“O vírus” (Pacheco Pereira, PÚBLICO, 09.05.2020)

Nota Prévia: o texto que se segue é a transcrição integral de um artigo de José Pacheco Pereira no PÚBLICO de ontem.

Entre os vários exemplos que enuncia, o autor refere as nossas bancas recolha de assinaturas contra o Acordo. Esta Iniciativa Legislativa já foi entregue na Assembleia da República. Ora, precisamente por já ter sido entregue, mais assinaturas são desnecessárias; a  respectiva “nota de admissibilidade” já foi emitida .

Em alternativa à recolha de assinaturas, e considerando que a ILC está neste momento a aguardar o agendamento para debate e votação em Plenário, permitimo-nos sugerir aos leitores de José Pacheco Pereira, aos subscritores da ILC e a todos quantos amam a Língua Portuguesa, que identifiquem o “vosso” deputado na Assembleia da República — eleito com o vosso voto pelo círculo eleitoral onde residem — e lhe escrevam, chamando a sua atenção para a importância do debate que se avizinha. No sítio do parlamento encontrarão facilmente, junto de perfil de cada deputado, o respectivo formulário de contacto.

Nas palavras de José Pacheco Pereira, a Língua Portuguesa precisa de nós.


O vírus que atacou a língua portuguesa

José Pacheco Pereira

 

“No tempo do Getúlio (Brasil) e de Salazar (Portugal) foram feitos acordos que não prevaleceram, porque, na realidade, quem faz a língua não são as academias, nem os governos. Quem faz a língua é o povo.”
Carlos Heitor Cony

Tenho à minha frente uma série de jornais e de outras publicações do Brasil, de Angola, de Cabo Verde, de Moçambique, da Guiné, de Macau e de Timor. São actuais e nenhum respeita o Acordo Ortográfico. Se acrescentar a esses jornais e publicações mais uma série oriunda de Portugal, ou explicitamente recusam o Acordo, ou misturam artigos escritos nas duas línguas, o “acordês” e o português. Já não ponho livros em cima da mesa, romances, poemas, ensaios, porque quanto mais conhecido e criativo é o autor, menos usa o “acordês”.

Por detrás destas publicações está uma série de acordos diplomáticos que, ou estão a ser ilegalmente aplicados, ou foram ratificados e metidos na gaveta, com explícitas declarações de que são para meter na gaveta, ou, por fim, não foram aprovados pelos países que deveriam tê-los incorporado na legislação nacional. Como monumental falhanço diplomático, é um caso exemplar. O problema nem sequer é esse: é que, como falhanço cultural, é uma desgraça, mas, vindo de quem vem, é previsível.

A razão é muito simples: a língua é uma coisa viva, e o “acordês” é uma língua morta. Foi ferida por um vírus pior nos seus efeitos sociais e culturais do que o coronavírus, e é mantida moribunda por duas forças infelizmente poderosas nos nossos dias: a inércia e a arrogância de não querer perder a face e admitir o erro. E não adianta virem dizer-me que língua e ortografia são coisas diferentes e que a ortografia é uma convenção, e que há muitos precedentes de acordos. Há, mas nenhum como este, nem no tempo deste.

A ortografia é uma espécie de impressão digital da língua, faz parte da sua identidade e qualidade cultural. Transporta a sua memória e a sua história, as suas raízes nas línguas que foram a sua origem e que a fazem comunicar com as outras línguas com o mesmo tronco latino. E, como ser vivo, a língua e a sua ortografia evoluem todos os dias, traduzindo o dinamismo dos povos e das sociedades onde é falada e escrita. O tragicamente ardido Museu da Língua, em S. Paulo, traduzia esse dinamismo com a enorme vitalidade do português do Brasil, incorporando no vocabulário milhares de novas palavras oriundas de outras línguas trazidas pela emigração ou pelos tempos modernos. Não foi por acaso que este museu foi feito pelo Brasil, com a sua única e excepcional homenagem à língua portuguesa, enquanto por cá ninguém sequer aproveitou a oportunidade da sua desaparição para fazer um museu à língua cá, nem sequer pediu aos brasileiros que fizessem uma réplica cá, com a adaptação necessária. Não, em vez disso, continuamos a manter um Acordo que estraga a nossa língua e que é imposto administrativamente nas escolas e no Estado, para ainda mais afundar a nossa cultura, em tempos de ignorância agressiva.

É por ter lido com indignação um artigo publicado no PÚBLICO por quatro ministros autoglorificando-se pelo que têm feito pela língua portuguesa, numa altura em que toda a gente sabe que tem havido um considerável recuo da presença do português de Portugal por tudo quanto é universidade estrangeira, escola, instituição paga pelos contribuintes como o Instituto Camões, que escrevo. E se a situação não é pior, deve-se ao Brasil. Mas o que mais me encanita é o estarem muito contentes pela “dignificação” da língua portuguesa, quando eles próprios e os seus antecessores do PS e do PSD, desde 1990, são os principais responsáveis por a manter menos digna, menos própria, menos lavada, menos forte, menos saudável, doente.

É uma causa quixotesca? Não, não é. Há muita coisa que ainda não se fez. Faça-se como o lóbi das armas nos EUA (eu sei, péssimo exemplo, mas de lóbis percebem eles…) e, quando houver uma eleição, pergunta-se ao candidato, seja autárquico, seja legislativo, qual a sua posição. Depois ajuda-se por todos os meios os que explicitamente são contra o Acordo, de modo a criar um caucus (que vem do latim e do grego) na Assembleia e noutras instituições para fazer recuar o uso do Acordo e criar condições para acabar com ele, ou com a sua aplicação imposta, sorrateira e maliciosa.

Eu não desisto, porque há ainda muita coisa a fazer contra o Acordo. Angarie-se algum dinheiro, e há quem esteja disposto a dá-lo, seja mais, seja uma contribuição de um euro, façam-se anúncios de página inteira nos jornais, coloquem-se outdoors nas ruas, peça-se a escritores, criativos, artistas, cientistas, que escrevam uma frase em defesa da nossa língua ou façam um desenho, um grafismo, uma história aos quadradinhos, façam-se bancas nas ruas para recolha de assinaturas com a presença das muitas pessoas conhecidas e de prestígio que ainda escrevem português, faça-se uma associação de defesa da língua portuguesa ou dinamize-se uma que já exista, exija-se direito de antena e pressionem-se os órgãos de comunicação a darem voz a estes críticos da degradação da língua e da cultura.

A língua portuguesa precisa de nós. E não se esqueçam deste facto: o Acordo é impopular.

Historiador


Nota: transcrição integral de artigo publicado na edição de sábado, 9 de Maio de 2020. Destaques e “links” nossos. Cópia a partir de PDF. Edição em papel (online) AQUI.

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2 comentários

    • Cristina Augusta Themudo Mallaguerra Pinto de Barros on 11 Maio, 2020 at 16:04
    • Responder

    Exmo. Senhor,
    muitos parabéns por mais este artigo. Sempre fui contra esta aberração do AO90, nunca tive dúvidas sobre como iria prejudicar e de facto já prejudica o português de Portugal, uma vez que já se sentem alguns efeitos desta asneira no nosso quotidiano. Mas já deve estar farto de mensagens com este tipo de teor, por isso fico por aqui nas opiniões.
    Assinei e assinarei sempre todas as petições que houver contra o AO90. Mas temo perder algumas iniciativas por falta de conhecimento da ocorrência das mesmas.
    Assim, se por acaso tiver uma caixa de endereços de email a quem são enviadas notícias de iniciativas para conseguir número de participantes e/ou assinantes contra, peço-lhe que conte comigo.
    Desde já muito grata pela atenção dispensada a esta mensagem,
    Melhores Cumprimentos
    Cristina Pinto de Barros

    1. Exma. Senhora,
      muito obrigado pela sua mensagem e pelas suas palavras.
      A verdade é que nunca nos fartamos de receber este tipo de contactos. Pelo contrário, são sempre gratificantes os exemplos do repúdio que o AO90 continua a merecer por parte dos portugueses. Oxalá houvesse mais pessoas a manifestar esse mesmo desagrado, em todas as instâncias.
      A melhor forma de acompanhar o percurso desta ILC é precisamente através do seu sítio oficial, em http://www.ilcao.com. Raramente fazemos envio de mensagens por “e-mail” até porque a maior dos subscritores, como é natural, não nos deixou o seu endereço electrónico. Assim sendo, não é possível, por essa via, chegarmos a todos. Mas, claro, acrescentamos desde já o seu contacto a essa lista.
      Atenciosamente,
      Rui Valente

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