capaz de exarar a mais simples das recomendações — a que resultaria da nossa Questão Acessória 3 e que tem por fundamento um princípio elementar da democracia: os órgãos de soberania devem responder aos cidadãos quando estes os interpelam. E se há um órgão de soberania onde este princípio devia ser sagrado, esse órgão é a Assembleia da República.
“Recomendamos que sejam prestados à Comissão Representativa da ILC-AO os esclarecimentos por esta solicitados”, teria sido um gesto pouco comprometedor e obviamente sem qualquer vínculo para a Assembleia da República, mas significativo para esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos.
Apesar de termos sido liminarmente “despachados”, não quisemos deixar de expressar este nosso descontentamento junto da Provedoria de Justiça. Na nossa resposta, formulámos igualmente esta questão: se a Provedoria de Justiça não pode emitir uma simples recomendação, qual a Instância — que não a própria Assembleia da República — a que podemos recorrer para contestar o incumprimento, por parte da Assembleia da República dos Artigos 9º e 10º da Lei n.º 17/2003 de 4 de Junho (incumprimento do prazo de 30 dias para o agendamento do debate e votação em Plenário de uma ILC)?
Talvez a Senhora Provedora-Adjunta tenha entendido esta nossa pergunta como uma provocação que não merece resposta. Ou talvez não tenha ainda tido tempo para se debruçar sobre o assunto. O certo é que, para todos os efeitos é inevitável a conclusão: tal como a Assembleia da República, a Provedoria de Justiça também não dá resposta.
É claro que esta conclusão implica outra: sem uma intervenção da Provedoria de Justiça, por mínima que seja, continuaremos a viver num universo kafkiano onde, à vista de todos, a Lei não é cumprida pela Assembleia da República — e ninguém, incluindo a própria Provedoria de Justiça, tem qualquer coisa a dizer sobre o assunto.
Note-se que não se trata de uma Lei qualquer. A Lei n.º 17/2003 rege as Iniciativas Legislativas de Cidadãos, um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa. Parece-nos evidente que não se poupam esforços quando o objectivo é manter o debate sobre o Acordo Ortográfico longe do Plenário. Vale tudo, incluindo a mais completa degradação da figura das Iniciativas Legislativas de Cidadãos. Em Portugal, a Língua Portuguesa vive momentos dramáticos, em que Português Europeu luta pela sobrevivência. A democracia participativa parece ir pelo mesmo caminho.
]]>Para nossa grande surpresa, verificamos que, afinal, o nosso Projecto de Lei suscitou um intenso debate, sim, mas sobre coisas que nada têm que ver com Ortografia.
Para tudo esta ILC tem servido de mote: desde a própria razão de ser de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos, até à noção de constitucionalidade de uma Lei, passando por questões tão díspares como o Regimento da Assembleia da República ou a velha dicotomia entre democracia participativa e democracia representativa. Não se pode dizer que, por parte do Parlamento, não tenha havido argumentação.
Não foi, infelizmente, a argumentação que esperávamos. A Grande Questão, aquela que verdadeiramente importa debater, continua arredada do Plenário.
Não é fácil percebermos o que aconteceu.
Uma explicação possível poderá ser esta: no que ao Acordo Ortográfico diz respeito, os dois maiores partidos portugueses estão convencidos de que as reformas ortográficas são um fenómeno natural que acontece desde sempre — e desde sempre deram azo a resistências.
Por esta ordem de ideias, toda a contestação que um Acordo Ortográfico possa merecer não passa, também ela, de uma sequela natural, que desaparecerá com o tempo — mesmo que essa contestação chegue ao ponto de se constituir como Iniciativa Legislativa de Cidadãos, mesmo que esse tempo de rejeição pareça, afinal, não ter fim.
PS e PSD acreditam tão cegamente nesta “verdade absoluta” que nada nem ninguém consegue demovê-los. É uma crença que raia a alucinação, como se vê pelas palavras do ainda ministro dos Negócios Estrangeiros que assegura ver no Acordo Ortográfico “um dos Tratados de maior sucesso na história dos Tratados”.
Há quem avance outras explicações, porventura mais realistas. De facto, não é fácil associar Augusto Santos Silva a tamanha dose de lirismo e a tanto fervor lusófono. As verdadeiras razões para o Acordo Ortográfico serão outras, com a ortografia e o Português Europeu sacrificados e servidos de bandeja, usados como respaldo de uma Comunidade de Estados mais vocacionada para o comércio e para a circulação de pessoas e bens do que para a promoção de um verdadeiro encontro entre culturas.
Seja qual for a verdadeira “raison d’être” do Acordo Ortográfico, o facto é que, para o chamado “bloco central”, o AO90 é considerado intocável. Neste contexto, a tramitação desta Iniciativa Legislativa foi sempre vista, no Parlamento, como um aborrecimento, uma provocação legislativa que se suporta com maior ou menor paciência, mas à qual em circunstância alguma se deverá permitir que produza resultados.
Pelo contrário: a haver resultados, estes serão o exacto oposto daquilo que pretendem os subscritores desta Iniciativa. Ficará esta ILC-AO como aviso para que nunca mais os opositores do Acordo Ortográfico tenham a veleidade de recorrer a esta via na sua luta em defesa do Português Europeu.
Para atingir este objectivo — o objectivo de anular uma ILC — tem valido tudo: dilatação absurda de prazos, num teste à paciência dos subscritores e ao arrepio da Lei, desvio do debate do essencial para o acessório, alterações cirúrgicas da Lei que rege as ILC. No palácio dos Passos Perdidos, a Assembleia da República “abriu o livro” e presenteou-nos com a sua proverbial capacidade para responder a alhos com bugalhos.
Por este motivo, muito nos penitenciamos, nós, Comissão Representativa da ILC-AO, por andarmos desde 2019 a consumir o tempo e os recursos dos representantes da Nação com assuntos que nada importam à Ortografia e que, acima de tudo, não são os que levaram os apoiantes desta Iniciativa Legislativa a confiarem-nos a sua assinatura.
É em nome desses mais de vinte mil subscritores, aos quais devemos uma explicação, que aqui deixamos uma pequena cronologia desta Iniciativa Legislativa de Cidadãos.
A exposição que se segue serviu de base a uma queixa apresentada junto da Provedoria de Justiça — da qual, esperamos, resultará uma recomendação para que a Assembleia da República, no cumprimento da Lei, agende esta Iniciativa Legislativa.
INTRODUÇÃO
Não é possível dissociar a existência desta Iniciativa Legislativa de Cidadãos da luta contra o Acordo Ortográfico de 1990. Não terá havido um único dos mais de 20.000 subscritores desta ILC que não tivesse presente, no momento da sua assinatura, o carácter pernicioso do Acordo Ortográfico enquanto instrumento de descaracterização da nossa Língua e, consequentemente, da nossa identidade. Porventura, alguns talvez não tivessem adivinhado, nessa altura, a verdadeira extensão desse agravo. Hoje, é cada vez mais evidente o uso descuidado da Língua, fruto da noção instalada de facultatividade, que resvala frequentemente para o “tanto faz” ou para o “está bem das duas maneiras” — a já célebre mistura normativa, a que não escapa a maior parte da comunicação social e o próprio Diário da República.
No entanto, se a dimensão do desastre pode surpreender, o desastre em si era previsível. O Acordo Ortográfico é conhecido pela quantidade de pareceres negativos que reuniu, com a notável excepção do parecer do autor do próprio Acordo. Muitas foram as vozes que, avisadamente, alertaram para a falta de coerência da norma proposta, para a total ausência de sustentação académica, para a sua completa desadequação ao sistema vocálico português e para a falta de debate que envolveu a implementação do Acordo Ortográfico.
Para cúmulo, assistimos hoje em dia ao absurdo da não vigência do AO90 na maior parte do espaço lusófono, contrariando a toda a linha o objectivo (impossível) da união ortográfica. Se a Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 não tivesse sido aprovada, ter-se-ia evitado este fiasco completo. Também por este motivo, a ILC-AO propõe a revogação desta Resolução e a realização de estudos complementares que atestem a viabilidade económica, o impacto social e a adequação do Acordo Ortográfico ao contexto histórico, nacional e patrimonial em que se insere.
No caso português, os efeitos nocivos do AO90 fazem-se notar ainda no crescente apagamento do Português Europeu em favor do Português do Brasil. As especificidades do Português Europeu que, na letra do Acordo, ficaram salvaguardadas (tais como “facto” ou “contacto”) são, na prática, constantemente esquecidas, varridas pela enorme pressão do Português do Brasil sobre o Português Europeu. Esta pressão, que já existia mesmo sem Acordo Ortográfico, deixou agora pura e simplesmente de ser estancada. No campo da tradução, o cenário é ainda mais desastroso. À boleia da ortografia, a própria sintaxe e o vocabulário do Português Europeu são ignorados — sendo agora uma Língua “universal”, nada impede que filmes e livros nos cheguem, pura e simplesmente, legendados ou traduzidos em Português do Brasil.
Há, de facto, uma luta que é preciso travar e um resgate da nossa identidade que tem de ser feito.
No entanto, na sua quase candura, o Projecto de Lei preconizado por esta Iniciativa Legislativa é surpreendentemente inócuo do ponto de vista ortográfico. A ILC-AO não revoga o Acordo Ortográfico e não anula sequer o 2º Protocolo Modificativo desse mesmo Acordo. Pretende, simplesmente, a revogação da RAR n.º 35/2008 de 29 de Julho — a Resolução em que a Assembleia da República aceita como bom o princípio contido no 2º Protocolo Modificativo, segundo o qual três países serão suficientes para dar vida a um Acordo que prevê a sua utilização por oito.
ENTREGA DA ILC-AO
Esta Iniciativa Legislativa foi entregue na Assembleia da República no dia 10 de Abril de 2019. Nesse mesmo dia, recebeu a designação de Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª e foi publicada no Diário da Assembleia da República n.º 85 — II Série-A.
Como se percebe pela consulta desse documento, constata-se que o texto da ILC foi “acordizado” nesta sua reprodução no Diário da Assembleia da República. Tratou-se de uma medida abusiva porquanto, como é evidente, o texto de um Projecto de Lei, seja ele qual for, deve ser mantido na íntegra, ao abrigo de “edições” ou “correcções” que não as dos seus autores ou as que forem acordadas em sede de debate parlamentar. Só assim será possível proteger o processo legislativo, evitando a sua contaminação por factores estranhos, passíveis de influenciar as fases seguintes, do debate e da votação sobre a matéria em questão. A ILC-AO solicitou ao Presidente da Assembleia da República a reposição do texto original invocando a condição “ne varietur” que deve estar subjacente a qualquer proposta de Lei mas esta mensagem não obteve resposta.
Infelizmente, a ausência de resposta por parte da Assembleia da República, ou a resposta apenas a parte das questões levantadas, viria a revelar-se uma constante ao longo de toda a tramitação da ILC-AO.
Depois de entregue, a apreciação da ILC-AO, numa primeira fase, ficou a cargo da Divisão de Apoio ao Plenário (DAPLEN). Competiu a esta Divisão a validação das assinaturas entregues, bem como a elaboração de uma nota técnica e de uma nota de admissibilidade.
Esta Divisão deu início a um processo rigoroso, tendo-nos exigido, por duas ocasiões, a entrega de mais assinaturas. Numa primeira ocasião, em Junho de 2019, foram-nos solicitadas mais 1.024 assinaturas, tendo a ILC-AO entregue 1.694. Em Setembro de 2019, já depois da análise do Instituto de Registos e Notariado, são-nos pedidas mais 86 subscrições, tendo a ILC-AO entregue 1.385. Nas duas ocasiões, a Divisão de Apoio ao Plenário definiu prazos de 30 dias úteis para a entrega das assinaturas em falta, o que explica a morosidade desta fase do processo. Oficialmente, a ILC-AO passou a contar com 21.206 subscritores.
Apesar de tudo, a apreciação da Divisão de Apoio ao Plenário foi justa, como se pode verificar pelos documentos produzidos — Nota de Admissibilidade e Nota Técnica. Chamamos a atenção para este último documento, de 14 páginas, que reuniu contributos da Divisão de Apoio ao Plenário, da Divisão de Apoio às Comissões, da Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar e da Biblioteca da Assembleia da República e que acaba por ser o único em que o Parlamento verdadeiramente aborda questões de conteúdo, salientando o que está em causa na nossa proposta de revogação da RAR n.º 35/2008. Já a Nota de Admissibilidade é taxativa na sua conclusão de que “A apresentação desta iniciativa cumpre os requisitos formais de admissibilidade previstos na Constituição, no Regimento da Assembleia da República e na Lei sobre a Iniciativa Legislativa dos Cidadãos.” O destaque a negrito é da própria Divisão de Apoio ao Plenário.
Com base nestes dois documentos, S. Excia. o Presidente da Assembleia da República admitiu formalmente a ILC-AO no dia 6 de Novembro de 2019. Nesse mesmo dia, esta Iniciativa legislativa baixou à 12ª Comissão (Comissão de Cultura e Comunicação), para elaboração do respectivo parecer. Foi designado relator o deputado Pedro Cegonho (PS).
INCUMPRIMENTO DE PRAZOS
Eis-nos chegados ao cerne da questão. Nos termos do n.º 1 do Artigo 10.º da Lei n.º 17/2003 de 4 de Junho (Iniciativa Legislativa de Cidadãos), “Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade”. No n.º 1 do artigo anterior, relativo ao Exame em Comissão, lê-se que “Admitida a iniciativa, o Presidente da Assembleia da República ordena a sua publicação no Diário da Assembleia da República e remete-a à comissão especializada competente para, no prazo de 30 dias, elaborar o respectivo relatório e parecer”.
Sucede que, apesar dos nossos protestos, o relatório final do deputado Pedro Cegonho só seria publicado no Diário da Assembleia da República no dia 16 de Julho de 2020, ou seja, oito meses e dez dias depois de ter baixado à 12ª Comissão. De referir que a página da ILC-AO no sítio do Parlamento [https://www.parlamento.pt /ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43665] apresenta como data de “envio do relatório ao Presidente da Assembleia da República” o dia 29 de Junho de 2020. No entanto, para efeitos da contagem do referido prazo de 30 dias, deve considerar-se este dia 16 de Julho, ou, quando muito, o dia da sua aprovação na Comissão de Cultura, 14 de Julho.
Como é evidente, a data de “envio do relatório ao Presidente da Assembleia da República” não pode ser anterior ao dia em que esse relatório final é aprovado na Comissão de Cultura e Comunicação. Esta Iniciativa Legislativa só viria a ser apreciada na Conferência de Líderes (órgão que decide a agenda do Plenário), no dia 16 de Setembro de 2020, ou seja, dez meses e dez dias depois da sua admissão formal pela Assembleia da República.
Mesmo que a contagem do tempo seja feita apenas em termos de dias úteis; mesmo considerando que poderão existir factores suspensivos da contagem do tempo — embora a Lei n.º 17/2003 não os refira — estamos certos de que o prazo de 30 dias prescreveu muito antes de Julho de 2020.
A ILC-AO foi recebida em audiência pela Comissão de Cultura no dia 19 de Novembro de 2019 e reuniu com o deputado-relator no dia 18 de Dezembro de 2019, naquele que seria, formalmente, o último dia do prazo previsto na Lei. Nesse encontro, Pedro Cegonho aludiu à necessidade de se deslocar ao estrangeiro como justificação para um eventual pequeno atraso na entrega do seu relatório, o que aceitámos, de boa-fé, sem cuidarmos sequer de saber se essa deslocação constituía uma suspensão legal, ou apenas informal, da contagem do tempo. Nunca foi nossa intenção saltarmos etapas no processo legislativo. Pelo contrário, considerámos sempre que a existência de um relatório consistente e enquadrador da problemática do Acordo Ortográfico seria benéfica para o debate posterior.
Somente no dia 8 de Junho de 2020, quando o atraso já se nos afigurava insustentável, tomámos a liberdade de contactar o Gabinete do Presidente da Assembleia da República, solicitando, nos termos da Lei, o agendamento do debate e votação da Iniciativa. Infelizmente, mais uma vez, esta mensagem não obteve qualquer resposta. Seria necessário aguardarmos ainda mais de três meses, até à referida reunião da Conferência de Líderes em Setembro. Nunca nos foi dada qualquer explicação sobre a contagem do tempo ou para o atraso enorme com que a ILC-AO foi apreciada naquele órgão.
Este atraso, por si só, já seria sempre prejudicial, porquanto se sabe que os tempos de espera nunca são neutros, e favorecem geralmente “a situação”. No caso vertente, os dez meses de decorridos desde a admissão da ILC-AO até à sua apreciação em Conferência de Líderes foram (mais) dez meses em que o Acordo Ortográfico continuou a implementar-se sem contraditório ou sem um debate digno desse nome — um adiamento que, na prática, continua a somar-se até ao momento presente.
No entanto, para esta ILC-AO, o prejuízo não se limitou ao simples atraso. Analisando todo este processo em retrospectiva, parece-nos hoje evidente que o deputado- relator precisou de tempo para contrariar a Nota de Admissibilidade dos próprios serviços da Assembleia da República — e pôde tomá-lo para si, tranquilamente, sem que daí resultasse o agendamento do debate da ILC-AO, nos termos da Lei.
No dia 3 de Março de 2020 a Comissão de Cultura aprova uma proposta do deputado- relator em que este, expressando “dúvidas” sobre a constitucionalidade do Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª, solicita o apoio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (1ª Comissão).
Devemos dizer que as “dúvidas” do deputado-relator não são compreensíveis. O parecer não se limita a contrariar as conclusões da Nota de Admissibilidade, mas desafia também o simples senso comum ao declarar que a Assembleia da República não é competente para reavaliar uma sua Resolução. Recordamos que o Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª não revoga o Acordo Ortográfico nem o II Protocolo Modificativo, que permaneceria válido, nos mesmos termos em que foi acordado em São Tomé e Príncipe em 2004, no âmbito da V Conferência da CPLP. Do mesmo modo, a ILC-AO não belisca a liberdade que assiste ao executivo para, se assim o entender, submeter ao Parlamento uma nova proposta com vista à sua introdução na ordem jurídica portuguesa. Mais se infere que a reavaliação da Resolução n.º 35/2008, volvidos mais de doze anos sobre a sua aprovação, constituiria também um exercício do dever de fiscalização da acção governativa que compete à Assembleia da República.
Pelo exposto, concluímos que as “dúvidas” do deputado-relator talvez não possam ser dissipadas, mas não é possível transformá-las em “certezas”, no sentido da inconstitucionalidade. Só perante uma “certeza” seria possível — mas não obrigatório — rejeitar liminarmente o debate de uma Iniciativa Legislativa com base na sua suposta inconstitucionalidade.
Na sequência do pedido da 12ª Comissão, a 1ª Comissão nomeou, no dia 11 de Março de 2020, um novo deputado-relator, Pedro Delgado Alves (PS), com o objectivo de aprofundar a análise da conformidade constitucional da ILC-AO. Seria necessário aguardarmos mais uns meses, até ao dia 24 de Junho de 2020, para que a 1ª Comissão aprovasse este novo parecer e o remetesse à 12ª Comissão.
CONDICIONAMENTO DA OPINIÃO PÚBLICA E DA PRÓPRIA AR
A aprovação deste parecer da 1ª Comissão foi, também ela, polémica. No dia 23 de Junho, véspera da reunião da Comissão, eis que surgem na Comunicação Social informações sobre o parecer em questão, dando como certa a conclusão de que um “Acordo ortográfico não pode ser suspenso por cidadãos” (Rádio Renascença e outros) [v. compilação de notícias publicadas nessa ocasião https://cedilha.net/ap53/2020/06/ilc-no-parlamento/].
Ao apresentar o parecer da CACGLG como um facto consumado, a Comunicação Social acaba por condicionar a opinião pública e a própria Assembleia da República, a começar pelos deputados que terão de votar o relatório. A ILC-AO tentou contrariar esta abordagem da comunicação social, enviando a sua própria circular à imprensa — da qual não houve registo de qualquer eco nos vários órgãos de comunicação.
UM PARECER PARCIAL
A ILC-AO, nunca tendo sido contactada pela 1ª Comissão, desconhecia naturalmente o conteúdo do parecer de Pedro Delgado Alves e, como tal, só teve conhecimento dessa informação pela comunicação social. Atendendo à apresentação enviesada deste assunto perante o público, a ILC-AO tentou, nesse mesmo dia, esclarecer as questões vindas a lume, em carta dirigida ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Luís Marques Guedes. Nesse contacto, que pedimos para ser distribuído pelos deputados com assento na 1ª Comissão, manifestámos a nossa estranheza pela divulgação da informação pela Comunicação Social e tentámos, na medida do possível, esclarecer as afirmações vindas a lume. Esta mensagem não teve resposta. Desconhecemos se a nossa informação foi prestada aos deputados. O certo é que, nesse dia 24 de Junho de 2020, o relatório de Pedro Delgado Alves, não sendo consensual, foi aprovado pela 1ª Comissão.
Resumidamente, o parecer da 1ª Comissão defende que deve haver um paralelismo entre os mecanismos de aprovação e de revogação de um Tratado Internacional como é o Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico. Deste modo, se a RAR n.º 35/2008 foi aprovada através de um Projecto de Resolução de iniciativa governamental, também a sua revogação deve ser desencadeada pelo Governo. Além disso, e por conseguinte, essa proposta de revogação deve assumir a forma de Projecto de Resolução e não de Projecto de Lei. Argumenta o parecer da 1ª Comissão que “o consenso doutrinal e a prática parlamentar consolidada apontam [nesse] sentido”.
O simples enunciado desta premissa é suficiente para a rebater: não pode haver “paralelismo” entre os processos de aprovação e de revogação de um Tratado, porquanto a figura da revogação de um Tratado nem sequer existe. Por conseguinte, temos alguma dificuldade em identificar o “consenso doutrinal” e a “prática parlamentar” a que se refere o deputado-relator. Ainda assim, permitimo-nos lembrar que “apontar no sentido” não é o mesmo que “obrigar”. O facto de as propostas de adesão a Tratados surgirem geralmente do executivo não significa que tenha de ser sempre dessa forma, nem que se crie uma obrigação de paralelismo para o processo, não de revogação, mas de denúncia ou de cessação da vigência de um Tratado. E muito menos se cria a “reserva de iniciativa do Governo” nesta matéria, sob pena de a Assembleia da República, numa matéria que é da sua competência — a aprovação ou reprovação de Tratados Internacionais — passar a estar atada de pés e mãos, transformando-se numa mera câmara de eco do executivo.
Todavia, ainda que, por mera hipótese académica, consideremos este raciocínio, o que importa termos presente é o facto de o Segundo Protocolo Modificativo continuar a existir, como já tivemos oportunidade de referir — ou seja, toda esta argumentação é lateral ao caso em apreço. Com a aprovação do Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª, Portugal não ficaria em pior situação do que outros países que ainda não ratificaram esse Tratado ou mesmo o próprio Acordo Ortográfico. Aí, sim, o reiterado incumprimento do AO90 por parte de quase todos os países de Língua Oficial Portuguesa deveria constituir factor de extinção da vigência dessa convenção.
Subsiste, por fim, a questão da forma, isto é, Projecto de Lei versus Projecto de Resolução. Sobre este assunto diremos apenas que não faz sentido que o debate sobre esta matéria seja travado por uma questão formal, tanto mais que, também aqui, e como veremos adiante, não há consenso entre os especialistas.
Nesta altura, considerando o completo desrespeito pelo prazo e pela letra da Lei n.º 17/2003 (taxativo na abertura das ILC a todas as matérias da competência da AR, salvaguardadas as excepções que a Lei também tipifica e nas quais a ILC-AO não incorre), o teor do parecer produzido pela CACDLG e o condicionamento da opinião pública através das notícias veiculadas à comunicação social, tornou-se evidente a intenção de evitar a todo o custo o debate sobre o nosso Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª. Numa tentativa de contrariarmos esse destino anunciado, solicitámos à Comissão de Cultura e Comunicação um esclarecimento sobre os próximos passos na tramitação da ILC-AO. Como esta mensagem não obteve resposta, deduzimos que o assunto estaria já nas mãos do Presidente da Assembleia da República.
Nesse pressuposto, enviámos ao Presidente da Assembleia da República, no dia 3 de Julho de 2020, uma primeira contestação ao parecer emitido pela Comissão de Assuntos Constitucionais, um envio que repetimos dias depois, a 7 de Julho de 2020, com uma pequena adenda. Estas mensagens não obtiveram resposta.
Afinal, no dia 14 de Julho de 2020, já com base neste parecer da 1ª Comissão, o deputado-relator da 12ª Comissão reformula e faz aprovar, nessa mesma Comissão, uma nova versão do seu relatório — a já referida versão final do seu parecer, publicada em Diário da Assembleia da República dois dias depois, em 16 de Julho de 2020. Nesta nova versão, Pedro Cegonho propõe o não-agendamento da ILC-AO com base na sua suposta inconstitucionalidade.
Gostaríamos de salientar o facto de Pedro Cegonho, tanto no seu primeiro parecer como neste último, se escusar a apresentar a sua posição pessoal sobre o nosso Projecto de Lei. Todavia, enquanto no primeiro relatório remetia a posição do “grupo parlamentar em que se insere” para o “debate posterior”, nesta versão final propõe simplesmente a eliminação desse “debate posterior”.
A ILC-AO, perante este novo relatório, escreve novamente ao Presidente da Assembleia da República e a todos os líderes parlamentares com assento na Conferência de Líderes. Nessa mensagem, onde mais uma vez recordámos a existência de um prazo por cumprir, chamámos a atenção para os erros contidos no relatório e solicitámos novamente o agendamento do debate e votação em Plenário do Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª.
Por uma vez, esta mensagem obteve resposta. Em ofício datado de 24 de Julho de 2020, o Presidente da Assembleia da República faz saber que “é sua intenção levar as questões suscitadas à apreciação da Conferência de Líderes, no início da próxima Sessão Legislativa”.
Esta carta, aparentemente reveladora de algum acolhimento dos nossos protestos, é na verdade desastrosa. Recordamos que a nossa exposição tocava vários aspectos, desde a vertente da constitucional à questão central dos prazos definidos na Lei para o agendamento de Iniciativas Legislativas de Cidadãos. Ora, se a maior ou menor conformidade com a Lei Fundamental pode ser alvo de divergência e de discussão alargada, a Lei n.º 17/2003, na sua simplicidade, dispensa interpretações — deve apenas cumprir-se. E, como é evidente, o incumprimento da Lei não pode ser levado à conta de uma mera “questão suscitada”.
Com este ofício, o Presidente da Assembleia da República, que podia e devia promover por si só o agendamento do debate da ILC-AO, cumprindo a Lei, preparou-se para, em sede de Conferência de Líderes, abdicar dessa sua responsabilidade.
Devemos dizer que, durante largos meses, a Comissão Representativa da ILC-AO confiou na instituição Assembleia da República. Chegámos, inclusivamente, a participar na “dança de pareceres”, quando a questão da inconstitucionalidade do nosso Projecto de Lei foi levantada.
Por simples boa-fé — na qual reconhecemos hoje uma boa dose de ingenuidade — tentámos dar o nosso contributo para o debate, fazendo chegar às Comissões e aos deputados-relatores pareceres de nomes como Francisco Ferreira de Almeida ou José Lucas Cardoso, professores universitários de Direito que concluem, sem margem para dúvidas, que a ILC-AO é válida do ponto de vista constitucional e que o seu debate e votação em Plenário deve ser agendado. Vale a pena consultar, também, no “sítio” da ILC-AO, várias intervenções sobre esta matéria, com destaque para a recensão crítica ao parecer da 1.ª Comissão [https://ilcao.com/2020/07/08/o-parecer-da-comissao-de-assuntos-constitucionais-uma-obra-de-ficcao-juridica/].
À luz do que sabemos hoje, muito lamentamos não termos insistido, as vezes que fossem necessárias, no simples agendamento do debate e votação da ILC-AO/Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª, a partir do momento em que se esgotou o prazo de 30 dias previsto na Lei.
ALTERAÇÕES À LEI N.º 17/2003 (INICIATIVA LEGISLATIVA DE CIDADÃOS)
Infelizmente, o “atropelo processual” sofrido pela ILC-AO não se ficou pela inobservância do prazo para o seu agendamento. Em Julho de 2020, como vimos, é aprovado na Comissão de Cultura e Comunicação o parecer que considera a ILC-AO inconstitucional. Em Agosto de 2020 entra em vigor uma alteração cirúrgica ao n.º 1 do Artigo 10.º da Lei n.º 17/2003 (Iniciativa Legislativa de Cidadãos), nos seguintes termos:
Onde se lia
1 – Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade.
Passa a ler-se
1 – Recebido o parecer da comissão ou esgotado o prazo referido no n.º 1 do artigo anterior, o Presidente da Assembleia da República promove o agendamento da iniciativa para uma das 10 reuniões plenárias seguintes, para efeito de apreciação e votação na generalidade, salvo se o parecer da comissão tiver concluído pela não reunião dos pressupostos para o respectivo agendamento.
Dada a coincidência temporal, é difícil não vermos neste acrescento uma alteração feita à medida desta Iniciativa Legislativa. Esta e outras medidas limitadoras da democracia participativa foram propostas nesta altura e levaram mesmo a um veto do Presidente da República. Nessa ocasião, Marcelo Rebelo de Sousa diria mesmo que “num tempo já complexo para a reforma e a actualização dos partidos políticos e de aparecimento de fenómenos inorgânicos sociais e políticos de tropismo anti-sistémico, tudo o que seja revelar desconforto perante a participação dos cidadãos não ajuda, ou melhor, desajuda a fortalecer a democracia. Com o devido respeito, afigura-se-me que o passo dado representa um sinal negativo para a democracia portuguesa e pode ser visto como um sinal de fechamento na Assembleia da República, na participação dos cidadãos e na vitalidade da própria democracia”.
Permitimo-nos ir um pouco mais longe: na sua nova redacção, o referido Artigo desafia a própria noção de “parecer”, transformando-o numa sentença, mesmo que não tenha merecido, como foi o caso da ILC-AO, a unanimidade da Comissão que o aprovou.
Em rigor, a Conferência de Líderes está agora legalmente condicionada a aceitar como válido qualquer parecer negativo remetido pelas Comissões, sob pena de incumprir a Lei. No caso de os “pressupostos” se enquadrarem no campo constitucional, esta alteração à Lei n.º 17/2003 poderá ela mesma ser inconstitucional, pois outorga às Comissões e em especial à 1ª Comissão, um poder que estas não podem nem devem deter — o poder de se substituírem ao próprio Tribunal Constitucional.
A APRECIAÇÃO EM CONFERÊNCIA DE LÍDERES
Apesar da polémica, esta alteração foi aprovada e é neste contexto de alteração cirúrgica da Lei — a que se soma o condicionamento da opinião pública e a total desconsideração pelo prazo legal para o seu agendamento — que, no mês seguinte, a ILC-AO/Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª chega finalmente à Conferência de Líderes.
A reunião da Conferência de Líderes teve lugar no dia 16 de Setembro de 2020. De acordo com o ofício recebido dias depois, a 21 de Setembro, o Presidente da Assembleia da República — apesar de manifestar, também ele, uma compreensível “dificuldade em compreender o motivo pelo qual uma iniciativa como esta, que põe em causa uma decisão da Assembleia da República, não possa ser discutida por esta” — acaba por confirmar os nossos piores receios, deixando nas mãos da Conferência de Líderes os destinos da ILC-AO.
Ora, como se sabe, a competência para o agendamento de uma Iniciativa Legislativa por esgotamento do prazo para a produção do respectivo relatório é do Presidente da Assembleia da República, e não da Conferência de Líderes. Apesar de as actas deste órgão não serem do domínio público, é lícito concluir que a questão do prazo, sendo ignorada pelo Presidente da Assembleia da República, também o foi pela Conferência de Líderes.
Tudo se resumiu, portanto, à apreciação de um relatório enviesado, entregue fora do prazo, num órgão em que as decisões são tomadas por votação e onde a influência dos diversos líderes parlamentares é proporcional ao peso da respectiva bancada. A ILC-AO, apesar de ter sido entregue na XIII Legislatura, está a ser escrutinada na XIV, na qual o Partido Socialista, o único que sempre recusou qualquer diálogo com esta Comissão Representativa, se tornou o Grupo Parlamentar mais expressivo. A ele pertencem os dois deputados que, julgamos que por sorteio, foram chamados a pronunciar-se sobre esta Iniciativa Legislativa.
A PROPOSTA DE CONVOLAÇÃO EM PETIÇÃO
Curiosamente, como se pode ler no Anexo 18, a Conferência de Líderes “mostrou abertura” à convolação da ILC-AO em petição, desde que nos termos indicados no relatório sobre o nosso Projecto de Lei, isto é, “petição junto da Assembleia da República, para que esta recomende ao Governo as medidas desejadas”.
Seria difícil conceber um exercício mais absurdo do que uma petição solicitando à Assembleia a aprovação de um Projecto de Resolução mediante o qual a AR resolve “recomendar ao Governo” as “medidas desejadas” — sendo que as “medidas desejadas” são, neste caso, a apresentação à Assembleia da República de um Projecto de Resolução que promova a revogação da RAR n.º 35/2008.
Trata-se de um jogo de “recomendo-te que me recomendes” desprovido de qualquer sentido, naturalmente condicionado à eventualidade de um qualquer deputado ou Grupo Parlamentar entender por bem corresponder à petição, materializando o respectivo Projecto de Resolução que, mesmo assim, estaria condenado ao fracasso, a exemplo do sucedido com todas as outras petições sobre o Acordo Ortográfico no Parlamento.
Na prática, e para todos os efeitos, a Conferência de Líderes rejeita o debate da ILC- AO. O aparecimento desta proposta, que a Conferência de Líderes sabia ser inaceitável, só se explica pela necessidade de diluir, junto da opinião pública, o ónus da opção pelo bloqueio liminar desta Iniciativa Legislativa.
Esta Comissão Representativa, em mensagem para o Presidente da Assembleia da República, respondeu à Conferência de Líderes no dia 8 de Outubro de 2020, nos seguintes termos:
1) Lembrando mais uma vez o imperativo moral do agendamento puro e simples da ILC-AO, tendo em conta os prazos previstos na Lei;
2) Propondo que, a haver convolação, se optasse pela convolação da ILC-AO, sim, mas directamente em Projecto de Resolução da própria AR, nos mesmos termos do nosso Projecto de Lei;
3) Recusando a convolação da ILC-AO em petição, explicando os motivos dessa recusa.
A resposta do Gabinete da Presidência não se fez esperar. Em ofício datado de 9 de Outubro de 2020, o Gabinete da Presidência identifica a nossa mensagem como a “missiva em que informamos declinar a pretensão de proceder à convolação da iniciativa em petição” e informa que foi dado conhecimento “da decisão” aos Grupos Parlamentares, Deputados Únicos Representantes de um Partido e Deputadas Não inscritas.
Naturalmente, protestámos, no dia 11 de Outubro de 2020, tendo em conta que a recusa da convolação em petição era o que menos importava na nossa mensagem.
Em resposta, o Gabinete do Presidente da Assembleia da República assegurou-nos que toda a nossa informação tinha sido transmitida aos Grupos Parlamentares, Deputados Únicos Representantes de um Partido e Deputadas Não inscritas.
À ESPERA DA CONFERÊNCIA DE LÍDERES
Desta troca de correspondência resulta que pelo menos o PAN e o PCP ponderam abordar novamente a questão da ILC-AO na Conferência de Líderes. Todavia, independentemente das eventuais iniciativas dos diversos Grupos Parlamentares, a própria Conferência de Líderes, pelas mais elementares regras de civilidade, teria de dar resposta à nossa última carta.
O facto é que essa resposta, até agora, não chegou.
A ILC-AO, pacientemente, esperou meses por esse agendamento. Numa atitude construtiva, publicou no seu sítio oficial diversos contributos para o debate, bem como diversos apelos ao agendamento:
https://ilcao.com/2020/12/10/continuamos-a-espera/ Dezembro de 2020
https://ilcao.com/2021/02/11/o-que-esta-em-causa/ Fevereiro de 2021
https://ilcao.com/2021/03/01/um-debate-por-haver/ Março de 2021
https://ilcao.com/2021/04/12/a-ilc-ainda-existe/ Abril de 2021
No dia 12 de Abril de 2021, a ILC-AO decide finalmente questionar o Presidente da Assembleia da República sobre este atraso, chamando a atenção para a página do Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª no sítio da Assembleia da República, “parada no tempo” há largos meses (nem arquivado, nem rejeitado, nem agendado) e recordando que, não estando a ILC-AO representada na Conferência de Líderes, cabe ao Presidente da Assembleia da República o dever de suscitar este debate naquele órgão, promovendo o respectivo agendamento.
No dia 27 de Abril de 2021, numa resposta a todos os títulos chocante, diz-nos o Gabinete da Presidência que a apreciação desta Iniciativa Legislativa de Cidadãos foi concluída na reunião de 16 de Setembro de 2020. Trata-se de uma não-resposta, que deixa em aberto todas as questões de fundo levantadas por nós — desde o agendamento da ILC-AO por força do prazo previsto na Lei n.º 17/2003 até à sugestão para a simples convolação da ILC-AO em Projecto de Resolução. Mas, acima de tudo, suscita outras questões que gostaríamos igualmente de ver respondidas:
• se a Conferência de Líderes não voltou a pronunciar-se sobre a ILC-AO, em que sede foi a nossa contra-proposta apreciada?
• se a apreciação da ILC-AO foi concluída na reunião de 16 de Setembro de 2020, por que motivo nos é enviada uma proposta de convolação da iniciativa legislativa em petição, alimentando legítimas expectativas da reapreciação deste assunto em sede de Conferência de Líderes?
Refira-se, a título de curiosidade, que a página da ILC-AO no sítio da Assembleia da República
[https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas /DetalheIniciativa.aspx?BID=43665],
certamente em função das nossas observações, foi finalmente actualizada, no final de Abril de 2021, com mais uma entrada com a seguinte nota:
2020-09-16 | Aguarda agendamento pela Conferência de Líderes
Obs: Iniciativa não agendada por não estarem cumpridos os requisitos constitucionais, legais e regimentais para o efeito (cfr. reunião da Conferência de Líderes do dia 16 de Setembro de 2020).
Deste modo, ficámos a saber, no final de Abril de 2021, que a ILC-AO passou ao estado de “a aguardar agendamento” no dia 16 de Setembro de 2020 para, nesse mesmo dia, ser decidido que não cumpre os “requisitos constitucionais, legais e regimentais” para o efeito.
Ao mesmo tempo, e mais uma vez, diz-nos ainda o Gabinete da Presidência que também esta última mensagem foi encaminhada para os diversos Grupos Parlamentares, Deputados Únicos Representantes de um Partido e Deputadas não- inscritas, bem como para a Comissão de Cultura e Comunicação.
CONCLUSÃO
Como referimos na nossa última mensagem para o Presidente da Assembleia da República, as Iniciativas Legislativas de Cidadãos não estão representadas na Conferência de Líderes — ao contrário dos deputados, autores da esmagadora maioria dos Projectos de Lei que são apreciados em Plenário. Se de facto se quer acarinhar a democracia participativa, a defesa dos Projectos de iniciativa cidadã deve caber ao Presidente da Assembleia da República. O Gabinete da Presidência não pode limitar-se ao papel de simples correio entre as ILC e os Grupos Parlamentares. Quando uma boa parte das questões por nós suscitadas interpelam a própria Presidência da Assembleia da República — com destaque para o não cumprimento do prazo previsto na Lei para o agendamento de Iniciativas Legislativas de Cidadãos — a Presidência não pode dar-se por satisfeita com o encaminhamento das nossas mensagens para “os diversos Grupos Parlamentares, Deputados Únicos Representantes de um Partido e Deputadas não-inscritas”.
Neste contexto, entendeu esta Comissão Representativa que o contacto entre a ILC-AO e o Parlamento se encontra inquinado. Numa tentativa de desbloqueio deste impasse, o presente relato e respectiva cronologia foram encaminhadas para a Provedoria de Justiça no passado dia 25 de Setembro.
Esperamos que Provedora de Justiça possa recomendar à Assembleia da República o simples cumprimento da legislação em vigor, através do agendamento do debate e votação na generalidade de Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª, nos termos da Lei n.º 17/2003.
Paralelamente, e porque o processo que envolve a ILC-AO transcende o simples âmbito desta Iniciativa, antes colocando em causa os limites da Democracia Participativa no nosso país, solicitamos que a Provedoria de Justiça solicite ao Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade das alterações introduzidas na Lei n.º 17/2003 em Agosto de 2020, nomeadamente no seu Art.º 10º.
Por fim, no mais que inverosímil cenário em que a Assembleia da República pretenda justificar, regimentalmente ou por qualquer outra via, uma tamanha suspensão da contagem do tempo, solicitamos à Provedoria de Justiça que recomende ao Parlamento o agendamento do debate e votação na generalidade do Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª tendo em conta que os pressupostos de inconstitucionalidade que estão na base do seu afastamento não são credíveis.
]]>Mas, antes delas, uma outra ILC foi fazendo um longo e duro caminho até estar composta, aceite e pronta à votação. Se não tivesse esbarrado, antes, num muro. Falamos da ILC-AO, respeitante ao Acordo Ortográfico (AO90) e de que já aqui se falou mais do que uma vez (declaração de interesses: sou um dos subscritores). As raízes de tal iniciativa remontam a 2008 e centram-se no segundo protocolo modificativo do dito: “[o AO90] entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa.” Isto, que muitos políticos acharam natural, foi um golpe inadmissível. Um acordo que envolve oito países (depois de se lhes juntar Timor-Leste) não podia entrar em vigor só com o “sim” de três; ou melhor, só poderia se todos os oito tivessem ratificado essa alteração de fundo. Só que, de facto, quatro nem sequer ratificaram o acordo, quanto mais os dois protocolos modificativos; e os restantes fizeram-no com métodos e em datas bastante duvidosas, como também oportunamente aqui se demonstrou em Agosto e em Dezembro de 2019. Mas a verdade é que a Assembleia da República aprovou, pela Resolução n.º 35/2008, de 29 de Julho, esse inominável segundo protocolo. Objectivo da ILC-AO? Que a AR o revogasse.
Nestes muitos anos, e enfrentando mudanças de leis e regras, a ILC fez o seu caminho. Foi recolhendo assinaturas, entregou-as em Abril de 2019 (21.206 validadas, feitos os acertos) e foi transformada oficialmente em projecto de lei, com o número 1195/XIII. Datada de 30 de Outubro de 2019, a Nota de Admissibilidade concluía: “A apresentação desta iniciativa cumpre os requisitos formais de admissibilidade previstos na Constituição, no Regimento da Assembleia da República e na Lei sobre a Iniciativa Legislativa dos Cidadãos.” Tudo certo?
Sim e não. Porque depois o assunto emperrou. Em 6 de Novembro, baixou à Comissão de Cultura e foi como se tivesse baixado à terra, na acepção funerária do termo. Debateu-se, contrariou-se, pediram-se pareceres e… ignorou-se a Lei das ILC, a n.º 17/2003, que diz expressamente que o respectivo relatório e parecer devem ser elaborados no prazo de 30 dias e, esgotado tal prazo, a ILC deve ser agendada “para uma das 10 reuniões plenárias seguintes”. Ora o relatório/parecer só foi enviado ao Presidente da AR em 29 de Junho de 2020, com muitos 30 dias já gastos e só em 16 de Setembro de 2020 é que foi discutida em Conferência de Líderes, órgão ao qual cabe decidir a agenda do Plenário. E o que sugeriram os líderes em conferência? Que a ILC fosse transformada em petição. Imagine-se o ridículo: pedir à AR que recomendasse ao governo que pedisse à AR que revogasse a resolução da própria AR!
Como isto não tinha, nem tem, pés ou cabeça, a resposta foi “não”. Resultado: a ILC-AO continua lá, embalsamada, à espera, com as seguintes notas (claramente contraditórias): “Aguarda agendamento pela Conferência de Líderes”; e na linha abaixo: “Iniciativa não agendada por não estarem cumpridos os requisitos constitucionais, legais e regimentais para o efeito”. Tudo isto se resume a uma argumentação surreal: os cidadãos podem propor leis, mas leis não revogam resoluções; para isso, tinham de propor uma resolução; só que os cidadãos não estão autorizados, por lei, a propor resoluções; solução? A petição; que é pedir ao governo da nação que recomende a tal resolução que revogue a resolução. Há paciência?
Tudo isto é uma não-resposta. Lembra-me um conto de Hergé que li em miúdo, chamado O “Manitoba” não responde. O “Manitoba” era um transatlântico, silenciado por piratas. Terá o “Manitoba” encalhado em São Bento, transformando a ILC-AO numa ILCalem-se?
nuno.pacheco@publico.pt
Nota: transcrição integral de artigo publicado no jornal PÚBLICO na edição de quinta-feira, 10 de Junho de 2021.
]]>Na carta recebida entretanto [com data de 27 de Abril de 2021], ficam sem resposta praticamente todas as questões que endereçámos ao Senhor Presidente da Assembleia da República.
O Gabinete da Presidência limita-se a informar que “a apreciação do Projecto de Lei n.º 1195/XIII/4ª (ILC) foi concluída na reunião da Conferência de Líderes do dia 16 de Setembro, que confirmou a impossibilidade de agendamento desta iniciativa por não estarem cumpridos os requisitos constitucionais, legais e regimentais” para esse agendamento.
A grande novidade é a expressão “foi concluída”. Então a Conferência de Líderes não fez, nessa reunião, uma proposta em que sugere a passagem da ILC a petição? E nós não respondemos a essa carta com uma contra-proposta, apresentando novos argumentos e levantando novas questões?
Em que sede foi a nossa contra-proposta apreciada? E quando?
Manda a lógica e o manual das boas práticas administrativas — para não falar nas mais elementares regras de cortesia — que o assunto continue a ser tratado em sede de Conferência de Líderes. A não ser assim, teremos de concluir que a sugestão que esse órgão nos enviou foi feita apenas “para inglês ver” e a nossa resposta, qualquer que ela fosse, seria sempre irrelevante — o assunto, afinal, foi “concluído” logo nesse mesmo dia 16 de Setembro.
A verdade é que a nossa resposta à Conferência de Líderes foi transmitida a todos os partidos com assento nesse órgão e pelo menos dois admitiram uma nova apreciação da ILC-AO nessa mesma sede.
A verdade é que a página da ILC-AO no sítio da Assembleia da República tem estado inalterada desde Junho de 2020, sem qualquer indicação do destino dado a esta Iniciativa Legislativa (nem “agendada”, nem “rejeitada”). Pese embora a inaceitável morosidade do processo, a ausência de modificações era, apesar de tudo, coerente, reflectindo o estado “em aberto” que, segundo toda a lógica, é o desta Iniciativa Legislativa.
Curiosamente, agora, depois de termos referido esse facto na nossa mensagem, foi essa mesma página rapidamente actualizada — exibindo agora a seguinte nota:
2020-09-16|Aguarda agendamento pela Conferência de Líderes
Obs: Iniciativa não agendada por não estarem cumpridos os requisitos constitucionais, legais e regimentais para o efeito (cfr. reunião da Conferência de Líderes do dia 16 de Setembro de 2020).
Apesar da data de lançamento deste verbete [2020-09-16, o próprio dia da reunião da CL] trata-se obviamente de um “remendo” recente, feito no final de Abril, em face da nossa insistência numa resposta da Conferência de Líderes. Ficamos a saber — agora — que a ILC-AO passou ao estado de “aguardar agendamento pela Conferência de Líderes” no dia 16 de Setembro e que, nesse mesmo dia, a Conferência de Líderes “concluiu a apreciação da Iniciativa”.
Indirectamente, esta, sim, é a verdadeira resposta da AR à nossa carta: “não insistam, o assunto foi concluído”.
O que significa esta posição da Assembleia da República?
A primeira conclusão — e a mais evidente — é que a Assembleia da República continua a ignorar a existência de um problema na Língua Portuguesa, causado pelo Acordo Ortográfico.
Perante a desagregação do ensino da Língua, perante o cAOs, perante a não ratificação do AO90 por metade dos países envolvidos e, em suma, perante a flagrante inutilidade do Acordo Ortográfico, a Assembleia da República continua a debater questões de pormenor.
Há um problema para resolver — e a Assembleia da República comporta-se como um nadador-salvador que, em vez de apressar o salvamento, exige que o náufrago lance o seu apelo segundo um regulamento que só ele domina.
É neste cenário de crise, em que o Português Europeu se encontra ameaçado de extinção, que esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos se assume grito de socorro — um pedido de ajuda dirigido ao mesmo plenário que, com a aprovação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, se tornou co-responsável pelo naufrágio. Esta é, infelizmente, a grande interpelação que a Assembleia da República insiste em deixar sem resposta.
Mas vejamos, por uma questão de minúcia, a lista completa das questões que a Assembleia da República continua a ignorar:
• Porque não foi agendada a ILC-AO em tempo útil, nos termos da Lei? Se há “requisitos legais” que não foram cumpridos são os que obrigam a Assembleia da República, nos termos da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, que prevê o agendamento de uma Iniciativa Legislativa passados 30 dias após a sua admissão na Comissão Permanente competente (neste caso, a Comissão de Cultura e Comunicação). A Assembleia da República deixou sem resposta a nossa comunicação de 8 de Junho de 2020 em que apontámos esta falha e especificamente solicitámos o agendamento da ILC-AO, tendo em conta a ultrapassagem de todos os prazos legais para esse efeito. De resto, a Assembleia da República ignorou esta questão em todas as ocasiões em que a referimos nas nossas mensagens (N/comunicações de 7 de Julho de 2020, 20 de Julho de 2020, 8 de Outubro de 2020 e 12 de Abril de 2021).
Ignorar correspondência incómoda não é uma atitude inédita por parte da AR. Já em 1 de Outubro de 2019 a AR ignorou uma carta em que solicitámos a publicação do nosso Projecto de Lei no Diário da Assembleia da República na grafia original, tal como foi por nós entregue. Não só este nosso pedido não foi atendido como a AR não nos deu qualquer resposta ou justificação.
• Porque não foi agendada a ILC-AO em nome do simples primado do debate? São conhecidos os casos em que é flagrante a inconstitucionalidade de alguns Projectos de Lei e, ainda assim, vários deputados e representantes da Comissão de Assuntos Constitucionais defendem a opção pelo debate. No caso da ILC-AO, em que a suposta inconstitucionalidade é contestada por vários juristas e pela própria Nota Técnica da Assembleia da República, o mais elementar senso comum deveria ditar o seu agendamento.
• Porque não foi considerada a convolação da ILC-AO em Projecto de Resolução? Na apreciação da ILC-AO considerou o deputado-relator que esta Iniciativa Legislativa é inconstitucional porque uma Resolução da Assembleia da República teria de ser revogada por outra Resolução e não por um Projecto de Lei — um parecer que, como referimos, está longe de ser consensual e contestámos. Em alternativa, propõe-nos a Conferência de Líderes que a ILC-AO seja convolada em petição, o que teria pelo menos a virtude de assegurar o debate. Ora, se o único obstáculo ao agendamento da ILC-AO é a sua forma de Projecto de Lei, sugerimos que a sugerida convolação tivesse lugar, sim, mas na forma de Projecto de Resolução. Esta nossa proposta foi ignorada, sem qualquer justificação.
• A Assembleia da República também não responde à nossa contestação da inconstitucionalidade da ILC-AO ou às razões da nossa rejeição da convolação em petição. Uma e outra são exemplos da lógica mais elementar: a Assembleia da República não pode reavaliar, por moto próprio, uma sua Resolução? Está limitada, numa matéria que é da sua competência, a “recomendar ao Governo” que este lhe recomende essa reavaliação?
• A Assembleia da República não esclarece sequer as suas próprias afirmações. Seria interessante percebermos como pode uma ILC que foi aceite sem quaisquer reservas por parte da Divisão de Apoio ao Plenário — entidade que se limitou a solicitar-nos mais assinaturas para compensar as que considerou inválidas — transformar-se de repente numa Iniciativa que erra a toda a linha, nos planos constitucional, legal e regimental. Em que consistem, em concreto, cada uma destas “falhas” da ILC-AO?
A falta de resposta a todas estas questões denuncia a sobranceria de quem acha que não tem de dar explicações. A ILC-AO é um incómodo, uma impertinência que deve ser despachada rapidamente, limitando ao máximo os “transtornos” que possa causar.
Ao desprezar sistematicamente a nossa argumentação a Assembleia da República faz saber que não quer entrar em diálogo — assumindo, portanto, um exercício de prepotência que é infelizmente comum no relacionamento entre cidadãos e instituições. Deste modo, a AR fica também com as mãos livres para construir, sem contraditório, a sua própria narrativa sobre a ILC-AO: esta Iniciativa Legislativa é inconstitucional e a única possibilidade de debate desta matéria — a convolação em petição — foi por nós rejeitada.
Como é evidente, a convolação em petição não podia senão ser rejeitada, pelas razões que já adiantámos: a Comissão Representativa não está sequer mandatada para aceitar esse travestimento, tendo em conta que a ILC surge, precisamente, como resposta ao falhanço de petições anteriores. Por outro lado, é difícil concebermos um exercício mais inútil do que “pedirmos” ao Parlamento que “recomende ao Governo” a apresentação de um Projecto de Resolução… ao Parlamento.
Mas devemos acrescentar ainda o seguinte: sendo, na aparência, uma “generosidade” da Conferência de Líderes, a proposta de “convolação em petição” é um presente envenenado, que visa demarcar o território da contestação ao Acordo Ortográfico: “o interesse por este debate é exclusivamente vosso, digam-nos se querem fazê-lo”.
Trata-se, no fundo, de uma posição em linha com a nossa tese inicial: para a Assembleia da República está tudo bem, nenhum mal aflige a Língua Portuguesa.
Com esta posição, a Assembleia da República-se assume-se como caixa de ressonância do Governo nesta matéria. Infelizmente para a AR, a posição do Governo é insustentável. O ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva considera o Acordo Ortográfico como “um dos acordos de maior vigência na história dos acordos“. Quem consegue dizer isto de um Acordo que, passados mais de trinta anos, ainda nem sequer foi ratificado por metade dos países envolvidos, só pode estar a alucinar. Quererá a Assembleia da República embarcar nesta alucinação?
Estamos certos de que esta posição não é consensual no Parlamento. O próprio Presidente da Assembleia da República terá manifestado, na Conferência de Líderes, a sua perplexidade pelo facto de o Plenário não poder reavaliar as suas próprias Resoluções.
A Assembleia da República está ainda a tempo de despertar e de promover o debate desta Iniciativa Legislativa. Só assim retomará a sua autonomia, assumindo a responsabilidade que tem na resolução deste problema. Serão bem-vindos todos os passos nessa direcção.
Até lá, e sem essa mudança de atitude, a Assembleia da República continuará a não fazer parte da solução para o problema da Língua Portuguesa.
Infelizmente, passados mais de dois anos sobre a entrega da ILC-AO no Parlamento, não podemos continuar passivamente à espera dessa inflexão. É chegado o momento de apresentarmos uma exposição do já longo historial desta Iniciativa Legislativa junto da Provedoria de Justiça. Esperamos que a mediação de um órgão independente possa devolver à Assembleia da República a sensatez e a transparência de processos que têm faltado no que à ILC-AO diz respeito.
Imagem: captura de écran da página da ILC-AO no sítio da Assembleia da República, repetindo a fórmula que nos foi enviada por e-mail: “por não estarem cumpridos os requisitos constitucionais, legais e regimentais para o efeito”. Para Memória Futura.
]]>Não pedimos, não queremos e não precisamos do Acordo Ortográfico.
António Emiliano, Apologia do Desacordo Ortográfico, 2010
A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno (…).
Fernando Pessoa, A Língua Portuguesa, edição Luísa Medeiros, 1997 edição Luísa Medeiros, 1997
O programa “É ou Não É?”, de dia 4 de Maio p.p., na RTP 1, moderado pelo jornalista Carlos Daniel, elucida flagrantemente as epígrafes escolhidas. Aliás, o que li e ouvi, em relação a intervenções, sobretudo no dia 5 de Maio, juntando os gurus oficiais do momento festivo, constitui um manancial de matéria que expõe, sem pejo, contradições, servilismo, arrogância intelectual, culto da ignorância, e porque não dizê-lo, estupidez, implicando lamentavelmente a Língua Portuguesa e a vil roupagem com que a mascararam, ridicularizando-a. Os versos do poeta Luís de Camões, que Augusto Santos Silva não aceita como figura para identificar e representar a Língua Portuguesa, traduzem bem a “surdez” e o “endurecimento” de uma “pátria” que não louva e favorece “o engenho”, mas “que está metida/ no gosto da cobiça e na rudeza/ de uma austera, apagada e vil tristeza” (Canto X de Os Lusíadas). Uma consciência reiterada, ao longo dos séculos, por muitos outros escritores e poetas – António Ferreira, Francisco Rodrigues Lobo, Francisco Manuel de Melo, António Vieira, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Vasco Graça Moura…
Se dúvidas houvesse sobre o facto de os cidadãos não encontrarem razão para o Acordo Ortográfico (AO) que foi decretado à sua revelia e, no caso português, contra todos os pareceres solicitados pelo Instituto Camões e estrategicamente escondidos do público, o programa da RTP 1, acima referido, demonstrou-o ao vivo: um moçambicano (Stewart Sukuma), um brasileiro (Arthur Dapieve) e um português (António Zambujo). Nenhum deles pensou alguma vez que esse acordo pudesse vir a acontecer, nem vislumbrou qualquer vantagem daí adveniente, muito pelo contrário. Eis as suas palavras: Stewart Sukuma – “O Acordo Ortográfico foi mais usado a nível político e económico, mais do que a nível cultural. Os artistas acham mais piada continuar a cantar no seu português criado por via destes casamentos todos que existem. (…) é isto que faz a língua mais bonita. Pelo que sei, Moçambique nunca seguiu à risca o AO. (…) Não sentimos o Acordo em Moçambique”; Arthur Dapieve – “Esse Acordo Ortográfico nasceu um pouco de uma tentativa de uma certa utopia de que se a gente escrevesse tudo exactamente da mesma maneira, nós nos tornaríamos mais próximos. Nesse sentido, ele fracassou. A riqueza da língua portuguesa é a variedade de falares. Não era necessário.”; António Zambujo – “Exactamente o que ele disse. Subscrevo o que disse o Arthur. Não era necessário.” Naturalmente, não incluí, neste painel a três, os convidados que, directa ou indirectamente, representavam uma posição acordista ou não-acordista.
Situação confrangedora, e que elucidou igualmente em flagrante o porquê do caos linguístico instalado na escola e na sociedade portuguesas, após a imposição do AO, foi a da jornalista, professora e escritora Isabela Figueiredo. Efectivamente, ao afirmar, com uma surpreendente leveza, que usava uma “ortografia mista”, escrevendo à sua maneira (omissão das consoantes mudas, mas manutenção dos acentos) e deixando aos revisores a tarefa da uniformização, Isabela Figueiredo apontou a razão do caos que grassa na sociedade portuguesa, com cada um escrevendo à sua maneira; fez também, e infantilmente, papel de ignorante porque não se acredita que desconheça o carácter normativo da ortografia, que a sua “ortografia mista” põe em causa, bem como a estabilidade que aquela exige. Do alto do pedestal instável em que se posicionou, ao longo do debate, confessou ainda Isabela Figueiredo, com a mesma euforia e no final do debate: “Sempre senti ao longo da minha vida de estudante a necessidade de eliminar as consoantes mudas e o acordo ortográfico veio satisfazer este meu grande desejo de as assassinar, de as fazer desaparecer.”
Não justificou, porém, o porquê dessa sanha às ditas consoantes mudas, mas acreditamos que a causa esteja no facto de ter tido a pouca sorte de professor algum lhe explicar o significado e a função das referidas consoantes ou, facto menos aceitável, o de ela própria, sendo já estudante universitária, nunca ter tido essa curiosidade. E assim terá continuado a não compreender o porquê das consoantes mudas e a reprimir o intenso desejo de as “assassinar”, até que veio o desejado AO, tal D. Sebastião, resolver-lhe o problema, satisfazendo-lhe simultaneamente a liberdade de uma “ortografia mista” que, por coerência, permitirá certamente também aos seus alunos. Aliás, a sua resposta à pergunta do moderador, sobre “O que é que se ganhou com o AO?”, traduz uma total ausência de reflexão sobre o tema: “Eu… eu… sabe uma coisa, isto não me apaixona”, incapaz de apontar um único ganho que fosse, excepção feita ao “assassínio” das consoantes mudas que doentiamente a perseguiam, as mesmas consoantes que etimologicamente contam a história da palavra, a sua vertente cultural, o que levou Fernando Pessoa/Bernardo Soares, de forma tão expressiva, a escrever “A ortografia também é gente”. No mesmo sentido da pouca preocupação com o estudo, neste caso da Gramática, está a repetição que Isabela Figueiredo fez, por duas vezes, de “acórdos”, em lugar de “acôrdos”: “Os “acórdos” têm sempre cedências, há cedências nos “acórdos”. Por arrastamento, ou não, o ministro Augusto Santos Silva foi pelo mesmo caminho, ao afirmar: “Somos conhecidos por cumprir os “acórdos” que fazemos”. Não é prestigiante para a Língua Portuguesa!…
Há momentos em que o poder, seja ele qual for, se trai e isso aconteceu com o ministro Augusto Santos Silva quando afirmou, depois de referir que até 1990 a língua portuguesa tinha sido um condomínio luso-brasileiro: “Do ponto de vista de um Ministro dos Negócios Estrangeiros que é o único em que sou competente, enfim, modestamente, mediocremente, mas… competente porque para isso fui nomeado (…)” (2.ª parte do debate). Eis, na verdade o advérbio (“mediocremente”) que se adequa à actuação do poder político (PSD e PS, sobretudo) relativamente ao desenvolvimento do processo do Acordo Ortográfico e da sua violenta implementação, ao arrepio da vontade dos portugueses e de todos os pareceres solicitados.
Não pode Augusto Santos Silva negar que foi o Brasil, através do seu presidente José Sarney, e não Portugal e os países Africanos de língua oficial portuguesa, quem quis concretizar um Acordo Ortográfico, promovendo um encontro entre os todos os países de língua oficial-portuguesa, em 1986, no Rio de Janeiro, acordo esse que foi amplamente contestado, não indo avante. Lembrar-se-ão da surreal ideia de acabar com a acentuação nas palavras esdrúxulas, entre outras aberrações, a maioria das quais transitou, como sabemos, para o AO. Nem em 1986 nem em 1990, os países Africanos estiveram verdadeiramente envolvidos nesta negociata, tanto mais que inteligentemente compreenderam que tinham problemas mais prementes a resolver e que o AO, que nem sequer haviam pedido, só iria desencadear gastos desnecessários, gastos que até agora nunca foram contabilizados e revelados, em Portugal! A verdade é que Brasil e Portugal, em “condomínio fechado”, mexeram os cordelinhos para impor o famigerado AO, encenando de contínuo a impensável e absurda “unidade ortográfica”. Os truques que fabricaram estão à vista:
• O Tratado Internacional de que Augusto Santos Silva se orgulha de saber cumprir, foi defraudado nos seus termos, porquanto expressava que o Acordo Ortográfico entraria em vigor no dia 1 de Janeiro de 1994 após “depositados todos os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo português”;
• Não se tendo cumprido o disposto no Tratado Internacional, realizou-se novo encontro entre os 7 países, em 1998, na cidade da Praia (Cabo Verde), assinando-se o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Nele se anulava a data de entrada em vigor (1 de Janeiro de 1994), mantendo-se a obrigatoriedade de todos os países da CPLP ratificarem as normas do AO para que este entrasse em vigor.
• Brasil e Portugal, sobretudo o Brasil, exasperados com a falta de cumprimento do exigido no Tratado Internacional, promoveram uma reunião, em 2004, em Fortaleza (Brasil), com os restantes países da CPLP, onde foi forjada a aprovação de um Segundo Protocolo Modificativo que adulterava os termos do Tratado Internacional. Da exigência de os sete países da CPLP ratificarem o AO, passou-se apenas para três. Neste ano, Timor passou a integrar a CPLP.
• Em 2006, o AO entra em vigor com a ratificação de apenas três países: Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Convenhamos que a matreirice (e ficamo-nos por este vocábulo) resulta normalmente em êxito. Destes truques subterrâneos não falou Augusto Santos Silva, focando apenas, para os incautos, a fidelidade de Portugal a um Tratado Internacional que, afinal, não foi cumprido nos seus termos. Neste momento, Angola e Moçambique ainda não ratificaram o AO e Guiné-Bissau e Timor-Leste, se acaso o ratificaram, não o aplicam. Por isso mesmo, Augusto Santos Silva foi parco em informação, ao referir que “o Acordo Ortográfico está em vigor porque há 4 Estados que terminaram o seu processo de ratificação”, não tendo esclarecido os seus nomes, muito menos abordado o truque que veio adulterar os termos do Tratado Internacional e que suscitou o aparecimento de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico, entregue em Abril de 2019, com mais de 20.000 assinaturas e cujo tortuoso processo, na Assembleia da República, põe a nu a mediocridade da maioria dos deputados, a sua falta de Cultura e a sua falta de respeito pelos cidadãos e pela Democracia.
Regozijo-me pelo facto de Augusto Santos Silva ter compreendido finalmente que há várias lusofonias e que os portugueses também são donos da sua língua. Quanto ao verso escolhido – Sê plural como o Universo – de Alberto Caeiro, ele só se pode ajustar à Língua Portuguesa e à diversidade de variantes, se o famigerado Acordo Ortográfico não estiver implicado.
E a terminar, não poderia deixar de felicitar o jornalista Nuno Pacheco pela sua firme, fundamentada e inteligente argumentação (a que outros chamam “paixão”), que aliás não foi rebatida por Isabela Figueiredo e Augusto Santos Silva, ou seja, por quem aceita acriticamente este Acordo Ortográfico e silencia ou menospreza aspectos, no mínimo, controversos, do seu processo.
Maria do Carmo Vieira — Professora
Nota 1: Transcrição integral de artigo publicado no jornal PÚBLICO na edição de terça-feira, 11 de Maio de 2021.
Nota 2: Já sabemos que o “Dia Mundial da Língua Portuguesa” é uma campanha publicitária em torno de tudo o que não interessa na Língua: os “milhões de falantes”, o “valor estratégico da Língua”, a “unidade” em torno do “Acordo Ortográfico”. Participar nesse evento, nem que seja como espectador, é sempre um exercício penoso, desde logo pelo risco de instrumentalização. Ainda assim, atrevo-me a dizer que as “cerimónias”, este ano, não correram bem. Por um lado, os defensores do AO90 e da estratégia “universalista” apresentaram-se a um nível que raia a indigência, exibindo uma confrangedora penúria de argumentos.
Por outro lado, e por reacção, produziram-se bons textos e/ou depoimentos denunciando mais uma vez a “política da Língua” em geral e o Acordo Ortográfico em particular. Este artigo de Maria do Carmo Vieira é disso exemplo, e faz sentido reproduzi-lo nestas páginas, tanto mais que a ILC-AO é citada no texto.
Mas vale a pena consultar as restantes intervenções. A maior parte encontra-se já convenientemente compilada (e dissecada) no sítio do costume:
• Debate É ou Não É, na RTP1
• Antena 1 “Espaço das 10:00h”
• “Ainda a Língua: uma dimensão universal ou paroquial“, artigo de Nuno Pacheco no PÚBLICO
• “Lusofonia, adeus!“, elucidativo texto de Sérgio Rodrigues no jornal “Folha de São Paulo”
• “O cheiro a consoantes mudas assassinadas pela manhã“, artigo de António Jacinto Pascoal no PÚBLICO de 12 de Maio
A ILC-AO aguarda, desde Dezembro de 2019, que a Assembleia da República se digne promover um debate que os mais de 20.000 subscritores desta Iniciativa Legislativa de Cidadãos consideram fundamental.
Recordamos que a ILC-AO foi entregue na Assembleia da República em Abril de 2019, tendo baixado à Comissão de Cultura e Comunicação no dia 6 de Novembro desse mesmo ano. Nos termos do n.º 1 do Art. 10.º da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho (Iniciativa Legislativa de Cidadãos), o respectivo debate e votação em Plenário devia ter sido agendado passados 30 dias sobre aquela data — ou seja, em Dezembro de 2019 — para uma das 10 reuniões plenárias seguintes.
No entanto, só passados mais de dez meses (!) a ILC-AO foi finalmente discutida em Conferência de Líderes, órgão que decide a agenda do Plenário. Ao contrário do que seria de esperar, em vez de finalmente promover o tão esperado debate, a Conferência de Líderes propõe-nos a transformação da ILC em “petição para que a Assembleia da República recomende ao Governo as medidas desejadas“.
Sendo as “medidas desejadas” a revogação de uma Resolução da Assembleia da República, seria difícil conceber um exercício mais absurdo: uma petição para que a Assembleia da República recomende ao Governo que este recomende à Assembleia da República a revogação de uma sua Resolução.
De imediato denunciámos este atropelo ao espírito e à forma de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Não nos parece sequer que tal metamorfose seja possível, do ponto de vista legal, tendo em conta que as assinaturas recolhidas para uma ILC só podem utilizadas para essa mesma ILC e não para outro efeito. A verdade é que, pelo menos do ponto de vista moral, uma tal transmutação seria sempre inaceitável: não foi para isso que os subscritores da ILC nos confiaram a sua assinatura. Em resposta à Conferência de Líderes, da qual foi dado conhecimento aos Grupos Parlamentares, deputados únicos e deputadas não-inscritas, insistimos no agendamento da ILC-AO tal e qual é, sem variantes absurdas ou “alternativas” inventadas.
Desde então, embora saibamos que pelo menos o PAN e o PCP consideram pertinente o agendamento da respectiva discussão, continuamos a aguardar uma resposta formal — e final — da Conferência de Líderes.
Mesmo tendo em conta o contexto de pandemia em que vivemos, nada justifica uma demora que em tudo se assemelha a um adiamento ad aeternum. Neste cenário em que um tema tão grave como a Língua Portuguesa se encontra parlamentarmente esquecido, cumpridos dois anos (!) sobre a entrega das assinaturas na AR, tomámos a liberdade de contactar novamente o Senhor Presidente da Assembleia da República, nos termos que transcrevemos abaixo.
Neste momento, mais do que o nosso Projecto de Lei, está em causa a própria figura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Estamos perante uma ILC que não foi arquivada, rejeitada ou aprovada, encontrando-se numa espécie de limbo legislativo (ou terra de ninguém parlamentar). Se isto pode acontecer a uma ILC, é caso para perguntar: a democracia participativa ainda existe em Portugal?
Por todas as razões, é fundamental que este debate, tantas vezes adiado, possa finalmente acontecer.
]]>Exmo. Senhor
Presidente da Assembleia da República
Doutor Eduardo Ferro RodriguesExmo. Senhor Presidente,
• A ILC-AO deu entrada na Assembleia da República no dia 10 de Abril de 2019 — há precisamente dois anos.
• No dia 17 de Agosto de 2019, nos termos da Lei n.º 17/2003, solicitámos a sua tramitação para a Legislatura seguinte (a XIVª, em curso).
• No dia 6 de Novembro de 2019 a ILC-AO baixou à Comissão Permanente de Cultura e Comunicação (12ª Comissão).
• No dia 8 de Junho de 2020, estando já largamente ultrapassado o prazo previsto na Lei n.º 17/2003 para o agendamento das Iniciativas Legislativas de Cidadãos, solicitámos formalmente a V. Excia. o agendamento para debate e votação em Plenário desta Iniciativa Legislativa. Esta mensagem não obteve resposta.
• No dia 16 de Setembro de 2020 a ILC-AO é finalmente debatida em Conferência de Líderes. Lamentavelmente, este órgão decide acatar o Parecer da 12ª Comissão sobre o nosso Projecto de Lei, ainda que este Parecer não tenha carácter vinculativo e se baseie em premissas, no mínimo, juridicamente controversas (como demonstrámos oportunamente). Para nossa surpresa, propõe-nos a Conferência de Líderes que esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos seja convolada em petição. Tivemos conhecimento desta decisão através do V. ofício XIV-1242, de 21 de Setembro.
• No dia 8 de Outubro de 2020 respondemos à Conferência de Líderes declinando a possibilidade da convolação da ILC em petição e, acima de tudo, desmontando o equívoco da decisão tomada pela CL. No que ao agendamento diz respeito, insistimos na admissão pura e simples da ILC-AO a debate em Plenário ou, quando muito, na sua convolação em Projecto de Resolução, caso se queira prevenir um impedimento ditado por um tecnicismo que só os deputados-relatores conseguiram descortinar.
Em resposta a esta nossa contestação, enviada pelo Gabinete do Presidente aos Grupos Parlamentares, Deputados únicos Representantes de um Partido e Deputadas Não Inscritas, pelo menos o PAN e o PCP manifestaram a sua intenção de levar esta questão novamente à Conferência de Líderes — o que, até hoje, não aconteceu.
Estamos, desde então, a aguardar que a Conferência de Líderes se pronuncie em definitivo sobre este assunto. A página desta Iniciativa Legislativa no sítio do Parlamento
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43665
parece parada no tempo, sem que a ILC-AO seja aprovada, rejeitada ou arquivada.Estamos conscientes de que a estratégia do Governo e dos principais partidos relativamente ao Acordo Ortográfico passa por tocar o menos possível no assunto, na esperança de que este se resolva “com o tempo”. Em entrevista recente à Raia Diplomática, Ana Paula Laborinho, directora da delegação portuguesa da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Ciência, Educação e Cultura, dizia que o debate em torno do Acordo Ortográfico está “gasto” e será “resolvido pelas novas gerações”.
São declarações em linha com a tese de que as revisões constantes na ortografia são uma “inevitabilidade” e “causarão sempre estranheza”. Todas as críticas ao Acordo Ortográfico são levadas à conta de resistência à mudança, própria das gerações mais velhas, com as quais temos de ser pacientes.
Trata-se de um discurso lamentável, fruto de uma profunda e tripla ignorância.
Ignora-se, desde logo, que os prejuízos causados pelo Acordo Ortográfico à Língua Portuguesa são bem reais e afectam, em particular, o Português Europeu, ameaçado de extinção.
Ignora-se, também, a demografia da contestação ao Acordo. Que o digam todos os jovens cuja subscrição da ILC-AO tivemos de recusar por não terem ainda 18 anos.
Por fim, ignora-se ainda, ou finge ignorar-se, o falhanço da “unificação” da Língua, em que metade dos países envolvidos não ratificou ou não aplica o AO90 — uma contradição validada precisamente pela RAR 35/2008, que a ILC contesta.
Não tenhamos ilusões: o Acordo Ortográfico representa um problema grave, tanto na frente diplomática como no plano do ensino da Língua — e o nosso Projecto de Lei oferece à Assembleia da República uma oportunidade para começar a resolver esse problema. A Assembleia da República não pode ignorar este facto ou, pior ainda, colocar-se ao serviço de quem prefere continuar a fingir que estes problemas não existem.
Do ponto de vista formal, a ILC-AO representa um esforço enorme de centenas de pessoas e de milhares de subscritores que, ao longo de anos, recolheram assinaturas e mantêm um espaço de informação e uma presença constante nas redes sociais. Para todos os efeitos, estamos perante um conjunto de mais de 20.000 cidadãos que, nos termos da Lei, solicitam aos deputados que elegeram — e que os representam — que reconsiderem ou, no mínimo, debatam novamente uma resolução tomada por essa mesma Assembleia da República em 2008. Estes cidadãos não podem ser tratados como um estorvo ou como um “aborrecimento” — sob pena de se colocar em causa a própria figura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos.
Do mesmo modo, o debate por nós solicitado não pode se entendido como uma perda de tempo ou como um simples sobressalto no marcha inexorável do “progresso”. Infelizmente, o tratamento a que esta Iniciativa Legislativa tem sido sujeita leva-nos a crer que também nessa casa se procura resolver a questão do Acordo Ortográfico “com o tempo”.
Para a Conferência de Líderes, tudo é prioritário relativamente à ILC-AO. Só assim se explicam os largos períodos de puro e simples esquecimento a que esta Iniciativa Legislativa tem sido votada. Propositado ou não, o congelamento desta Iniciativa Legislativa de Cidadãos por parte da Assembleia da República não é neutro e concorre para a manutenção da situação actual, em que um Acordo Ortográfico empobrecedor continua a vigorar sem qualquer escrutínio.
Uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos não pode estar dependente do maior ou menor mediatismo do seu objecto, tal como não pode estar dependente da boa vontade dos partidos com assento na Conferência de Líderes que, eventualmente, queiram dedicar parte do seu precioso “tempo de antena” a este assunto.
Não estado a Comissão Representativa da ILC-AO, naturalmente, representada na Conferência de Líderes, acreditamos que cabe ao Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República o dever de cumprir e fazer cumprir a Lei n.º 17/2003. Neste contexto, não podemos deixar de solicitar a V. Excia. que a questão da ILC-AO/Projecto de Lei n.º 1195/XIII seja em definitivo apreciada pela Conferência de Líderes, com o consequente agendamento do debate desta Iniciativa Legislativa em Plenário.
Atenciosamente,
A Comissão Representativa da ILC-AO
Hermínia Castro, Luís de Matos, Isabel Coutinho Monteiro, Nuno Pacheco, Olga Rodrigues, Henrique Lopes Valente, Rui Valente, Maria do Carmo Vieira
De que falamos quando falamos de “Acordo Ortográfico”?
O entendimento mais comum é o que associa o “Acordo Ortográfico” às alterações introduzidas na ortografia — as célebres XXI bases do AO90 e respectiva “nota explicativa“. Esta é, digamos assim, a definição “ortográfica” do AO.
Mas, como vimos no “post” anterior, o AO90 pode e deve ser visto sob outro prisma, numa leitura que pouco ou nada tem que ver com ortografia.
O “Acordo Ortográfico” é, de facto, um Tratado Internacional em que oito países manifestam a intenção de “unificar” uma norma, definindo prazos e condições para esse objectivo. Estamos, neste caso, a falar do AO90 enquanto instrumento político.
Infelizmente, seja qual for a abordagem escolhida, o AO90 é um acto falhado. Como é costume dizer-se, o “Acordo Ortográfico” não é “acordo”, nem é “ortográfico”.
Não é “ortográfico” porque as regras introduzidas, supostamente “facilitadoras”, são absurdas na sua deriva fonética e na criação de facultatividades que desafiam o próprio conceito de ortografia.
E não é “acordo” porque prima por não reunir o consenso e não envolver cedências entre todos os países envolvidos ou partes contratantes. No espaço da CPLP existem agora três normas e um caos inqualificável na sua aplicação. Mais de metade dos países de expressão oficial portuguesa não ratificaram o AO90 e/ou não o aplicam.
Perante este cenário, ocorre perguntar: se há países que não ratificaram o AO90 nem o aplicam, como é possível que em Portugal o AO90 esteja em vigor?
A resposta a esta questão tem um nome: II Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico. Graças a essa alteração à letra do Tratado original, o AO90 passou a poder entrar em vigor em todos os oito países com a ratificação de três deles somente.
O AO90 obriga-nos — literalmente — a escrever torto. Com o II Protocolo Modificativo escrevemos torto por linhas tortas.
Em Portugal, o “truque” do II Protocolo Modificativo foi validado pela Assembleia da República através da RAR (Resolução da Assembleia da República) n.º 35/2008. Com a aprovação desta Resolução, no dia 16 de Maio de 2008, a Assembleia da República aceitou o princípio de que três países podem de facto decidir por oito, numa matéria que a todos diz respeito.
O nosso Projecto de Lei incide, precisamente, sobre esta questão. Partindo do princípio de que um Tratado Internacional que pretenda “unificar” o que quer que seja não pode ser posto em prática sem a concordância de todos os envolvidos, propomos a revogação da referida RAR n.º 35/2008.
Devemos salientar que a nossa ILC não propõe (nem podia fazê-lo) a revogação do Acordo Ortográfico. E não propõe sequer a revogação do próprio II Protocolo Modificativo, tal como foi concebido em 2004.
Na apreciação da nossa Iniciativa Legislativa em Plenário, duas coisas podem acontecer.
Por um lado, a Assembleia da República pode, muito simplesmente, rejeitar o Projecto de Lei n.º 1195/XIII, o que equivale a reafirmar a decisão tomada — por evidente equívoco e desconhecimento da maioria dos deputados de então — em 2008. Por outro lado, mesmo que o Plenário decida revogar a RAR n.º 35/2008, o II Protocolo Modificativo continua a existir. Perante esse cenário, uma das opções à disposição do Governo é a da submissão à Assembleia da República de um novo Projecto de Resolução no mesmo sentido. Esperamos, naturalmente, que não seja essa a opção tomada mas é bom que se saiba que essa possibilidade existe — as acusações de condicionamento da margem de manobra do Executivo são manifestamente exageradas.
Em resumo, o que os cidadãos eleitores e subscritores desta Iniciativa Legislativa pretendem é que a Assembleia da República reconsidere a aprovação, no mínimo, precipitada, da RAR n.º 35/2008.
Dito isto, reconhecemos que não é fácil debatermos de forma estanque as duas vertentes — política e ortográfica — do Acordo Ortográfico, e isto se dermos de barato e ignorarmos uma terceira vertente, a jurídica. Basta pensarmos que, se as XXI bases do Acordo Ortográfico fossem boas, a resistência à sua aceitação não teria existido e o II Protocolo Modificativo não teria sido necessário.
Esperamos, sinceramente, que o lado “ortográfico” desta questão não acabe por prevalecer, empurrando o debate para uma discussão apaixonada mas pouco frutuosa em torno das “incoerências”, dos “constrangimentos” e das opções entre “revogar” ou “corrigir o que está mal” (vulgo, “revisão do AO90“). Devemos ser muito claros neste ponto: ainda que a ILC-AO possa abrir a porta a estas questões num futuro próximo, a discussão em torno do nosso Projecto de Lei não é o momento mais apropriado para esse debate.
Ainda assim, muitas questões estão desde já em causa e é bom que os deputados tenham consciência desse facto.
Infelizmente, a recente discussão em torno de um Projecto de Resolução sobre esta matéria não pressagia nada de bom. Assistimos, no passado dia 15 de Janeiro, a um diálogo de surdos, em que as partes debitaram mecanicamente os mesmos argumentos de sempre sobre o Acordo Ortográfico.
Para que a ILC-AO possa escapar a essa lógica trituradora apresentamos aqui alguns contributos quer para o agendamento do debate, quer para o debate propriamente dito.
À atenção da Conferência de Líderes
É certo que, repetimos, o nosso Projecto de Lei não incide especificamente sobre ortografia — questiona “apenas” a decisão, tomada pela AR, de aceitar como válido o princípio de que um Tratado desenhado para unificar a ortografia de oito países possa vigorar sem ser ratificado por todos.
Trata-se de uma questão fundamental, que deve ser encarada com a máxima seriedade, sem tergiversações ou manobras de bastidores para desviar atenções. Sem prejuízo das restantes matérias debatidas em Plenário, deve ser atribuído à ILC-AO o tempo dado às grandes questões de fundo (e fôlego), isto é, aos temas que de alguma forma têm que ver com a identidade nacional ou o património identitário português. Trata-se de um assunto que afecta toda a comunidade e a totalidade dos portugueses, onde quer que residam. Não faz sentido agendar o debate sobre a nossa Iniciativa cidadã no meio de uma maratona de discussões que, pese embora a sua importância relativa, caso a tenham, incidem geralmente apenas sobre um segmento restrito da população e sobre assuntos parcelares, circunscritos. Pelos mesmos motivos, deve ser assegurada aos deputados a liberdade de voto. Esta não é uma matéria em que os líderes dos diversos grupos parlamentares, sete “chefes de bancada”, possam votar em nome de todos os deputados do seu grupo.
À atenção dos deputados
No debate sobre o Projecto de Resolução do PEV percebemos que os velhos argumentos a favor do AO90 continuam a ser desfiados sem qualquer espírito crítico. “O objectivo de uma aproximação gráfica […] é reconhecido como positivo num mundo global.” (Beatriz Dias, BE) ou “É importante sublinhar a relevância do acordo para a literacia, a facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura” (Pedro Cegonho, PS), ou ainda “A Língua Portuguesa, para se impor como Língua de comunicação, de cultura, de ciência e de negócios, carece de uma uniformização ortográfica” (Fernanda Velez, PSD) são teses que não encontram qualquer tipo de sustentação real mas que, ainda assim, são repetidas “ad nauseam”, de forma acrítica e meramente seguidista.
Seria bom que Beatriz Dias se perguntasse de onde veio a “identificação como positiva” do objectivo de uma aproximação gráfica e, acima de tudo, de que análises resultou a validade desse diagnóstico. Aliás, seria até curioso (muito curioso) que algum deputado mostrasse uma única “queixa”, seja de quem for, por os meses e as estações do ano terem maiúscula inicial antes do AO90. Ou que, além de ter “resolvido” esse gravíssimo problema (totalmente inventado), demonstrassem os ilustres que alguma vez existiu uma única das variadíssimas “queixas” que, dizem, justificaram a “necessidade” de “corrigir” a nossa Língua nacional conforme a escrita brasileira.
Seria bom, por exemplo, que Fernanda Velez explicasse como conseguiu o inglês sobreviver como Língua de comunicação, de cultura, de ciência e de negócios sem jamais ter ocorrido a qualquer inglês ou americano que era necessária uma uniformização ortográfica; muito pelo contrário! A diversidade no Inglês (USA, UK, South Africa, Australia, Canada, etc.) é uma das características da Língua mais falada e escrita em todo o mundo.
Seria bom que Pedro Cegonho, também por exemplo, compreendesse que a “facilitação” no ensino da Língua será, quando muito, apenas aparente. “Escrever como se fala” é receita para uma aprendizagem cada vez mais superficial (e estupidificante) do Português e é também factor de bloqueio para quem quiser partir à descoberta de relações e sentidos entre famílias de palavras ou aprender outras Línguas de génese ou de influência latina. Já agora, esse deputado talvez se quisesse dar à maçada de explicar ao povo português o que diabo significa “escrever como se fala”: como se fala onde?
O ensino da ortografia não pode ser levado à conta de um simples Bê-a-Bá. Na ânsia da “simplificação” e da “facilitação” esquece-se a importância da ortografia enquanto iniciação ao raciocínio abstracto e à interpretação de signos, desvaloriza-se o estímulo ao pensamento profundo, limita-se o acesso à interrogação e à curiosidade histórica. No limite, um limite meramente figurativo, a “simplificação” significa o retorno ao primordial grunhido troglodita e a “facilitação” equivale aos muito populares “vale tudo”, “está certo das duas maneiras”, “pouco mais ou menos” ou ainda “bem, desde que se perceba…”
De resto, há uma profunda incoerência no discurso destes três deputados: em primeiro lugar, é feito o reconhecimento “da praxe” de que o Acordo Ortográfico só afecta a ortografia — o que, desde logo, não passa de uma falácia. Daí em diante, ignora-se propositadamente quaisquer consequências dessa falácia: se essa é a única variável que se pode (tentar) alterar, não há unidade possível entre variantes da Língua — ficam de fora a escolha de palavras e a construção frásica.
A “unificação” é uma miragem e o Acordo Ortográfico uma fraude. É esta incoerência, em suma, é esta visão limitada que se nota no discurso dos deputados: a fixação na árvore, em detrimento da atenção devida à floresta.
De facto, não é possível debater a (im)própria existência de um acordo ortográfico sem se ter uma noção mais abrangente do fenómeno linguístico e da viagem das Línguas pelo tempo e pelo espaço.
A separação ortográfica ocorrida em 1911 continua a intrigar muita gente e, volvidos mais de cem anos, há quem continue a perseguir o estranho objectivo da unidade ortográfica entre o Português Europeu e o Português do Brasil, considerando tal absurdo um desígnio imprescindível. Esta fixação pró-Acordo, ordenada pelas cúpulas partidárias, é tanto mais incompreensível quanto se sabe que a ortografia, com toda a sua importância, é apenas uma entre as várias vertentes da Língua. Em rigor, o vocabulário, a ortografia e a sintaxe começaram divergir entre Portugal e o Brasil quando se deu o contacto com o tupi, o guarani, o tukano e outras Línguas brasileiras e do continente sul-americano e continuou, ao longo de séculos, inevitavelmente, alimentada por línguas alienígenas provindas das migrações de espanhóis, alemães, italianos, árabes, japoneses e muitos outros.
É um fenómeno natural — e irreversível.
Isto significa que qualquer Acordo Ortográfico que tenha por base um pressuposto de “unificação” é inútil, contra-natura, e está votado ao fracasso. Pode-se (tentar) unificar a ortografia, pode-se até (tentar) trazer um vocabulário a reboque dessa “unificação” — e assistimos actualmente a uma invasão, acéfala e sem precedentes, de termos brasileiros no nosso dia-a-dia — mas não se pode mudar a sintaxe, isto é, o modo como construímos as frases. “Eu te amo” será sempre “amo-te” no lado de cá do Atlântico.
Dito de outro modo, ninguém consegue alinhavar duas linhas em Português sem que, involuntariamente, denuncie o país onde aprendeu a falar, primeiro, e a escrever, depois. E isto nunca constituiu um problema. A ortografia fonética é uma idiossincrasia brasileira que não existe e jamais existiu em Portugal.
Defendermos o contrário, isto é, defendermos que, à boleia da ortografia, tudo passou a ser igual, é fingirmos que o Bucha e o Estica passaram a ser indistinguíveis só porque passaram ambos a usar lacinho.
À conta da apresentação dos sub-domínios virtuais “.pt” num pretenso Português “universal” (que, para mal dos nossos pecados, coincide geralmente com a língua falada no Brasil), as plataformas e serviços internacionais (Google, Wikipedia, Facebook, Youtube, etc.) eliminaram pura e simplesmente a “variante” portuguesa da Língua — não apenas nos “interfaces” mas nos próprios conteúdos têm sido sistematicamente apagados quaisquer resquícios de Portugal e dos portugueses, da nossa História e da nossa Cultura; tudo passou a ser brasileiro, pura, simples e radicalmente.
Mas a verdade é que não é possível escrever, editar, traduzir e, numa palavra, comunicar, como se todos fôssemos o tal universo de duzentos e dez milhões de falantes. Pode mexer-se na ortografia, mas nunca nada de construtivo resultará dessa intervenção (ou invenção). A não ser, é claro, que se pretenda, cavalgando um pretenso cavalo de Tróia ortográfico, espezinhar algo…
É fundamental que, quando chegar o momento de debater o Projecto de Lei n.º 1195/XIII, os deputados tenham a noção exacta do que essencialmente está em causa. Todas as envolventes, mesmo as mais incómodas ou, quem sabe, até politicamente incorrectas, deverão estar presentes, como pano de fundo, no momento da votação do nosso Projecto de Lei.
Porque só a consciência deste falhanço anunciado do AO90 permite perceber o que foi e o que é, verdadeiramente, o II Protocolo Modificativo: em 2008, foi o expediente que permitiu dar vida a um “Acordo Ortográfico” desnecessário, inútil, conflituoso e impraticável.
Manifestamente, os seus promotores acreditaram que, mais tarde ou mais cedo, todos os países acabariam por ratificar o Acordo Ortográfico, diluindo no tempo o grosseiro enviesamento do II Protocolo Modificativo. Tal não aconteceu. E o efeito é agora o inverso: quanto mais tempo passa mais exposto fica o ridículo de um Acordo que, afinal, tem carácter facultativo.
Passados 17 anos sobre a invenção desse II Protocolo Modificativo, passados 30 anos sobre a invenção do Acordo Ortográfico, é mais que evidente que o falhanço da “unificação” já não é uma premonição: é um facto.
Hoje em dia, o II Protocolo Modificativo já não é uma “fase transitória”, até que todos os países cumpram o AO90. É a bóia de salvação que vai mantendo o Acordo Ortográfico à tona da água.
Mas nunca é tarde para se corrigir um erro.
Imagem: Laurel & Hardy “cortesia” San Francisco Silent Film Festival
]]>Em primeiro lugar, devemos ter consciência de que qualquer Acordo Ortográfico que tenha por fim “unificar” as duas normas existentes — Português Europeu e Português do Brasil — está votado ao fracasso. Os promotores do AO90 evocam, compungidos, o grande cisma ortográfico de 1911, ignorando que a Língua escrita é também vocabulário e é também sintaxe. Nesse sentido, o afastamento entre as duas normas é um processo natural, muito anterior à implantação da República — começa, muito provavelmente, no dia em que o Padre António Vieira decide aprender tupi para mais facilmente evangelizar o Brasil. E é, obviamente, um processo irreversível.
Muito se estranha, portanto, o reiterado afã de produzir acordos ortográficos que volta e meia aflige alguns estudiosos, ainda que ninguém lhos peça nem neles vislumbre qualquer utilidade. Pelo contrário, a cada novo projecto de AO multiplicam-se críticas e pareceres negativos, aos quais se junta a oposição generalizada dos portugueses.
Neste cenário, percebe-se facilmente que, aquando da sua assinatura, no fatídico dia 16 de Dezembro de 1990, o AO90 preparava-se para ser apenas mais um na já longa lista de acordos ortográficos falhados entre Portugal e o Brasil — certamente cairia por si, sem ser preciso combatê-lo. Infelizmente, como sabemos, as coisas não se passaram exactamente assim. O Acordo Ortográfico falhou, como não podia deixar de acontecer, mas, paradoxalmente, entrou em vigor em alguns países, sendo um deles Portugal.
Para percebermos como foi isto possível temos de recuar um pouco no tempo.
Na sua origem, o Acordo Ortográfico de 1990 resumia-se em quatro singelos artigos:
• O primeiro artigo aprovava as modificações a introduzir na ortografia — as tais que, como vimos, só prejudicam, sem que delas advenha qualquer benefício.
• O segundo artigo dizia que os signatários, até ao dia 1 de Janeiro de 1993, elaborariam um vocabulário ortográfico comum (VOC) da Língua Portuguesa — aparentemente, uma espécie de “caldeirão” onde seriam vertidas todas as palavras de todos os países da CPLP. Graças a esta benesse, passaríamos a ter à nossa disposição palavras como “mouse” [informática], “registro” ou “pantorrilha”. Sendo à partida uma ferramenta que pode ser interessante, o VOC, que ainda hoje não está concluído, não precisava obviamente de um Acordo Ortográfico para ser elaborado — embora, como se vê pela amostra, não dispense a organização de um rigoroso manual de instruções.
• O terceiro artigo dizia que o Acordo Ortográfico entraria em vigor a 1 de Janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa. Sublinhe-se “todos os Estados”, com ênfase no “TODOS”, como é lógico — se é para “unificar” não poderia ser de outro modo.
• E, finalmente, o quarto e último artigo dizia que os Estados tomariam as medidas consideradas adequadas para que se respeitasse a data de entrada em vigor prevista no Art. 3º.
Perante este articulado, como é bem de ver, escritores, tradutores, poetas, jornalistas e, de um modo geral, quem quer que estime a sua Língua materna e a use como ferramenta de trabalho, investigação ou estudo nas mais variadas áreas, da Medicina à Culinária, passado pela Química, Biologia, Informática e outras, mais não tinha de fazer do que cruzar os braços e esperar que a infeliz criatura seguisse o seu caminho em direcção ao esquecimento.
Quando tudo apontava para esse desfecho, eis que os promotores do AO começam a movimentar-se, alterando as regras do jogo que eles próprios haviam criado.
Em 1998, já os prazos originais estavam mais do que furados. No que só pode ser visto como uma “fuga para a frente”, surge o Primeiro Protocolo Modificativo. Reunidos na Praia (Cabo Verde), decidem os signatários extirpar os Artigos 2º e 3º de tão incómodos horizontes temporais.
Como é evidente, esse expediente não produziu qualquer efeito, pois subsistia ainda a necessidade de o Acordo Ortográfico ter de ser ratificado por todos os países envolvidos. À data, 14 anos volvidos sobre o Acordo original, só um país tinha ratificado o AO90 — o Brasil.
Qualquer um veria neste cenário uma prova de que, efectivamente, o Acordo Ortográfico não desperta o interesse de ninguém. Não foi esse o entendimento dos promotores do AO90. Em 2004, desta vez reunidos em São Tomé, entendem por bem promover o Segundo Protocolo Modificativo, alterando mais uma vez o Art.º 3º do Acordo Ortográfico: deixa de ser necessária a ratificação do Acordo Ortográfico por todos os países, bastando apenas a ratificação por três desses países.
Seria difícil conceber um maior esvaziamento da letra e do sentido de qualquer acordo e, por maioria de razão, de um acordo que pretenda “unificar” o que quer que seja.
Pior, ou, neste caso, melhor, só a criação de um Terceiro Protocolo Modificativo que altere a redacção do Artigo 1º, tornando facultativa a adopção das novas normas ortográficas por parte dos países signatários. Talvez assim se consiga reunir, passados mais de 30 anos, a ratificação ou a adesão efectiva de Angola, Moçambique e demais países da CPLP que não seguem o Tratado. Fica a sugestão.
No que à ILC diz respeito — e estamos finalmente a chegar ao cerne da questão — o Projecto de Lei n.º 1195/XIII debruça-se sobre este “pormenor” do II Protocolo Modificativo.
Como se imagina, cada uma destas modificações introduzidas no AO90 assumiu, por sua vez, a figura de um Tratado — que, tal como o Acordo Ortográfico original, teve de ser objecto de aprovação e ratificação por cada um dos países envolvidos.
Em Portugal, o II Protocolo Modificativo foi submetido à apreciação da Assembleia da República em 2008, através de um Projecto de Resolução. Tendo sido aprovado, transformou-se na Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 — aprova o II Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Uma nota adicional sobre esta segunda alteração do Acordo Ortográfico: tendo sido redigida em 2004, os promotores do AO resolveram ter em conta a independência de Timor-Leste, alcançada em 2002. Deste modo, o II Protocolo Modificativo introduz não uma, mas duas alterações no texto original. A primeira, como vimos, é a nova redacção do Art.º 3º, eliminando a necessidade da ratificação do AO por todos os países. A segunda é a criação de um novo Artigo, o 5º, abrindo a possibilidade de o AO90 ser ratificado pelo novo país.
Com o distanciamento e a frieza que hoje nos permitimos ter sobre todo este processo, torna-se ainda mais evidente o que sempre dissemos: toda esta saga do Acordo Ortográfico começou mal, com a invenção do próprio AO, e só piorou com as sucessivas alterações introduzidas.
Os subscritores da ILC-AO entendem que, em 2008, a Assembleia da República devia ter dito “basta”.
Se o AO90 promovia uma unificação impossível, o II Protocolo Modificativo consagrou a existência de três normas no espaço da CPLP — um resultado diametralmente oposto ao que certamente era pretendido pelas mentes esclarecidas de quem julgou necessário um Acordo Ortográfico. Hoje em dia, a própria Wikipedia, entidade acima de qualquer suspeita de anti-acordismo, reconhece esse facto: “Contudo, um dos efeitos do Acordo foi o de dividir ainda mais estes países, criando agora três normas ortográficas: a do Brasil, de Portugal e dos restantes países africanos que não implantaram o Acordo apesar de o terem assinado.”
Os subscritores da ILC-AO vão mais longe, defendendo que o debate em torno da RAR 35/2008 foi mal feito, pouco esclarecido e inquinado pela disciplina de voto vigente entre os diversos grupos parlamentares. A própria questão de Timor-Leste foi fonte de equívocos: graças à sua apresentação num único “pacote” legislativo, uma medida tão disparatada quanto a redução do número de ratificações apanhou a “boleia” do capital de simpatia da abertura a Timor-Leste, num gesto que muitos viram como a integração “de facto” do novo país na CPLP.
Poucos foram os deputados que, a exemplo de Manuel Alegre (PS) ou Luísa Mesquita (não-inscrita), souberam interpretar o que estava em causa neste processo e votaram contra a aprovação desta Resolução.
Mais votos contra teria havido, certamente, não fosse a malfadada disciplina partidária. Veja-se o caso de Matilde Sousa Franco (PS), que declara ter pedido licença para votar contra: “foi-me dito tal ser impossível devido à disciplina de voto e evidentemente obedeci, mas foi-me concedida autorização para me ausentar no momento da votação, o que fiz.” A avaliar pelo quadro de votações nesse dia, vemos que Matilde Sousa Franco não consta da lista de ausências — muito provavelmente, a sua vontade não terá sido respeitada, tendo o seu voto sido considerado como favorável.
O nosso Projecto de Lei parte do princípio de que a Assembleia da República pode e deve rever uma sua Resolução e, se for o caso, ter a coragem de admitir que errou.
O nosso Projecto de Lei revoga apenas a RAR 35/2008 — não o segundo Protocolo Modificativo ou o próprio Acordo Ortográfico. Mas abre a porta para um verdadeiro debate sobre a pertinência de um Acordo Ortográfico que ninguém pediu e que falhou os seus objectivos — mas que, graças ao “truque” do II Protocolo Modificativo, continua a subsistir como um corpo estranho no seio dos próprios países que se propunha aproximar.
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Aprova a declaração modelo 25 e respetivas instruções de
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Aprova a declaração modelo 25 e respetivas instruções de preenchimento a utilizar pelas entidades que recebam donativos fiscalmente relevantes no âmbito …
Aprova a nova declaração modelo 10 e as respetivas instruções de
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15 Dez 2020 … Aprova a nova declaração modelo 10 e as respetivas instruções de preenchimento. Portaria n.º 325/2018. Diário da República n.º 241/2018 …
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16 Jul 2020 … … físico nos locais abertos ao público, definidas nas declarações das respetivas situações de alerta, contingência ou calamidade;
Aprova a declaração modelo 25 e respetivas instruções dePropaganda ortográfica na Assembleia da República | Opinião
Quando se fala de literacia, de leitura e de escrita, está a abordar-se um assunto sério e incompatível com propaganda política. Conviria por isso que o deputado Pedro Cegonho, da próxima vez, se fizesse acompanhar de um estudo a quantificar os efeitos positivos do AO90 na aquisição/aprendizagem da língua portuguesa.
A Faculdade não responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e enunciadas nas proposições.
Regulamento da Faculdade de Medicina do Porto, 23 de Abril de 1840, artigo 155.ºNo dia 22 de Maio de 2015, cerca das nove e um quarto da manhã, a cidadã M… tomava o seu cafezinho na sala de estar do apartamento, descansada da vida e sem incomodar ninguém, quando subitamente recebeu uma chamada telefónica. Atendeu o telemóvel e do outro lado disseram-lhe: «acabo de ler no Diário da República que foste despedida por fato que te é imputável». A chávena de café tremia na mão da cidadã M…. Pousou-a na mesinha de apoio e perguntou incrédula: «fato que me é imputável? Desde quando é que fatos me são imputáveis ou imputados… – aliás, desde quando são imputados fatos»? «Não acreditas?», retorquiu o interlocutor, «então, consulta o Diário da República, há fatos de todos os tamanhos e feitios». Anos antes, no dia 13 de Março de 2012, pouco passava das 9 e meia da manhã, o cidadão P… recebera um aviso semelhante: fora despedido por «fato imputável ao trabalhador». Bem-vindos a Portugal, um país em que “fatos imputáveis” são motivo para despedimento, mas ninguém se incomoda com isso.
Há dias, dei por mim a ler a dissertação inaugural apresentada, em 1913, por Miguel Pinto Vallada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. A frase na epígrafe aparece quer na dissertação de Pinto Vallada, quer em diversos documentos coevos, sendo aquilo a que os anglófonos chamam disclaimer e nós, falantes de português, chamamos ressalva ou cláusula de desresponsabilização. As ressalvas deste tipo, como é sabido, têm o objectivo de proteger uma instituição que publique um determinado conteúdo, desvinculando-a das ideias do autor e dos prováveis impactos negativos dessas ideias. Todavia, há dias, assistimos na Assembleia da República a uma variante perversa destas ressalvas, com os próprios autores e responsáveis pela publicação do conteúdo a desresponsabilizarem-se dos impactos negativos do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) por eles criado, virando o bico ao prego com retórica política e atirando areia para os nossos olhos com propaganda.
Com efeito, o deputado socialista Pedro Cegonho interveio recentemente no Plenário da Assembleia da República, para mais uma machadada do poder político português no progresso científico do país. Sabemos, há algum tempo, que este senhor deputado é educado e ouve argumentos. No entanto, adopta exactamente a atitude de tantos dos seus companheiros de profissão: ouve, mas no fundo, bem lá no fundo, está-se nas tintas, porque o resultado final, já se sabe, será o previsto desde o início, continuando a ser ignoradas críticas, chamadas de atenção e, principalmente, provas de as coisas não estarem a correr bem. Esta tem sido a atitude adoptada por quem vota, influencia e decide assim, apesar de pareceres emitidos por quem estuda recomendarem assado.
Não repetindo argumentos trazidos à colação por Nuno Pacheco (PÚBLICO, 16/01/2021), vou centrar este meu artigo numa frase, porventura a mais importante, do discurso de Pedro Cegonho. É grave um deputado ter dito, em plena Assembleia da República, que «é importante sublinhar a relevância do Acordo para a literacia: a facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura no vasto quadro dos falantes de português da CPLP» e preocupante não ter havido uma alma das que nos representam a chamar a atenção do senhor deputado para o carácter altamente duvidoso da declaração acabada de proferir.
Quando se fala de literacia, de leitura e de escrita, está a abordar-se um assunto sério e incompatível com propaganda política, como recordei em recente polémica (cf. PÚBLICO, 27 de Abril de 2020). Conviria que Pedro Cegonho, da próxima vez, se fizesse acompanhar de um estudo a quantificar os efeitos positivos do AO90 na aquisição/aprendizagem da língua portuguesa. Por exemplo, um estudo a indicar a existência de contributo positivo do AO90 para, entre 2011 e 2016, a média dos alunos portugueses do 4.º ano de escolaridade ter descido 13 pontos na avaliação da literacia em leitura do PIRLS. Esse contributo positivo poderia ser o de a média só ter descido 13 pontos, em vez de 31 ou 113. Na ausência desse estudo, a frase essencial do senhor deputado, além de errada (o que é grave), é perigosa (o que é gravíssimo), pois pode haver incautos a interpretar tais palavras como fundamentadas e, em última análise, correctas. Pedro Cegonho, em vez de responder pelas doutrinas expendidas e enunciadas no AO90, distingue méritos e virtudes que o documento, até prova em contrário, não tem.
Por exemplo, quando li Pedro Cegonho a anunciar com o AO90 “a facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura no vasto quadro dos falantes de português da CPLP”, lembrei-me logo do contrário. Curiosamente, o contrário foi escrito há muitos anos pela recentemente jubilada Professora Maria da Graça Castro Pinto, num excelente artigo científico em que, sobre opções de supressão de acentos e de hífenes em 1986, refere: «não será implausível dizer-se que se as preteridas simplificações facilitam a escrita – e esta facilitação poderá ser enganosa […] – não facilitarão a leitura e torná-la-ão mesmo muito possivelmente de automatismo mais tardio». Quanto à supressão de consoantes não pronunciadas e de acentos (cf. AO90), acrescenta: «Uma leitura correcta poderá passar então também pelo conhecimento da classe lexical a que o vocábulo pertence e por vezes mesmo por outros conhecimentos que o leitor possa possuir: caso de palavras em que se suprima o acento ou a consoante muda».
Há uns anos, neste jornal, tive a oportunidade de chamar a atenção para a necessidade de livros de estilo portugueses começarem a indicar, como acontece no Brasil, que “’excessão’ (com dois ss) constitui erro grosseiro” (PÚBLICO, 19/02/2014). A razão era simples: a ausência em exceção da informação grafémica veiculada pelo p de excepção levaria a cada vez mais ocorrências de excessão. Como é sabido, os exemplos de excessões por exceções (e recessões por receções) são muitos. Um dos mais recentes ocorreu na RTP e foi denunciado pelos Tradutores Contra o Acordo Ortográfico. Efectivamente, entre as excessões e a «relevância do Acordo para a literacia», o fosso é enorme.
Já se sabe que a “máxima unidade possível” prometida na Nota Explicativa do AO90 esbarra na realidade, isto é, na criação de grafias diferentes pelo próprio AO90, fruto desse devaneio chamado “critério fonético (ou da pronúncia)”. Gostaria de ouvir a explicação de Pedro Cegonho sobre o contributo da criação de receção, aspeto, respetivas ou rutura na norma europeia e da manutenção de recepção, aspecto, respectivas ou ruptura na norma brasileira (cf. PÚBLICO, 15/03/2015) para «a facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura no vasto quadro dos falantes de português da CPLP».
Enquanto escrevo estas linhas, tenho à minha frente um fenómeno criado pela adopção do AO90 e estimulado por declarações infelizes de agentes políticos responsáveis pelo processo: o tal “processo em curso” que deveria ter sido imediatamente suspenso (em finais de 2005), segundo os ignorados pareceres da Professora Inês Duarte e do Professor Ivo Castro. Esse fenómeno, já abundantemente mencionado nestas páginas, é o do fato em vez de facto, do contato em vez de contacto e afins. Neste preciso momento, tenho à minha frente um exemplar do Diário da República de 20 de Janeiro de 2021, com «documentos comprovativos dos fatos invocados». Todavia, este é assunto sobre o qual o poder político português não se pronuncia, apesar de há muitos anos o conhecer.
Sendo Pedro Cegonho o interlocutor mandatado pelo Grupo Parlamentar do PS para dialogar com a Comissão Representativa da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico, receio que o excelente trabalho da ILCAO, em vez de avaliado pelos seus méritos, continue a ser vítima dos actos políticos habituais, com pareceres e provas a esbarrarem contra uma parede de certezas baseadas em impressões e em intuições. Esperemos que o senhor deputado mude de atitude na sua conduta política. Basta haver vontade, pois um dos passos já está dado: Pedro Cegonho nem sequer adopta o AO90.
Francisco Miguel Valada — Autor de “Demanda, Deriva, Desastre: Os Três Dês do Acordo Ortográfico” (Textiverso, 2009)
Notas: transcrição integral de artigo publicado no jornal PÚBLICO na edição de segunda-feira, 25 de Janeiro de 2021. Coluna esquerda: uma pequena parte de uma das muitas listas de aberrações que podem ser obtidas a partir do motor de busca “Busca! — Apartado 53″