O Vocabulário da Diferença


Se a riqueza da Língua Portuguesa reside, em grande medida, nas diferenças entre as suas variantes, então o Acordo Ortográfico é, de facto, um ataque cerrado a essa diferença, uma tentativa fútil para unificar o que não pode nem deve ser unificado.

O chamado “Vocabulário de Mudança” — uma compilação, feita pelo ILTEC, de palavras que mudam com o Acordo Ortográfico — tem sido uma das armas dessa sanha terraplanadora, uma ode ao trabalho inglório, uma tabela onde os mentores do AO “mostram serviço”, sem perceberem que o que estão a exibir é, afinal, o grau de destruição de uma dessas variantes — o Português Europeu.

Este “Vocabulário de Mudança” presta-se a vários absurdos. O primeiro, e mais evidente, é ser ele mesmo uma prova da ineficácia do Acordo Ortográfico, pois viu-se obrigado a incluir palavras que se tornam diferentes por força do próprio AO, como “recepção” ou “acepção”. Por outro lado, o “Vocabulário de Mudança” consegue demonstrar, também, que tudo o que muda é Português Europeu, nada muda no Português do Brasil.

Mas a maior “virtude” do “Vocabulário de Mudança” talvez seja mesmo a exibição da sua insignificância.

Se compararmos o “Vocabulário da Mudança” com um hipotético “Vocabulário da Diferença” — a lista de todas as palavras que eram diferentes e continuarão a ser diferentes — percebemos que a unificação é uma gota de água num oceano de diversidade.

Em quase todos os ramos do conhecimento humano, os vocabulários do Brasil e do resto do mundo lusófono não acertam uma: da informática à culinária, da indústria à agricultura, do desporto às ciências sociais os termos diferentes multiplicam-se. São milhares e milhares de palavras diferentes. E, note-se, isto é uma coisa boa: conhecer todas essas palavras é enriquecedor.

É, portanto, descabida (para não dizer estúpida) qualquer tentativa de acordo: ou bem que se equaliza tudo — e isso seria um atentado à Língua ainda maior do que o AO — ou não se muda nada, porque mudar só algumas coisas fura qualquer objectivo de unificação da ortografia.

O AO apaga meia dúzia de diferenças, cria outras novas (porventura em maior número) e deixa a maior parte como estava — é, portanto, um transtorno inútil, um capricho infantil, um aborrecimento, uma irritação, um disparate.

Mas o que seria, exactamente, um “Vocabulário da Diferença”? Seria, muito simplesmente, a compilação de todas as palavras que eram e continuarão a ser diferentes (como “registo” em pt-PT e “registro” em pt-BR), acrescido de todas as palavras que são comuns às duas variantes mas de uso preferencial distinto; como “sumo” em pt-PT e “suco” em pt-BR — ambas existem nas duas variantes mas o Brasil prefere um suco de laranja enquanto os restantes países lusófonos optarão, em primeiro lugar, por um sumo de laranja.

O “Vocabulário da Diferença” é, pois, a lista de tudo o que deve ser acarinhado e preservado na Língua Portuguesa. Justifica, juntamente com a sintaxe, a existência de duas variantes linguísticas e é, simultaneamente, aquilo que melhor nos identifica enquanto povos que usam variantes da mesma Língua.

Não é possível escrevermos mais de dois parágrafos (com ou sem AO) sem denunciarmos a variante em que estamos a escrever. A resposta à pergunta “quem escreveu?” está no “Vocabulário da Diferença”.

O “Vocabulário da Diferença” é uma fonte inesgotável de informação sobre a nossa Língua — permite-nos aprender imenso sobre a viagem das palavras ou recordar termos que já não usamos entre nós mas que continuam a ser de uso corrente no outro lado do Atlântico. Ou reconhecer as palavras que, tendo o mesmo significante (isto é, escrevendo-se da mesma forma), têm significados diferentes ou até opostos nas duas variantes.

Será, também, uma ferramenta preciosa para todos quantos pretendem estudar Português como segunda Língua.

Infelizmente, este “Vocabulário da Diferença” ainda não existe. E não só não existe como “a diferença” tem sido tratada de forma displicente, como se de uma curiosidade linguística se tratasse. Num verdadeiro Museu da Língua Portuguesa esta questão podia e devia ser nuclear. Em São Paulo (antes do incêndio, pelo menos), é remetida para o lote do pitoresco: num pequeno quadro de meio metro quadrado, diz-se ao visitante que, em Portugal, um café é uma bica e “perder a paciência” é “passar dos carretos”.

A Wikipedia não faz muito melhor: limita-se a dar alguns exemplos, ordenados por temas, das diferenças entre Português Europeu e Português do Brasil. Não chega a centena e meia, num universo que se adivinha muito mais vasto.

Tem portanto o ILTEC muito para fazer, se quiser empregar o seu tempo de forma útil. Já tem um bom ponto de partida, que é o próprio “Vocabulário de Mudança”. Nesse vocabulário assinalam-se já todas as duplas grafias que passam a ser admitidas e que, na prática, significam que Portugal vai continuar a escrever “económico” enquanto o Brasil escreve “econômico”.

Quando estiver pronto, o “Vocabulário da Diferença” será um monumento, uma ode à grandeza e à plasticidade de uma Língua que soube crescer e expandir-se sem perder de vista as suas raízes. Será, também, um documento imprescindível para qualquer professor ou leitor de Português numa universidade estrangeira.

É claro que podemos chegar a um ponto em que o Brasil deixará de chamar “Português” à sua Língua. O “Vocabulário da Diferença” passará a ter um nome mais prosaico: Dicionário Português-Brasileiro. Mas a sua utilidade tornar-se-á então ainda mais evidente.

Em qualquer dos casos, viva a diferença!

Entretanto, compete-nos garantir que o nosso vocabulário continuará a ser mesmo NOSSO. O “Vocabulário da Diferença” merece que Portugal participe com as suas palavras e não uma colecção de termos inventados que nos querem impor: subscreva a ILC contra o Acordo Ortográfico!

Imagem (créditos): By Daniel Mello/Agência Brasil [CC BY 3.0 br], via Wikimedia Commons

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