O AO90 e os direitos de autor na Universidade

borlaecapeloNós sabemos que a política do “facto consumado” é uma manobra consumada e não um facto. Nós sabemos que o “acordo ortográfico”, que de acordo nada tem e de ortográfico muito menos, não passa de uma manobra política. Nós sabemos que o “apparatchik” político-partidário, através da gigantesca máquina burocrática estatal, não olha a meios para atingir os (seus) fins.

Pois é. Nós sabemos de tudo isto mas, pelos vistos, não sabemos – ou não sabíamos – que há ainda muitas pessoas, em especial nos meios académicos, que são sujeitas a pressões abusivas, que são ilegitimamente coagidas a utilizar o AO90. Ora, na verdade, quem produz obra intelectual pode e deve  contestar, protestar, exigir os seus direitos autorais; nada obsta a que os autores (em meio académico ou não) se “atrevam” a opor-se à máquina trituradora do Estado “ortográfico”. Qualquer tipo de pressão, neste âmbito, é não só abusivo como ilegal e pode por isso mesmo ser revertido: existem leis e mecanismos que ainda nos protegem de abusos e prepotências. E o que é o “acordo ortográfico” senão uma prepotência, um abuso intolerável, uma verdadeira agressão intelectual, um ataque à nossa inteligência?

O “diálogo” que se segue é esclarecedor quanto a isto, sob diversos aspectos, e demonstra bem que o AO90 não passa afinal de um “tigre de papel”.

Esta “conversa”, com Ivone Neiva Santos, começou na página da ILC-AO no Facebook, a propósito do “post” aqui publicado sob o título “FLUP FLOP”, e continuou depois via email. Trata-se de um aproveitamento quase integral da troca de mensagens, tendo-se apenas eliminado os conteúdos mais acessórios ou pessoais (cumprimentos, etc.) ; é uma simples operação de “copia e cola” em forma de pergunta e resposta.

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FLUP FLOP

A Faculdade de Letras da Universidade do Porto exige o AO90 nas teses e dissertações…

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Comentário de um aluno da FEUP no Facebook – Na feup também me obrigaram a transcrever a dissertação para o aborto ortográfico… E o conversor deu-me cabo da configuração de uns gráficos!

Comentário de ILCAO no Facebook – Se quiser expor a situação… ilcao@cedilha.net

Comentário de Ivone Neiva Santos no Facebook – É verdade, tive essa experiência na FLUP . E as citações redigidas na forma como foram escritas originalmente, como tem mesmo que ser, o que resulta numa bela anarquia ortográfica.

JPG – De novo: todos os casos deste género devem ser expostos, divulgados, denunciados (no sentido saudável do termo). Ainda para mais tratando-se de ex-mestrandos ou ex-doutorandos, pessoas que já não podem ser perseguidas ou de alguma forma prejudicadas. Um simples email com os documentos basta…

INS – Mas denunciar com que objectivo? A partir do momento em que a Administração Pública instituiu a adopção do AO pelos seus organismos e dado que se trata de uma universidade pública, não é lícita esta obrigatoriedade? Pensei que sim, por isso não reclamei. Mas achei patético.

JPG – «A partir do momento em que a Administração Pública instituiu a adopção do AO pelos seus organismos e dado que se trata de uma universidade pública, não é lícita esta obrigatoriedade?»

Os direitos de autor sobrepõem-se a quaisquer outros, no que à obra diz respeito. Uma tese é ou não uma obra de autor?

E em qualquer caso a licitude ou a ilicitude seja do que for pode ao menos ser aventada, argumentada, discutida, atirada “para cima da mesa”…

INS (por email) – Relativamente a este tópico, e ao texto publicado na vossa página da internet (https://ilcao.com/?p=17007), corrijo a informação aí transmitida, dado que pelo menos desde o ano lectivo 2012/2013 a obrigatoriedade de redacção das teses utilizando o AO estava já em vigor, cf. documento em anexo.

JPG – Com certeza. Quando investiguei o assunto abri todos os documentos disponíveis. No caso do que refere, optei por citar apenas o mais recente.

INS – Apresentei uma tese de mestrado na FLUP nesse ano lectivo, no âmbito de um pedido de convalidação, dado que tenho uma licenciatura pré-Bolonha. Estando afastada da universidade há já alguns anos, não estava familiarizada com os novos regulamentos internos e fiquei surpreendida com essa obrigatoriedade, mas não a contestei.

JPG – Pois. Uma das intenções subjacentes à disseminação selvagem (injustificada, a eito) do AO90 é precisamente instilar no espírito das pessoas uma ideia de “inevitabilidade” que as leve a não reagir, primeiro, e a que nem lhes ocorra sequer contestar ou pôr em causa o “acordo”, por fim. É a política do “facto consumado” em todo o seu “esplendor”. Política, notará. O AO90 não tem absolutamente nada nem de acordo nem (aliás, muito menos do que nada) de ortográfico. Ora, em política não se brinca, salvo seja. Lá dizia Gil Vicente, que era homem de visão aguda, “assim se fazem as cousas“: condicionar as massas é em política um princípio (e uma técnica) basilar. Orwell também compreendeu isso, uns séculos mais tarde.

INS – Nas minhas comunicações pessoais e até profissionais, sempre que possível, escrevo de acordo com aquilo a que chamam a “antiga ortografia” que para mim continua a ser a actual. Mas neste caso não me ocorreu que me pudesse opor, pois assumi que a universidade o poderia ou até teria que o fazer, a partir do momento em que a administração pública instituiu a obrigatoriedade de aplicação do AO nos seus documentos escritos.

JPG – A “antiga ortografia”. Ora aí tem um exemplo lapidar do tal condicionamento. A escolha do significante nunca é (em política, repito) casual ou arbitrária em relação ao significado. Basta “escutar” a sonoridade do adjectivo, “ouvir” ao que soa e ressoa ele (“que existiu OUTRORA”, “que não é moderno”, logo, que é “antiquado, velho, ultrapassado”) e pronto, aí está, não se usa a expressão “antiga ortografia” por mero acaso, a intenção é claramente depreciativa num sentido e altamente “elogiosa” no outro.

Se os direitos de autor abrangerem as teses e dissertações, então qualquer autor se poderá opor a que lhe estropiem os direitos pervertendo a forma (logo, de certa forma, o conteúdo) do seu trabalho.

A administração pública está de facto obrigada a cumprir directivas superiores; a RCM 8/2011 é de facto uma ordem por escrito. Mas um mestrando ou doutorando será, porventura, um funcionário da AP? Uma tese ou uma dissertação serão por acaso “documentos escritos” da AP?

INS – O meu filho, que tem agora 16 anos, foi vítima da introdução do AO a meio do ensino básico, e já agora da nova e absurda gramática, o que me revoltou bastante pois era evidente a confusão de todos, alunos e professores, e a dificuldade em compreender a razoabilidade das alterações. No que toca à gramática, as próprias alterações são de difícil compreensão, até para os professores de Português, queiram eles reconhecê-lo ou não. Não entendo os motivos e as vantagens da nova gramática que só veio complicar e afastar ainda mais os alunos do estudo da Língua Portuguesa.

JPG – Isso (a TLEBS) é outro assunto mas é também… o mesmo assunto: Novilíngua, condicionamento, política. Não há quaisquer motivos, parece-me, tanto para o AO90 como para a TLEBS, além dos que anteriormente enunciei, os quais, repito, não têm absolutamente nada a ver com ensino, pedagogia, aprendizagem, gramática ou ortografia. Os brasileiros (nem de propósito) têm um excelente aforismo para descrever o absurdo de situações semelhantes: “se não ’tá quebrado, não conserta”.

INS – Relativamente ao AO e à divulgação das situações individuais que incentivam, a minha dúvida é a seguinte: se é público que, há vários anos lectivos, as teses são obrigatoriamente apresentadas com base neste regulamento, qual a necessidade de o comprovar com situações individuais? E de que forma?

JPG – O que diz não é exacto. Depende da instituição académica, como já vimos. Nem todas, felizmente, se arrogam o direito de impor essa… arbitrariedade!

E não me parece, sequer, que seja assim tão “público” o conhecimento dessa situações. Não me recordo de ler (ou ver ou ouvir) fosse o que fosse sobre o caso antes de nós termos publicado aquele “post”.

Precisamente, como os casos são individuais, locais, se calhar até pontuais, convinha expo-los publicamente para que ao menos a questão primordial se coloque: as universidades podem impor o AO90 aos mestrandos e doutorandos? Sim ou não?

INS – Tem toda a razão e lamento agora a passividade com que na altura apesar de tudo aceitei tal obrigatoriedade. É claro que com desagrado e até algum horror por ver a minha tese redigida com uma ortografia que não é a minha. Incluindo o texto várias citações é até um pouco estranho encontrar a mesma palavra, no mesmo parágrafo, por exemplo, escrita de forma diferente (e para desgosto meu, errada a minha, correcta a da citação).

Também tem razão quanto ao diferente posicionamento das instituições académicas. Recordei entretanto que, pouco antes, em 2012, frequentei uma pós-graduação no IDET, instituto da Faculdade de Direito da UC e pude apresentar o meu relatório final com a ortografia “anterior ao AO”, indicando isso mesmo na introdução.

Estou disponível, embora confesse não perceber ainda muito bem de que forma, para expor o meu caso pessoal se isso puder contribuir de alguma forma para este combate.

JPG – Não estaria, porventura, na disposição de escrever um texto simplesmente relatando o seu caso quanto a este assunto em particular? Bastaria até, para o efeito, copiar e colar a maior parte – parágrafos inteiros – do que por esta via foi dizendo. Ou então, para não lhe dar ainda mais trabalho do que aquele que já teve com as suas sucessivas respostas, poderia eu mesmo compor um “post” com extractos desta nossa troca de correspondência.

O público em geral – e em especial a comunidade académica – permanece na mais cega (e inocente) ignorância daquilo que se está a passar quanto aos atropelos dos direitos de autor em trabalhos académicos e portanto, de forma ainda mais abrangente, ninguém ou quase ninguém faz a mais pequena ideia de que não há nesta matéria lugar a arrogâncias e prepotências por parte de serviços administrativos, sejam eles quais forem e não apenas nos estabelecimentos de ensino superior. Quantos investigadores, por exemplo, terão permitido – por pura ignorância, repito – que os seus trabalhos acabassem estropiados nos escaparates, nas bibliotecas, nos centros de documentação? E ainda, já fora dos meios académicos, quantos autores literários não terão “permitido”, por pura inércia, mesmo que contra as suas vontade e convicção, que os seus livros fossem editados e publicados depois de passados pela máquina trituradora, ou seja, escavacados pelo “Lince”?

INS – Escreveria com todo o gosto esse texto se me sentisse totalmente destituída de responsabilidade no caso, mas a verdade é que fui também cúmplice por não me ter oposto de uma forma clara. É claro que o discente está sempre numa posição frágil face à instituição, mas nem foi por isso, tinha à vontade com o director do curso e com o meu orientador para pelo menos aprofundar o assunto. Apenas o aceitei como facto consumado. E quanto mais leio as suas respostas mais envergonhada me sinto. Isto porque me considero opositora ao AO. Que bela opositora, sim senhora!

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[Transcrição autorizada por Ivone Neiva Santos. “Links” e destaques adicionados.]

[Imagem do “blog” Virtual Memories.]

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