«Para os meus amigos acordistas» (parte II) [RV, “Diário de Coimbra”, 12.02.14]

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Na semana passada, a pretexto de perguntas que geralmente me fazem, falámos de algumas das desvantagens do Acordo Ortográfico: perda de unidade estrutural da Língua, o caos ortográfico já instalado (e ainda vamos a meio do período de transição), a ruptura entre escritores e leitores de gerações diferentes. Apetece perguntar, trará o AO tamanha benesse que compense tais atropelos?

Alguns defensores do AO parecem perseguir ainda o sonho de um Português Universal. Diz-nos Maria Helena Rocha Pereira: “o erro foi a reforma de 1911 ter sido feita sem o Brasil. O que estamos a fazer agora é um remendo: é a aproximação possível”. Ora, passados mais de cem anos, reparar o cisma de 1911 não só é impossível como não faz sentido. Porque não só esse cisma permanece, como se criam outros, a começar pelo já referido corte entre gerações. Porque hão-de os nossos netos ler este texto com a mesma estranheza com que lemos Gil Vicente pela primeira vez? Mas veja-se também o corte entre países que seguem o AO (Portugal…) e os que não seguem; o corte entre quem pode ignorá-lo e quem é obrigado a segui-lo; o corte entre quem o segue e quem o segue… em versão “à la carte”. Longe de unificar, o AO90 apenas cria mais uma norma.

Dizem os defensores do AO que o objectivo não é “unificar” mas sim “normatizar”. Mas… como, se se elege a pronúncia como norma e esta difere de país para país e mesmo dentro de cada país? Quem se arroga o direito de declarar que há consoantes mudas em palavras como “Egipto, “excepto” ou “expectante”?

Não são por certo os opositores ao AO. Ao contrário do que dizem os meus amigos acordistas, quem está contra o AO limita-se a exigir que se deixe a Língua seguir o seu caminho.

Já Maria Helena Rocha Pereira, Malaca Casteleiro, Carlos Reis, Lindley Cintra e Aníbal Pinto de Castro comportaram-se, eles sim, como donos da Língua, do alto da sua omnisciência e em estranha convivência com a classe política da altura – por muito boas que tivessem sido as suas intenções.

Acordistas ou não, meus amigos, é tempo de dizer basta. É por demais evidente que, exceptuando os editores escolares e os “funcionários da Língua” que se passeiam em torno de siglas estranhas como IILP, VOLP ou ILTEC, a ninguém serve o Acordo Ortográfico.

Não faz sentido terraplanar diferenças entre pt-PT e pt-BR quando essas diferenças são uma riqueza e não um empecilho. É tempo de acabarmos com este absurdo, no preciso local onde o absurdo começou: a Assembleia da República.

Se os nossos deputados tardam na resolução pronta deste problema, cabe-nos a nós, simples cidadãos, indicar o caminho. Não posso deixar de saudar o Diário de Coimbra que, como outros órgãos de comunicação social, se mantém fiel ao português correcto. Mas permito-me destacar uma forma de luta eficaz, ao alcance de todos. Convido-vos a subscrever a Iniciativa Legislativa de Cidadãos pela revogação da entrada em vigor do Acordo Ortográfico (revogação da RAR 35/2008). Saiba como em cedilha.net/ilcao.

Faça-se ouvir.

Rui Valente

[Texto publicado no jornal “Diário de Coimbra” de 12.02.14. “Links” acrescentados nesta reprodução.]

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8 comentários

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    • Rocío on 13 Fevereiro, 2014 at 14:52
    • Responder

    Parabéns ao Rui pelo texto.
    Obrigada a ele e ao Diário de Coimbra.

    • María Oliveira on 13 Fevereiro, 2014 at 20:26
    • Responder

    Faço minhas as palavras de Rocío: parabéns, Rui, Valente Rui! (Permita-se-me a liberdade poética, que hoje quem luta contra o AO90 é de uma coragem e de uma verticalidade de carácter dignas de um D. Quijote de la Mancha, sendo a língua-mater a sua Doña Dulcinea de Toboso)!
    Adelante, puès, con esa lucha!

    • Elmiro Ferreira on 13 Fevereiro, 2014 at 23:29
    • Responder

    Deixe-me que o felicite, Rui Valente, pelo texto excelente! Felicitações também ao Diário de Coimbra e, já agora, ao Diário de Leiria que, entre outros jornais, se mantêm fiéis ao Português de lei, sem mutilações.

    • Maria José Abranches on 14 Fevereiro, 2014 at 17:09
    • Responder

    Tive a felicidade de ter sido aluna de Maria Helena Rocha Pereira a quem devo, para sempre, uma das traves mestras da minha construção pessoal: a revelação da cultura clássica, com particular destaque para o teatro grego! É com uma infinita tristeza que a vejo agora defender a “ortografia trapalhona” imposta pelo AO90: “Malhas que o império tece / Mesmo depois de perdido” (Sophia)!

    Não me é possível entender por que razão Portugal, que é suposto ser um país soberano, tem de passar a vida a auto-flagelar-se por ter feito a reforma ortográfica de 1911, “sem o Brasil”!
    Vejamos: a História está feita e escrita, não é possível escrevê-la de novo; o contexto histórico de então não pode ser “julgado” à luz do que sabemos hoje; por qualquer motivo inexplicável e ilógico, os defensores do AO90, ansiosos por “culpabilizar” Portugal, esquecem a reforma ortográfica da Academia Brasileira de Letras de 1907, amplamente documentada, mas que por cá teimam em ignorar; a língua que levámos para o Brasil, no séc. XVI, “evoluiu” lá de modo diferente daquele que ocorreu aqui, sendo as diferenças ortográficas o aspecto menos significativo; o facto de o Brasil ser hoje um país em franco desenvolvimento e com crescente importância no mundo não deveria ser justificação para pôr Portugal de joelhos, abdicando da sua língua, da sua História e da sua cultura, para “ganhar visibilidade”, à sombra do Brasil!… Digo isto com náuseas, único sentimento que um português legítimo pode experimentar nestas circunstâncias…
    A nossa História está cheia de traições da classe dominante aos interesses verdadeiros do país e dos portugueses: recorde-se, por exemplo, o período de 1580 a 1640 e ainda a época das invasões francesas, com a fuga da corte para o Brasil, em 1807, com o “indefectível e desinteressado” apoio da Inglaterra, e depois a proclamação da independência do Brasil, pelo próprio herdeiro da coroa portuguesa… Com uma vantagem, nem os brasileiros nem nós tivemos de suportar, na pele, uma guerra colonial infame e destruidora!…

    • Luís Ferreira on 16 Fevereiro, 2014 at 19:30
    • Responder

    Desde que li este post que me interrogo sobre algo que nunca vi fazer-se em Portugal. Passo a explicar.

    Há, claramente, jornais que são contra o AO. Se os há, porque é que esses jornais, quer sejam locais, quer sejam nacionais, não fazem o que deve ser feito e não dão a cara por um movimento contra o AO, fazendo uma campanha clara, incitando os seus leitores a apoiar massivamente todas as iniciativas contrárias ao AO e a reagirem de todas as formas, esclarecendo-os sobre as consequências para a Língua Portuguesa, desta deriva ortográfica. Eles mesmo, não através de artigos esporádicos, no seu interior, mas escrevendo na primeira página, para não deixar dúvidas: ESTE JORNAL OPÕE-SE AO ACORDO ORTOGRÁFICO E DESAFIAMOS TODOS OS PORTUGUESES A SEREM-NO. E continuar, durante umas semanas, em forte campanha, até que os meios de comunicação acordistas reajam e se dê início à grande discussão que é necessária e desejável para nós, porque o outro lado não tem argumentos.

    Até agora a luta tem sido feita por cidadãos, isoladamente ou organizados em pequenos grupos, mas sem capacidade de fazer perceber aos restantes que se trata de uma questão nacional. O que impede os directores dos jornais combinarem entre si uma acção concertada? O que falta fazer? Uns telefonemas, uns e-mails entre eles? Será só? Se todos os jornais que são contrários ao acordo, uma certa manhã aparecerem com a primeira página igual. Qual seria o impacto nos restantes meios de comunicação social. O que pareceriam os outros aos olhos dos portugueses mais distraídos? Traidores? Vendidos?

    Será uma violação de ética? Não me parece. Até porque, noutros tempos, os jornais já deram as mãos a causas que acreditavam como boas. Esta causa não será boa?

    1. Bravo, Luís! É uma excelente ideia, de facto. Que muitos outros sigam o seu exemplo!

    • Rui Valente on 18 Fevereiro, 2014 at 0:42
    • Responder

    Luís Ferreira, tem toda a razão. Os jornais não-acordistas continuam a aguardar que o problema se resolva sozinho… ou, pelo menos, que “alguém” o resolva. No Diário de Coimbra já me disseram que não têm problemas em intervir quando a causa lhes parece justa. Fizeram-no no caso da co-incineração — apoiaram um movimento de recolha de assinaturas e entregaram-nas na AR. Infelizmente, no que ao AO diz respeito, optaram por não ser parte activa no processo. Mas talvez o seu e-mail possa chamá-los à razão, E se mais seguirem o seu exemplo, melhor ainda.

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