A ILC-AO na Feira do Livro do Porto — a saga continua!


Todos temos ainda presente a situação absurda vivida pela Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico na Feira do Livro do Porto em 2018. Na edição do ano passado, ao quinto dia de “Feira”, a Polícia Municipal, a pedido da Câmara do Porto, decretou o fecho da nossa banca de recolha de assinaturas. Por “banca”, entenda-se, estamos a falar de uma pequena mesinha, um espaço mínimo onde as pessoas possam assinar uma folha de papel. Não estamos a falar de um pavilhão e, muito menos, de um equipamento cedido pela Câmara Municipal.

Numa confusão (propositada?) entre iniciativa cívica e espaço comercial, alegou o município que as áreas destinadas a bancas de divulgação e venda de produtos eram exíguas, sujeitas a rateio e fonte de receitas para a Feira do Livro.

Naturalmente, explicámos ao departamento camarário responsável que uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos não é um “stand” comercial — está protegida por uma Lei que diz que o exercício do direito de iniciativa é livre e gratuito, não podendo ser dificultada ou impedida, por qualquer entidade pública ou privada, a recolha de assinaturas e os demais actos necessários para a sua efectivação, nem dar lugar ao pagamento de quaisquer impostos ou taxas. E explicámos, também, que o “espaço” necessário para a recolha era apenas espaço físico (exíguo), ou seja “chão livre” (diminuto), sem qualquer transtorno para a logística e para a gestão camarária do evento a ocorrer nos Jardins do Palácio de Cristal — um espaço público.

Em 2018, apanhados de surpresa em plena Feira do Livro, não estando nós de sobreaviso nem tendo qualquer precedente esta espécie de “problema”, não conseguimos contestar em tempo útil. É certo que, assim que o dito “problema” foi criado pela municipalidade, encetámos de imediato uma nova troca de correspondência com os responsáveis. Infelizmente, essa diligência serviu apenas para demonstrar o completo desprezo da Câmara Municipal pela Lei, ao mesmo tempo que, por via de tal expediente, se esgotaram os restantes dias do evento.

Este ano, precisamente para evitar essas estranhas confusões, contactámos a Câmara Municipal do Porto com bastante antecedência. No passado dia 28 de Maio enviámos uma mensagem, dirigida à Organização (feiradolivro@cm-porto.pt), dando conta da nossa intenção em prosseguir a recolha de subscrições na edição do ano corrente. Numa exposição detalhada, solicitámos que se evitasse o conflito verificado em 2018 e disponibilizámos-nos para, em conjunto com a organização do evento, encontrarmos um local adequado para a recolha de assinaturas.

Para nossa grande surpresa, em Julho, quase dois meses depois da nossa mensagem, a Câmara do Porto respondeu, voltando a negar-nos o acesso à Feira do Livro. Se em 2018 os argumentos foram a falta de condições logísticas (que não pedimos) e a existência de uma grelha de espaços comerciais que pagam taxas (o que não se aplica a uma ILC), este ano a desculpa foi a de “criar um precedente para promover no recinto da Feira do Livro uma campanha de iniciativa cidadã, que poderá abrir portas a muitas outras igualmente legítimas e estimáveis o que inevitavelmente provocaria constrangimentos à organização do certame e a todos os que dele usufruem, público e expositores“.

De certo modo, há aqui um progresso — e não nos referimos ao facto de sermos considerados “legítimos” e “estimáveis”. É que, pelo menos, a Câmara Municipal já não nos confunde com uma banca de venda de sumos de frutas. Mas persiste na confusão entre uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos e iniciativas cívicas de género, índole, finalidades, requisitos e enquadramento legal em absoluto diversos.

Em abono da verdade, muito nos espanta que uma Feira do Livro não queira, ela própria, chamar a si a promoção de um espaço de iniciativa cidadã (legislativa ou outra), convidando os visitantes a pronunciar-se sobre as mais diversas questões que envolvem a vida em comunidade. Não é uma Feira do Livro, acima de tudo, um espaço de cultura?

No entanto, neste capítulo, a nossa opinião não conta. Não questionamos a legitimidade da Câmara Municipal — um órgão democraticamente eleito — para gerir da forma que entender por conveniente um espaço público. O que já não podemos aceitar é que essa gestão seja feita ao arrepio da Lei… ou até sobrepondo-se a ela, ignorando-a, desprezando-a.

Como não podia deixar de ser, respondemos de imediato, citando pela enésima vez o artigo 5º da referida Lei 17/2003,. Obviamente, a questão do “precedente” não faz qualquer sentido, porquanto a Lei cria uma discriminação positiva. A presença da ILC-AO nos jardins do Palácio de Cristal não “abre portas” a “muitas outras” iniciativas, por este simples facto: se não forem Iniciativas Legislativas de Cidadãos não estão abrangidas pela Lei. Se forem, não podem ser “muitas”. Diz-nos a História que houve, até hoje, menos de uma dezena de ILC — e, destas, apenas uma, pela natureza do seu objecto, julgou por bem recolher assinaturas em Feiras do Livro. A ILC-AO não está a “abrir portas”. Pelo contrário, a ILC-AO é a única contemplada por uma decisão arbitrária da Câmara Municipal do Porto que, disfarçada de “medida genérica”, nos é afinal dedicada em exclusivo.

Num aparente recuo, diz-nos agora a Câmara do Porto que a recolha de assinaturas está autorizada, desde que não seja instalada uma “banca ou outro equipamento para esse fim“. Estamos portanto, de regresso às condições leoninas de 2018: a recolha de assinaturas pode ocorrer, só não podemos reunir as condições mínimas de exequibilidade para o efeito. Posta em cheque, a Câmara Municipal quer poder dizer que “não impede”. Acontece que “dificultar”, recorde-se, já é uma infracção à Lei. E na prática, as dificuldades impostas são de tal ordem que a Câmara Municipal, de facto, impede. Em rigor, a Câmara Municipal dá-nos permissão para que duas pessoas, num espaço público, possam encetar uma conversa.

Ora, como é evidente, para despachar semelhante “determinação”, a Câmara Municipal não era precisa para nada, nem a Lei que protege o Direito de Iniciativa Legislativa serviria fosse para o que fosse. “Autorizar” que duas pessoas conversem na Feira equivale na prática a não “autorizar” coisa alguma, mimetizando um procedimento oficial afinal inexistente.

Neste contexto, e porque a Câmara Municipal do Porto insiste em não saber — ou não querer saber — ler a Lei, não temos outra alternativa que não seja levar a cabo a recolha de assinaturas na rua, à porta dos Jardins do Palácio de Cristal. Não podemos aceitar uma situação de clandestinidade, em que o direito de recolha de assinaturas, apesar de legalmente previsto e protegido, passa a ser exercido sem um mínimo de dignidade — ou, em alternativa, sob a ameaça de, a qualquer momento, sermos expulsos pela Polícia Municipal. Enquanto promotores de uma ILC recusamo-nos a abdicar, num espaço público, dos direitos que nos assistem e que estão consagrados na letra da Lei.

Reservamo-nos ainda o direito de exercer por todos os meios, incluindo mas não se restringindo a eventuais procedimentos legais, as diligências que, em conformidade com o ocorrido (ou com o que possa vir a ocorrer), considerarmos adequadas.

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5 comentários

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    • Maria José Abranches on 27 Agosto, 2019 at 19:12
    • Responder

    Espantoso! 45 anos após o 25 de Abril, os poderes instituídos continuam a ignorar que estamos em democracia! Os velhos tiques perduram! E é também incompreensível que a organização de uma Feira do Livro não entenda a relação do “Livro” com a Cultura e desta com a Língua, que lhe dá corpo e a estrutura!

  1. O caso deve ser apresentado ao Provedor de Justiça, por email / provedor@provedor-jus.pt e por carta registada (Rua do Pau de Bandeira 9, 1249-088 Lisboa)

    1. Obrigado pela sugestão, que também ponderamos. Todas as hipóteses estão em aberto — excepto, naturalmente, desistir.

    • Paulo da Costa Domingos on 27 Agosto, 2019 at 23:13
    • Responder

    «Legitimidade» e «órgão democraticamente eleito» não são sinónimos de inteligência. E ser-se «democraticamente eleito» não dá o direito de, depois, exercer essa dita «legitimidade» calando os cidadãos. A democracia representativa não serve para conferir poderes tribunícios e fascistas aos eleitos. Os eleitos são meros funcionários públicos. Talvez por representarem cada vez menos os cidadãos, estas democracias estejam a ser fustigadas por cada vez maiores ondas de abstenção.
    (a) Paulo da Costa Domingos

    • José Antunes on 29 Agosto, 2019 at 3:13
    • Responder

    É lamentável ver como as entidades que mais responsáveis são pelo cumprimento da Lei, usam todos os estratagemas possíveis para não a cumprir, alegando as desculpas mais imbecis – é o termo – para impedir que um acto de cidadania responsável como é este da recolha de assinatura, se concretize. É ainda mais triste pensar que são pessoas que movem esta máquina, porque as desculpas esfarrapadas que dão sugerem que pretendem, isso sim, impedir que se fale sobre o que aconteceu à Língua Portuguesa. Ora se são pessoas e pactuam com este monstrengo, não se lhes pode dar muito crédito, porque, se acham que está tudo bem, alguma coisa estranha lhes enche o espaço do cérebro. Maldade e algo mais…

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