Como o PÚBLICO bem denunciou, em artigo que reproduzimos no início de Agosto, o primeiro ano desta XIV Legislatura terminou sem que a ILC-AO/Projecto de Lei nº. 1195/XIII tivesse sido debatido e votado. Nunca imaginámos que fosse possível um Projecto de Lei que já vem da Legislatura anterior (!) pudesse atravessar todo o primeiro ano da Legislatura seguinte e estar ainda sem data para ir a Plenário, volvido um ano e meio sobre a sua entrega na Assembleia da República e mais de oito meses depois de ter baixado à Comissão de Cultura e Comunicação.
O tempo lento da Assembleia da República
Recordamos que, nos termos da Lei, quando um Projecto de Lei dá entrada numa Comissão Permanente, prevê-se um prazo de trinta dias para que esta elabore um relatório sobre essa Iniciativa Legislativa. Esgotado o prazo, o Presidente da Assembleia da República deve marcar o debate e votação desse Projecto de Lei para uma das próximas dez sessões plenárias seguintes. A ILC deu entrada na Comissão de Cultura e Comunicação no dia 6 de Novembro de 2019. O prazo de trinta dias esgotou-se várias vezes antes de a ILC finalmente decidir enviar um pedido expresso ao Senhor Presidente da Assembleia da República solicitando o cumprimento da Lei e o agendamento da Iniciativa — uma solicitação que não obteve qualquer resposta.
Em Março de 2020 a Comissão de Cultura (CCC) solicita, por algum motivo que ultrapassa a nossa compreensão, um outro parecer, desta vez da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (CACDLG). Seria preciso esperarmos até ao final de Junho para que esta Comissão produzisse o parecer encomendado pela CCC.
No “site” do Parlamento, a página do Projecto de Lei n.º 1195/XIII assinala o dia 29 de Junho como a “data de envio do Relatório/Parecer ao Presidente da AR”. Deduzimos que esta seja a data oficial em que pára a contagem do prazo de 30 dias. No entanto, a saga dos pareceres não estava ainda terminada. No dia 14 de Julho a Comissão de Cultura ainda aprovaria mais um parecer, integrando as considerações da Comissão de Assuntos Constitucionais — mais de oito meses depois de esta Iniciativa Legislativa ter baixado àquela Comissão permanente.
Aparentemente neutro, este tempo de espera é na realidade demolidor para qualquer Iniciativa Legislativa — favorecendo, neste caso, os defensores do Acordo Ortográfico, que recusam vê-lo como o erro grosseiro que de facto é e apostam na estratégia do facto consumado para o impor violenta e grosseiramente.
A lenta passagem do tempo é, porventura, um castigo ainda mais penoso para esta causa do que seria a sua simples derrota em votação do Plenário. Se, quando foi entregue em 2019, a ILC tivesse sido liminarmente rejeitada, o cenário actual seria certamente mais animador: teríamos de imediato iniciado outras formas de luta.
Não é por acaso que a regra dos 30 dias existe, e não é por acaso que a contagem desse prazo se faz independentemente da produção (ou não) de um parecer por parte da Comissão competente. O objectivo do legislador só pode ser, sejamos optimistas e benévolos, o de proteger as Iniciativas Legislativas, colocando-as ao abrigo de eventuais manobras dilatórias. Ao não cumprir a Lei, a Assembleia da República, objectivamente, tomou o partido daqueles a quem não convém o Projecto de Lei n.º 1195/XIII.
Recomendo-te que me recomendes…
Sobre o conteúdo destes pareceres tivemos já oportunidade de nos debruçarmos (O parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais: uma obra de ficção jurídica?).
De uma assentada, o parecer da CACDLG comete a proeza de esvaziar a letra e o espírito das Iniciativas Legislativas de Cidadãos, ao mesmo tempo que subverte o papel da própria Assembleia da República, atribuindo-lhe uma função meramente contemplativa numa área que é da sua exclusiva competência — a aprovação e desvinculação de tratados internacionais.
Na tese da Comissão de Assuntos Constitucionais a capacidade de iniciativa da AR é truncada, limitada, no máximo, à figura da “recomendação ao Governo”. Por ironia, e porque a Constituição é clara neste ponto, o Governo não aprova nem desaprova tratados, estando obrigado a propor essa adesão (ou desvinculação) à Assembleia da República. Ou seja: numa área que é da sua competência, a AR estaria limitada a recomendar ao Governo… que este lhe recomende a adesão ou a desvinculação de um tratado.
Mais uma vez, importa ressalvar: nada disto se aplica ao nosso Projecto de Lei que, como sempre dissemos, não propõe nem nunca propôs a adesão ou a revogação de qualquer Tratado Internacional, como é o caso do AO90 — incluindo os anexos (Protocolos Modificativos) que dele fazem parte.
Mas, mais grave do que a menorização das competências da Assembleia da República, é a recusa ostensiva do diálogo sobre o objecto do nosso Projecto de Lei. Quem se der ao trabalho de ler os pareceres exarados pelas Comissões de Cultura e de Assuntos Constitucionais terá alguma dificuldade em perceber de que trata o Projecto de Lei n.º 1195/XIII. Ortografia? Teoria Geral da Escrita Cuneiforme? Norma Portuguesa para o fabrico de alfinetes?
E, afinal de contas, bem fácil é a leitura e muito simples são os pressupostos, a sustentação argumentativa e os objectivos da ILC-AO: não revoga o AO90, não revoga qualquer Protocolo, apenas implica que o Parlamento recue na sua precipitada, mal informada (e ignorante) decisão de aceitar como suficientes para todos os oito Estados da CPLP a assinatura de apenas três deles.
Com a notável excepção da Nota Técnica que reuniu contributos de diferentes departamentos da AR, toda a documentação produzida em torno da nossa proposta se centrou na forma, em detrimento do conteúdo. Na primeira versão do seu relatório o deputado-relator opta por não referir a sua opinião pelo tema em apreço, remetendo a posição do seu grupo parlamentar para o “debate posterior”. Na versão final, a referência ao “debate posterior” é omitida. A proposta do deputado-relator passa a ser a eliminação de qualquer possibilidade de “debate posterior”.
Ora, este debate é inadiável. É por demais evidente que o Acordo Ortográfico não unifica o mundo lusófono, não facilita o ensino do Português e nada acrescenta ao prestígio da Língua Portuguesa no mundo, antes pelo contrário. Interpelar a Resolução que, em 2008, abriu as portas à sua aplicação em Portugal seria um óptimo pretexto para, pelo menos, aflorarmos essa discussão.
Neste contexto, bloquear o debate com base numa mais que duvidosa inconstitucionalidade técnica (pode um Projecto de Lei revogar uma Resolução?) é prestar um mau serviço ao país. Mesmo aceitando como boa a tese de que a ILC é inconstitucional, o seu propósito — questionar uma Resolução da Assembleia da República — não o é. E merece ser discutido.
Como não podia deixar de ser, perante as conclusões destes pareceres, escrevemos mais uma vez ao Senhor Presidente da Assembleia da República, protestando contra a perspectiva do não agendamento da ILC.
Desta vez, o Presidente da Assembleia da República respondeu. Numa curta mensagem enviada no dia 24 de Julho, Ferro Rodrigues, anunciou a sua intenção de levar as questões que suscitámos à apreciação da Conferência de Líderes no início da próxima Sessão Legislativa — aceitando, implicitamente, o princípio de que os pareceres das Comissões não são vinculativos.
Não podemos esquecer que tanto a democracia participativa como a transparência da própria Assembleia da República vivem actualmente tempos difíceis. Quer a nível do poder local quer na própria Assembleia da República, os exemplos sucedem-se: propostas de “melhoria” da Lei n.º 17/2003 que resultam em prejuízo dessa mesma Lei, tentativa da CACDLG se constituir como sucursal do Tribunal Constitucional, arrogando-se um poder que, de facto, não tem, tentativa de aumento do número mínimo de assinaturas para petições, etc. Os critérios, no entanto, não são uniformes. Recentemente, foi a própria Comissão de Assuntos Constitucionais a propor o debate de uma proposta do Partido Chega, apesar das dúvidas sobre a sua constitucionalidade.
No meio deste período conturbado, a comunicação do Presidente da Assembleia da República permitiu-nos, apesar de tudo, aguardar por este mês de Setembro com um módico de esperança.
Justificada? Infelizmente, não. Numa nova mensagem, recebida ontem, Ferro Rodrigues comunica-nos que abordou a situação da ILC em sede de Conferência de Líderes, como prometido, mas os representantes dos vários Grupos Parlamentares optaram por assumir como válido o parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, inviabilizando, consequentemente, o debate da ILC em plenário.
Naturalmente, a Comissão Representativa da ILC terá ainda de reagir formalmente a esta decisão da Conferência de Líderes e, nem que seja por isso, esta luta ainda não terminou. Mas dificilmente este mês de Setembro poderia revelar-se mais sombrio — para a Língua Portuguesa, sim, mas também para a própria democracia em vivemos.
6 comentários
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Nunca sequer tinha imaginado que, uma vez instaurada a democracia em Portugal, graças ao 25 de Abril, uma sustentada e criminosa vandalização da mesma democracia fosse possível, levada a cabo pela AR, a instituição mais responsável pelo respeito e defesa da mesma democracia! Eu, portuguesa e democrata, quero que fique aqui registada a minha revolta e a minha indignação!
Que, para muita da dita ‘elite’ nacional, por uma aberração incompreensível, a língua materna dos portugueses seja algo de desprezível, está patente ao longo da nossa História: basta atentar na obsessão permanente em fazer ‘acordos’ ortográficos com o Brasil, em detrimento da preocupação com a qualidade do ensino da língua no nosso sistema educativo, assim como junto das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. E mais: o que temos feito para dar a conhecer e divulgar a nossa língua na União Europeia? O que tem sido feito em termos de investimento no estudo e conhecimento do português europeu, em termos científicos e na produção de estudos linguísticos, gramáticas, dicionários, métodos para aprendizagem da língua, formação de tradutores e intérpretes, tradução automática, etc.? Será que ninguém se apercebe dos erros linguísticos, escritos e orais, cada vez mais abundantes, que vêm infestando a nossa comunicação social? Que língua aldrabada é esta?! Os responsáveis políticos e a ‘elite’ são ignorantes e não têm vergonha?!
Como há, na Europa, quem saiba o que significa a sua língua, dou a palavra a Jean d’Ormesson, da Academia Francesa, defendendo a língua francesa: «Como defenderíamos o francês fora das nossas fronteiras se não o defendemos em casa (“chez nous”)? É aqui que está o problema fundamental. A tarefa mais urgente é salvar a nossa língua do naufrágio. Desculpar-me-ão a ingenuidade da afirmação: ser francês hoje, é saber falar, escrever e compreender o francês.» (in “Saveur du temps”, 2009, Éditions Héloïse d’Ormesson, que traduzi).
Rui Valente, desculpe a minha ignorância, porque nestas matérias sou muito ignorante: mediante o que aqui ficou relatado, não haverá matéria para processar o Estado Português ou o Governo Português, por este atropelo à Democracia, às leis, às regras, e pelo atropelo à Língua Portuguesa? Porque isto ultrapassa todos os limites de tudo.
Eles estão nitidamente a gozar connosco. Estão a fazer-nos de parvos. Estão a desrespeitar-nos. E vamos deixar que façam isso impunemente?
Concordo com tudo o que diz a Maria José Abranches, no seu comentário, e faço minhas as palavras dela.
E é bem verdade que a tarefa mais urgente é salvar a nossa língua do naufrágio iminente, porque ela “navega” numa canoa furada, já meio submersa. Temos de fazer alguma coisa em grande, massivamente, coesamente , no nosso País, antes que se afunde de vez.
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Não sendo próprio versado na matéria, creio que processar o Estado implicaria o recurso a um tribunal internacional reconhecido pelo Estado — uma opção que, a nível pessoal, me desagrada, independentemente da maior ou menor viabilidade dessa demanda. Por outro lado, processar o Governo é missão quase impossível, porquanto o Governo emana da Assembleia da República (eleita por nós…) e tem carta branca para gerir o país de acordo com o seu programa durante quatro anos. Infelizmente, “governar mal” é um critério forçosamente ambíguo, que não é fácil tipificar em termos que possam servir de base para um processo.
Todavia, neste caso, está em causa não o Estado ou Governo, mas sim o comportamento da AR, esse sim, ao arrepio da Lei n.º 17/2003. Tanto o atraso no agendamento do nosso Projecto de Lei como as alterações cirúrgicas levadas a cabo na própria Lei configuram um atentado à democracia participativa, tal como é salvaguardada pela Constituição. Aqui, sim, estamos a avaliar todos os cenários possíveis e imaginários.
Faço minhas as palavras de Maria José Abrantes e associo-me a Isabel A. Ferreira na sua questão quanto a um possível processo contra o Estado Português. Permito-me ainda classificar a forma como este acordo foi imposto aos portugueses, como absolutamente ditatorial, pois apesar da perfeita consciência da sua não aceitação e da criação de grupos que lutam pela sua abolição, recorrendo a formas legais para o efeito, os governos e respectivas AR “chutam a bola” mutuamente de maneira a enganar vergonhosamente os cidadãos, dando-lhes a entender que estão a tratar do assunto mas que, infelizmente, não é possível um retrocesso.
Gostaria de referir que, em1983 fui eleita presidente de uma “Associação Euro-escolas para uma formação bilingue” – grupo de 11 pais que se juntaram em Berlim para assegurar esse tipo de ensino aos filhos. Para esse fim contactámos igualmente a Vice-Consul do Brasil – à altura Monika Salski e foram realizados igualmente contactos com Angolanos aí residentes em número muito reduzido. A escola foi inaugurada e mantém-se em actividade até aos dias de hoje com sucesso. Regressada a Portugal em 1996, deixei de saber exactamente qual o português aí ensinado. Pergunto-me hoje, face à luta que tenho travado contra o entretanto imposto AO90, se tal esforço valeu a pena. O nosso propósito na altura com o contacto com o consulado do Brasil, era assegurar o quorum necessário ao ensino do português. Depois da imposição deste maldito AO90, suspeito ter contribuido involuntariamente, para ensino de qualquer coisa difusa, com o nome de português, numa escola da capital alemã. E uma enorme raiva apodera-se de mim.
Por falar em angolanos, não deixa de ser irónico que, comparados com aqueles que hoje em Portugal falam na televisão e escrevem em toda a parte – políticos, jornalistas, comentadores, empresários, artistas, “intelectuais” e outras espécies nada raras, enfim, a fina flor do analfabetismo pedante, o qual, mal se manifesta, logo se converte em novas modas linguísticas de modo viral (infelizmente eles não usam máscara quando dão azo à sua ignorância locutória) –, os naturais das antigas colónias portuguesas, quando pertencem a comunidades onde o Português é ensinado desde cedo, parecem, por não estarem ainda corrompidos pelo modernês e pela ânsia de sempre se expressarem por frases anglo-saxónicas traduzidas literalmente e palavra a palavra para a nossa língua, parecem, dizia, eles sim, os originadores desta última…
Nunca pensei presenciar aquilo que tem sido o comportamento da AR em relação ao AO90. Não só facilitou o AO90 sem nenhum tipo de discussão pública que o valide (pelo contrário, toda a discussão pública foi sempre no sentido da sua recusa), como não hesita em desrespeitar todas as regras de funcionamento democrático e todas as regras de ética política para impedir que a população se expresse. Magnífico.