Quando se fala no Acordo Ortográfico, confesso que fico sempre desconfiado assim que oiço a palavra “debate”.
Gosto de uma boa troca de ideias, como qualquer pessoa, mas os debates sobre o AO tendem a ser cada vez mais uma conversa em que pelo menos um dos interlocutores é surdo. Escusado será sempre elencar a longa lista de problemas do AO, todos eles insolúveis: o essencial da nossa argumentação ficará sem resposta e o máximo que se consegue ouvir é o reconhecimento de que algumas coisas estão mal e serão certamente revistas num futuro próximo.
É certo que a mudança de opinião é possível. Conheço pelo menos dois deputados que votaram a favor do Segundo Protocolo Modificativo e que, mais tarde, se confessaram arrependidos. Um deles, Mendes Bota, é mesmo um crítico fervoroso do AO90. Como eles haverá certamente outros — creio que a maioria dos deputados julgava estar a aprovar apenas a adesão do recém-independente Timor-Leste à CPLP, sem perceber que à boleia disso vinha uma cláusula que permitia a entrada em vigor do AO sem que todos os países da CPLP o tivessem ratificado. Não fora essa manha e o AO ainda hoje estaria a marinar, a caminho do esquecimento.
Mendes Bota subiu imenso na minha consideração graças ao seu mea culpa. A capacidade para se reconhecer que errou só engrandece quem a põe em prática. Mas a verdade é que casos como os de Mendes Bota são raros. Quem é verdadeiramente a favor do AO parece viver não numa convicção científica das suas benesses mas numa espécie de febre clubista.
Ora, é sabido que podemos mudar muita coisa, mas não mudar de clube. Tentar fazer um acordista mudar de opinião é como tentar convencer um Benfiquista a mudar-se para o Futebol Clube do Porto. De modo que, regra geral, tendo a achar que os debates sobre o AO são inúteis.
Na última vez em que me vi na eminência de ter de debater o AO, o meu interlocutor, acordista, fez mesmo questão de concretizar os meus piores receios. Não só fez a habitual proposta de debate, como acrescentou: “Mas, para não ficarmos apenas no domínio da opinião, proponho que se convidem especialistas. Eu falarei com Fulano de Tal, docente na Universidade de Aveiro, e o Rui encontrará certamente alguém do seu lado, que fará a crítica do Acordo”.
Se há alguma coisa pior do que o debate sobre o AO é o chamado “especialista” sobre o AO.
Em toda a história da imposição do Acordo Ortográfico temos assistido, vezes demais, à aceitação acrítica desse conjunto de regras absurdas. “Eles lá sabem”, é o que muitas vezes ouvimos dizer a quem não gosta do AO mas não quer fazer-se passar pelo sapateiro que ninguém mandou tocar rabecão.
Vezes demais têm sido os próprios “especialistas” a fomentar esse espírito: nós é que sabemos, nós somos linguistas, nós estudámos. Uma atitude, aliás, que não é exclusiva dos defensores do Acordo.
Clemenceau, um político francês, disse que a guerra é uma coisa demasiadamente séria para ser confiada aos militares. Na questão do AO os especialistas têm-se comportado muitas vezes como políticos que dizem que a Língua Portuguesa é demasiado importante para ser deixada aos seus utentes.
O facto é que o Acordo Ortográfico é uma operação eminentemente política e a política é, por excelência e como se sabe, o reino da opinião. Em política, por muito errada que uma opinião possa parecer, há sempre um explicação — política — que a defende. Na política podemos encontrar um médico a defender o fecho de hospitais, um advogado a justificar o fecho de tribunais — ou um linguista a defender o AO.
A verdade é que os políticos poderão ter razão, mesmo quando defendem posições aparentemente erradas. Infelizmente, não é o caso do Acordo Ortográfico.
Eu, analfabeto confesso, não preciso de um curso superior para perceber que o artigo de opinião que tem por título “Nota Explicativa” contém erros inadmissíveis num documento desta natureza — sendo o principal, evidentemente, a presunção de que é necessário um Acordo. Mas enumeremos ainda mais alguns: quem determina “os casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da Língua” o “c” e o “p” em sequência consonântica? Quem determina as próprias “pronúncias cultas” da Língua? Como se explica o termo técnico “teimosamente” (ponto 4.2., alínea d) para classificar a conservação de consoantes não articuladas (mas sem função?) na “norma lusitana”? Quem disse que “a existência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, a lusitana e a brasileira, tem sido considerada como largamente prejudicial para a unidade intercontinental do português e para o seu prestígio no Mundo”? Considerada por quem?
Enfim, isto seria um nunca mais acabar, fiquemo-nos pelo essencial, não discutamos tolices.
É tempo de o “cidadão comum” tomar em mãos aquilo que lhe pertence: o destino da Língua que usa todos os dias.
Ao arrepio de todos quantos discursam sobre o “valor económico da Língua” mas nada fazem para preservar esse valor, cabe-nos a nós garantir que o Português Europeu continuará a ser um traço de união e de identidade entre gerações de portugueses (e africanos) que o usam de forma estável e jamais posta em causa desde pelo menos 1911.
A Língua não deve evoluir por decreto e não tem de evoluir por decreto. Ninguém acha, certamente, que franceses e ingleses se sentem embaraçados quando escrevem farmácia com “ph” e olham com inveja para a “evolução” da nossa Língua. A Pharmácia só nos faz sorrir, hoje em dia, porque nos foi sonegada há já mais de cem anos pelos “especialistas” e pelos políticos da época. Está na nossa mão impedir que este património linguístico continue a ser desbaratado para servir sabe-se lá que interesses muito obscuros de egos nada obscuros.
Quer ajudar a acabar com isso? Então basta ir AQUI e dizer: chega!
Rui Valente
(imagem de QQcitations)