No passado dia 3 de Março, em reunião ordinária da Comissão de Cultura e Comunicação, foi finalmente aprovado o parecer daquela Comissão sobre o Projecto de Lei 1195/XIII, promovido por esta Iniciativa Legislativa de Cidadãos. O documento foi aprovado com os votos favoráveis do PS, BE e PSD e com o voto contra do PCP. O CDS-PP e o PAN estiveram ausentes no momento da votação.
Quando dizemos “finalmente”, referimo-nos apenas ao atraso com que esta votação decorreu. A Lei determina que a aprovação deste documento seja levada a cabo em trinta dias — um prazo que, para esta ILC, está a contar desde 12 de Novembro do ano passado, mesmo se descontarmos os 30 dias da discussão do Orçamento do Estado.
Quanto ao documento propriamente dito, a expressão mais adequada para o qualificar será “infelizmente”.
Com efeito, o parecer aprovado pela 12ª Comissão confirmou os nossos piores receios: nos termos desse relatório, a Comissão de Cultura (ou, pelo menos, os partidos que o votaram favoravelmente) persiste na (absurda) teoria de que o nosso Projecto de Lei poderá ser inconstitucional.
De nada serviu a reunião que tivemos com Pedro Cegonho (PS), o deputado encarregado de redigir o documento, no passado dia 18 de Dezembro. Nesse encontro, disse-nos o deputado que “tinha dúvidas” quanto à conformidade do nosso Projecto de Lei, no que diz respeito à Constituição da República. De imediato nos disponibilizámos para lhe enviar um parecer capaz de esclarecer essa questão, o que fizemos, remetendo-o igualmente aos demais deputados que integram a Comissão de Cultura. Pedro Cegonho agradeceu esse envio e, efectivamente, citou na íntegra esse parecer, da autoria do Professor Doutor Francisco Ferreira de Almeida, na parte em que se aborda a questão do ponto de vista do Direito Constitucional. Mas concluiu, ainda assim, pela existência de “dúvidas razoáveis”.
Ora então, vejamos: em que consistem as dúvidas de Pedro Cegonho em representação da Comissão Parlamentar de Cultura?
Como é sabido, uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos não pode incidir sobre uma matéria que não seja da competência do Parlamento. A ILC-AO pretende revogar uma RAR, isto é, uma Resolução da Assembleia da República. Não terá a Assembleia da República competência para deliberar sobre uma Resolução… da própria Assembleia da República?
O parecer aprovado pela Comissão de Cultura tenta contornar esta lógica, tão simples quanto evidente. Citando o constitucionalista Jorge Miranda, assegura aquele deputado que “se a vinculação jurídica do Estado a um tratado ou acordo reclama a colaboração de diferentes órgãos, de harmonia com estritas regras de competência e de forma, também a desvinculação há-de obedecer a idênticos requisitos“.
Acontece que a revogação da RAR 35/2008 não constitui uma renegociação, revogação ou desvinculação do Acordo Ortográfico de 1990, que continuará a existir e ao qual Portugal permanecerá vinculado, nos termos do Tratado de Roma (Direito dos Tratados). Não constitui sequer, a nossa iniciativa cívica, uma hipotética proposta de alteração do II Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico.
É certo que, se tudo correr bem, a revogação da RAR 35/2008 deverá levar o Governo a intervir — assim saiba o executivo encarar esse desenvolvimento como uma oportunidade e não como um contratempo. No entanto, nesta fase, a autonomia da Assembleia da República para deliberar sobre uma sua Resolução é por demais evidente.
Em que ficamos?
Neste momento, em face das “dúvidas razoáveis” ou de “diferentes posições doutrinárias”, o relatório aprovado pela 12.ª Comissão limitou-se a solicitar um parecer sobre a possível inconstitucionalidade da ILC-AO à 1ª Comissão (Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias).
Quanto à Iniciativa Legislativa propriamente dita, o texto aprovado pela Comissão de Cultura nada diz. Não é dedicada uma única palavra aos méritos deste Projecto de Lei, nem se reconhece a oportunidade que assim se cria para a correcção de um erro. O parecer do Professor Francisco Ferreira de Almeida, citado na íntegra no que respeita ao Direito Constitucional, foi completamente ignorado, no capítulo do Direito Internacional. Aí se demonstra que a RAR 35/2008 nunca devia ter sido proposta, e muito menos aprovada, à luz do Direito Internacional (por violar vários preceitos da Convenção de Viena). Tendo-o sido, encontra-se agora vazia de sentido à luz desse mesmo Direito — ou não estivesse ainda por cumprir a tão desejada “unificação da Língua”.
Entretanto, e para todos os efeitos, a Comissão competente continua a ser a 12ª. O parecer que vier a ser produzido na 1ª Comissão será enviado à 12ª e, aí sim, será finalmente proposto o agendamento da ILC-AO para debate e votação no Plenário.
Ou não.
Para se ter uma ideia da gravidade que este momento pode vir a assumir, tão inusitado quanto “estranho”, temos de compreender que este novo parecer, solicitado à 1ª Comissão, poderá significar, na prática, o fim da ILC-AO. Se a 1ª Comissão se manifestar no sentido da inconstitucionalidade — e, nos tempos que correm, tudo é possível — pode suceder que o Projecto de Lei 1195/XIII não suba a Plenário. Ainda que estes pareceres não sejam vinculativos, não é crível que a Presidência da Assembleia da República ignore a aposição de um tal selo de descrédito nesta Iniciativa Legislativa. Nesta… e em qualquer outra que porventura se constitua, para este ou para qualquer outro efeito.
A confirmar-se este cenário, estaríamos perante uma limitação grave das competências da Assembleia da República, e acima de tudo, perante um ataque frontal à figura da Iniciativa Legislativa de Cidadãos enquanto forma de intervenção cidadã.
Esperamos, sinceramente, que os nossos receios sejam infundados. Se a lógica não for uma batata, o trânsito pela 1ª Comissão não pode senão fortalecer esta Iniciativa Legislativa, reforçando a sua legitimidade.
Se isso não acontecer, bem podemos perguntar: quem tem medo deste debate?
A verdade é que a posição de quem defende o Acordo Ortográfico está, mais do que nunca, fragilizada. Além da delapidação da norma ortográfica, que sucessos podem apresentar, em sua defesa, os promotores do AO90? Ao fim de trinta anos de utopia, conseguiu-se a unificação ortográfica? As nossas editoras tomaram de assalto o mercado lusófono, a começar pelo Brasil, sem necessidade de “traduzir” os seus textos? O “prestígio” e o “valor” da Língua Portuguesa viram-se repentinamente catapultados na cena geopolítica mundial? Com o “acordo” houve alguma espécie de “difusão e expansão da Língua Portuguesa no mundo“?
Nada disto aconteceu. Pelo contrário, o Acordo Ortográfico tem servido de cortina de fumo, ocultando o desinvestimento numa verdadeira política de intercâmbio, na promoção da Língua, nos leitorados e no ensino do Português além fronteiras.
É tempo de PS, PSD e BE, para referir apenas os partidos “com dúvidas”, deixarem de assumir as dores de um Acordo Ortográfico que ninguém pediu, não era preciso para nada e só tem prejudicado o normal relacionamento entre os diversos países da CPLP.
4 comentários
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quem tem medo ? todos. Estão todos acagaçados do que lhes pode acontecer se se renderem á Coroa inglesa. O proposito é substituir a lingua portuguesa, pela lingua inglesa. Não se destroi a lingua portuguesa para passarmos ao Braile. È para impor outro dialecto. Tal como na India.
Parece muita teoria da conspiração, mas, basta olhar para a realidade. Ainda agora estive na loja do Cidadão em coimbra e uma funcionaria ficou furiosa quando eu lhe perguntei, e corrigi, que eu não sabia o que queria dizer “e-mail” e “Stand by”e lhe perguntei porque é que ela não disse logo “correio electronico”.
Antigamente, nos reinos feudais, uma Coroa menor, tinha que casar a filha, com o filho da Coroa mais forte, para não haver guerra.
Lembremo-nos que em Novembro de 1975, o Henri Quissinger (amerdicano) veio a Portugal avisar o governo para parar com a revolução. No tempo do Salazar, isto nunca aconteceria
Acontece poque estes politicos corruptos e cobardolas, querem vender Portugal, ás peças.
Já não temos fronteiras nem cultura, só falta dar o golpe de misericordia na lingua. E acabou a nação.
No Brasil, já falam meio português e meio inglês.
Author
A incorporação de estrangeirismos sempre foi um fenómeno natural em todas as Línguas, e costuma ser benéfica — promove a aproximação entre os povos e facilita a comunicação. Pode tentar encontrar uma expressão em Português que traduza a noção de “internet” mas desejo-lhe boa sorte para a tarefa de se fazer entender — por outros portugueses, bem entendido.
Quero com isto dizer que, no que ao Acordo Ortográfico diz respeito, os problemas criados pelo Inglês contam pouco. Há um propósito de substituição, sim, mas do Português Europeu pelo Português do Brasil. Com a agravante de não ser um fenómeno espontâneo, mas sim criado artificialmente, afectando centenas de palavras e não apenas uma ou duas.
Cumprimentos,
Caro Rui Valente quero fazer-lhe um pedido!!
Pedido esse que resulta da sua utilização da designação da nossa língua como
Português Europeu por oposição a Português do Brasil.
Nós os Portugueses de/em Portugal falamos Português os outros não sei.
Os Portugueses espalhados pelos vários países Europeus desenvolveram variantes
que talvez já merecessem estudo e designação própria e não é por estarmos cada
vez mais integrados nas estruturas políticas Europeias que (por enquanto!?) se perde
a referência às nossas origens, cultura e história.
Assim, caro Rui Valente penso ser, no mínimo, desejável não utilizar a designação
“acordísta” Português Europeu para se referir ao Português de Portugal.
Melhores cumprimentos,
Author
Caro Nuno M Lourido, muito obrigado pelo seu comentário.
Estamos a falar de uma Língua que tem duas variantes. Uma delas é, inequivocamente, o Português do Brasil. A outra, que é a nossa, tem sido geralmente identificada de três modos: Português de Portugal, Português Europeu ou, simplesmente, Português.
Devo dizer, antes de mais, que nunca associei a designação “Português Europeu” ao acordismo. Se assim fosse, creio que me sentiria até tentado a utilizá-la ainda mais, só para contrariar essa apropriação indevida. Na verdade, limito-me a encarar o “Português Europeu” como uma simples designação técnica da nossa norma ortográfica. Ao contrário do Português do Brasil, que só é utilizado no Brasil (aceitando-se, por isso, a inclusão do país no nome), o Português Europeu é uma norma à escala planetária, que faz sentido identificar com base no continente onde teve origem. A designação “Português Europeu” tem ainda a vantagem da neutralidade, podendo ser adoptada, sem qualquer problema, por Angola, Moçambique, Macau, Índia… Luxemburgo, etc.
É claro que também podia chamar-lhe Português de Portugal. Infelizmente, com essa designação perde-se esse sentido universal, de que muito me orgulho. “Português de Portugal” é uma expressão que parece confinar-se, apenas e só, ao nosso país. Por outro lado, corre o risco de ser vista por terceiros como uma expressão de certo modo chauvinista. Já não seria a primeira vez que os acordistas nos acusam de nacionalismo exagerado e de xenofobia — quem não tem argumentos combate com pedras. Não que isso me incomode (muito) mas também não vale a pena dar-lhes pretexto. Por outro lado, convenhamos, “Português de Portugal” também resulta uma expressão um bocadinho cacofónica. Tendo a evitá-la também por isso.
Também podia chamar-lhe, simplesmente, “Português”. Mas aqui, sim, receio que estejamos a cair numa armadilha acordista. O AO90 não é mais do que a ilusão de uma ortografia única. A utilização de “Português” (em contraponto, recorde-se, com “Português do Brasil”) pode facilmente descambar na confusão (propositada) com esse “Português único” que não existe, na tentativa de apagamento da realidade que é a existência das duas variantes.
Por tudo isto, pesados prós e contras, perdoe-me o meu gosto pessoal pelo “Português Europeu”, de que de facto prefiro. Não pretendo convencê-lo da bondade da minha argumentação mas espero, pelo menos, ter deixado claro que a minha utilização da expressão é feita na melhor das intenções.
Atenciosamente,