«A inutilidade do acordo» [Isabel C. Monteiro, GT AO90]

tshirt-300x258Congratulando-me pela constituição do Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, não quis deixar de dar o meu modesto contributo quanto à questão em apreço, esperando que este e todos os demais contributos endereçados a este Grupo de Trabalho não venham a ser ignorados, como tem vindo a acontecer.

De facto, o Estado Português ignorou (desde 1986!) TODOS os pareceres negativos das instituições qualificadas e autoritárias na matéria, além das opiniões de inúmeros cidadãos que recusaram ver alterada por decreto a sua língua materna. Tudo isso foi simplesmente ignorado, mas o Estado Português não se furtou a assinar um acordo, em cujo preâmbulo se afirma, sem escrúpulos: «(…) Considerando que o texto do Acordo que ora se aprova resulta de um aprofundado debate nos países signatários: (…)»

Assim, passo a expor em breves linhas, e de acordo com a estrutura recomendada no Anexo fornecido na página relevante do sítio deste Grupo de Trabalho na Internet, aquilo que me parece ser nefasto não apenas na aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), mas também na própria existência deste ou qualquer outro acordo ortográfico da língua portuguesa.

Se não foram bem sucedidas as duas anteriores tentativas de uniformização da língua portuguesa nos países de expressão oficial portuguesa – a Reforma Ortográfica de 1911, a que o Brasil aderiu em 1915 (sem propostas de alteração) para logo revogar em 1919, e a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 (ou Acordo Ortográfico de 1945), assinada em Lisboa a 6 de Outubro pela Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras e revogada no Brasil DEZ anos mais tarde (1955) – por que razão alcançaria o Acordo Ortográfico de 1990 um êxito que os dois documentos anteriores não lograram colher, apesar das muitas incongruências de que padece? Como diz o AO90 na sua Nota Explicativa (Anexo II), o Acordo de 1945 «…propunha uma unificação ortográfica absoluta que rondava os 100% do vocabulário geral da língua.»

Para quê, então, um novo acordo? A mesma Nota Explicativa aponta as consoantes “mudas” como obstáculo à aceitação do AO45 pelo Brasil. Ora, se foi o Brasil que se afastou, em 1919, teimando em não aceitar as ditas consoantes, porque deve Portugal agora alterar a sua ortografia? Anda o Estado Português a reboque dos caprichos do Brasil? Sem sequer ter em conta as diferenças de pronúncia entre os dois países? E porquê?

No preâmbulo do texto do AO90, anexo à Resolução da Assembleia da República n.º 26/91, lê-se: «Considerando que o projecto de texto de ortografia unificada de língua portuguesa aprovado em Lisboa, em 12 de Outubro de 1990, pela Academia (…), constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional; (…)»

Daqui se depreende que o principal objectivo do AO90 seria, uma vez mais, a unificação da língua portuguesa, tendo em vista o seu prestígio internacional. Ora, a língua portuguesa goza actualmente do estatuto de língua oficial da União Europeia, sem que para isso tivesse concorrido o seu “abrasileiramento” imposto pelo AO90. No que interessa a Portugal, a língua aqui nascida, cultivada e enriquecida não dependeu de nenhuma influência alheia para ser reconhecida na mais internacional organização da Europa. A literatura portuguesa regista séculos de uma cultura ancestral, coroada em 1998 com o Prémio Nobel pela obra de Saramago.

Sobre as vantagens da aplicação do AO90, nada me ocorre que possa ser apontado como uma vantagem. Muito pelo contrário!

Os defensores e seguidores do AO90 têm vindo frequentemente a público proclamar que só o acordo permitiria a internacionalização da língua portuguesa, mas sempre sem explicar por que artes seria operado tal milagre. É certo que houve alusões à entrada do Brasil para membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a “consequente” adopção do português como língua oficial. Contudo, não estando próxima (mesmo remotamente) tal entrada, como pode ser apresentada a “uniformização” (impossível…) do português via AO90 como argumento plausível da elevação da língua portuguesa ao plano internacional?

Os inconvenientes resultantes da aplicação do AO90 estão à vista de todos. Nos jornais, nas revistas, nas estações de televisão, em muitíssimos sítios de instituições oficiais na Internet, etc., proliferam os erros de aplicação do acordo, revelando a ignorância de quem se propôs aplicá-lo, sem se ter dado ao trabalho de o estudar. Assim, é frequente ver-se “fato” em vez de “facto”, “impato” em vez de “impacto” e outras provas da negligência a que foi votado o texto do AO90 pelos seus próprios seguidores.

Quanto à almejada unificação, além das “facultatividades” previstas no texto do próprio acordo, os resultados da aplicação da Base IV – Das sequências consonânticas bastam para demonstrar que, em vez de unificar, o AO90 veio aumentar as divergências já existentes entre as duas normas linguísticas até agora reconhecidas (a portuguesa e a brasileira), como transparece nos poucos exemplos que se seguem:

Pré-AO90 Pós-AO90
Portugal | Brasil Portugal | Brasil
Acepção | Acepção Aceção | Acepção
Concepção | Concepção Conceção | Concepção
Conector | Conector Conetor | Conector
Excepcional | Excepcional Excecional | Excepcional
Expectorar | Expectorar Expetorar | Expectorar
Infecção | Infecção Infeção | Infecção
Intercepção | Intercepção Interceção | Intercepção
Perceptível | Perceptível Percetível | Perceptível
Recepção | Recepção Receção | Recepção

A Base III – Da homofonia de certos grafemas consonânticos reflecte a preocupação de diferenciar os grafemas “x” e “ch”, preocupação essa que se perdeu na redacção da Base IV, cuja aplicação torna homófonas palavras que, antes, não suscitavam nenhuma confusão. Assim, se antes da aplicação do AO90, por exemplo, o substantivo “concepção” era de imediato associado ao verbo “conceber”, após a sua aplicação são legítimas todas as dúvidas quando alguém profere as palavras “conceção” ou “concessão” (de “conceber” ou de “conceder”?). Há quem defenda que o AO90 se aplica apenas à ortografia. Não é verdade! No exemplo em apreciação, a omissão do “p” fecha inevitavelmente o “e” que o precede. Quer isto dizer que as tais consoantes chamadas “mudas” têm uma função fonética importante, que foi totalmente ignorada, assim como a sua função etimológica.

Na Base II – Do h inicial e final, a etimologia é tratada como um aspecto da língua a considerar, no nº. 1º. alínea a), mas proverbialmente ignorado na Base IV, para legitimar a omissão das ditas consoantes “mudas”. Isto não é sério!

Na Base IX – Da acentuação gráfica das palavras paroxítonas, lê-se no nº. 9º.: «(…) deixam de se distinguir pelo acento gráfico: para (á), flexão de parar, e para, preposição; (…)»

Curiosamente, o nº. 5º. alínea c) da mesma Base IX, já manifesta preocupação em distinguir as formas verbais “têm” e vêm”, terceira pessoa do plural do Presente do Indicativo das formas dos mesmos verbos na terceira pessoa do singular, “tem” e “vem”, preocupação essa também patente na Base VIII – Da acentuação gráfica das palavras oxítonas, nº. 3º., que reza assim: «Prescinde-se de acento gráfico para distinguir palavras oxítonas homógrafas, (…). Excetua-se a forma verbal pôr, para a distinguir da preposição por.»

Que critério determinou esta preocupação em acautelar eventuais confusões de uma forma verbal com uma preposição no caso de “pôr/por”, mas não no caso de “pára/para”? Tanto num como no outro, a confusão é indesejável e dá origem a interpretações totalmente diferentes das pretendidas. “Ah, o contexto ajuda a distinguir”, dirão alguns. É verdade, mas tanto num caso como no outro!

Perante tudo o que atrás fica exposto e por tudo o que tem vindo a ser publicado – além dos pareceres negativos de instituições autoritárias na matéria, que foram simplesmente ignorados – a única proposta que se me oferece fazer é que seja definitivamente revogado o Acordo Ortográfico de 1990, por ser desnecessário, atentar contra o património cultural e linguístico de Portugal, em suma, por ser inútil.

Isabel Coutinho Monteiro
Tradutora Certificada pela Associação Americana de Tradutores
isabel.monteiro@net.vodafone.pt

[Transcrição integral de texto da autoria de Isabel Coutinho Monteiro na página de “contributos” do Grupo de Trabalho parlamentar sobre o AO90.]

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3 comentários

    • Eduardo Guerra on 22 Fevereiro, 2013 at 23:41
    • Responder

    Concordo plenamente com a sua excelente exposição. Gostaria, apenas, acrescentar à conclusão de que, não só é inútil, como grandemente lesivo.

    • José on 23 Fevereiro, 2013 at 12:22
    • Responder

    Muito bem! Mais uma voz denunciando a inutilidade – e completa imbecilidade – do AO90. Mais um dedo que se junta a milhares de outros dedos, apontando para a ridícula situação do rei ‘que vai nú’… Mas o rei, secundado pelos aduladores do costume, segue o seu caminho, arrogante e alheio a tudo isto. Até quando?

    • Hugo X. Paiva on 23 Fevereiro, 2013 at 23:06
    • Responder

    Bom trabalho, Isabel Monteiro.
    Mais uma vez, ficou demostrada a insana imbecilidade desta trapalhada.

    José: mais grave do que um rei que vai nú, é, um traje que vai sem rei, o que me parece ser o caso.

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