«O AO90 está em vigor? Onde?» [P.J.A., “Público”]

O 18.º Governo entendeu, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25/1 (RCM), pôr em vigor o acordo ortográfico de 1990 (AO90), tornando obrigatória a sua aplicação “em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação”, lê-se no preâmbulo.

Ora, para que se perceba, de modo sumário (portanto, redutor), o que está em causa, convém examinar o texto dessa RCM.

Lê-se, ainda no preâmbulo, que o AO90, “assinado em Lisboa em 1990, (…) incide apenas sobre a ortografia, mantendo-se a pronúncia e o uso das palavras inalteráveis” e, mais à frente, “Esta resolução adopta, ainda, o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico, e o conversor Lince (…) ambos desenvolvidos pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) com financiamento público do Fundo da Língua Portuguesa”.

No n.º 1 surge a determinação curiosa de que as entidades visadas (“o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo”) “aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto”, o que pressupõe que essa grafia é conhecida e pode ser consultada e utilizada. E, de curiosidade em curiosidade, chegamos ao n.º 6 da RCM, onde se lê que o Governo resolve “adoptar o Vocabulário Ortográfico do Português e o conversor ortográfico Lince, disponíveis no sítio da Internet www.portaldalinguaportuguesa.org e nos respectivos sítios da Internet dos departamentos governamentais”.

Conclui-se, então, que a aplicação do AO90 consiste na adopção de qualquer coisa que não o próprio acordo, e que se designa por “Vocabulário Ortográfico do Português” e “conversor ortográfico Lince”.

O mistério adensa-se. Buscando a verdade oculta, percebe-se que tais designações são de trabalhos elaborados por empreitada, por umas pessoas (certamente, financiadas) a quem o Governo alienou a incumbência da criação de uma suposta norma! O Estado “legisla” por encomenda!

Portanto, à pergunta “o que é que diz o Acordo Ortográfico?”, o Estado responde, com secular sabedoria, “não faço a mínima ideia, mas vou ali perguntar a umas pessoas que eu conheço e já venho”.

Para quem não esteja a perceber nada, por não ter lido o AO90, esclareço. O texto publicado no Diário da República de 23-8-1991 não contém, realmente, a nova grafia das palavras. O que se lê, num Anexo, é apenas um conjunto de regras gerais (muito mal feitas), para serem mais tarde concretizadas (artigo 2.º do AO90) através do estabelecimento de um vocabulário ortográfico comum a todos os países signatários (ou seja, por via de outro acordo, específico), que nunca foi feito.

Isto significa que o AO90 ficou (nos seus próprios termos) inaplicável, suspenso de facto futuro. Não sou eu quem o diz. É o texto do AO90 que é explícito.

E, no meio do absurdo, tem lógica que assim seja, pois ninguém sabe ao certo explicar o que significa escreve-se quando se pronuncia”, porque isso retira o “h” ao verbo “haver”, por exemplo, e deixa a dúvida acerca do “p” em “excepto”, porque o João não diz o “p”, mas a Maria diz o “p”. Se o Estado se comprometera, com os demais signatários, a elaborar o vocabulário comum, não poderia entregar a mãos incertas aquilo que nem sequer é seu: a Língua Portuguesa.

Postos à solta, os legisladores por contrato andaram a inventar. Já que estavam “com a mão na massa”, moldaram (com os pés?) o próprio acordo (que não lhes pareceu suficientemente mau…), cortando consoantes a granel, como se não houvesse amanhã!

O acordo, na Base IV, prevê duplas grafias?! Nada disso! O acordo prevê, mas eles não deixam! Com a legitimidade democrática do recibo verde e a sensibilidade linguística da retroescavadora, esta troika oculta reinventou a Língua, segundo o insondável critério do “acho que fica melhor assim”. No entusiasmo, aproveitou o facto de o AO90 ser aberto e impreciso e, milhares de euros mais tarde, eis que pariu esta malformação inviável, a que chamam VOP e LINCE. E é como estamos. Porém, num Estado de Direito, de onde a certeza e a segurança não devem ausentar-se, as coisas não são assim.

Por isso, sem norma técnica com valor jurídico que as defina, as regras gerais do AO90 não vigoram.

Como se entende, pois, esta desenfreada imposição do disparate? É simples. A maioria das pessoas não leu o texto do acordo. Diz-se que aquilo é obrigatório. Os impostos pagam as acções de (de)formação nos serviços públicos e nas empresas. Começa a usar-se o barbarismo de modo generalizado. E pronto! A mentira torna-se verdade e não se fala mais nisso.

Mas, “há sempre alguém que resiste”. Por isso, se as iniciativas em curso prosseguirem, designadamente a Iniciativa Legislativa de Cidadãos que visa suspender a asneira (v. https://ilcao.com/), bem como as políticas e judiciais, além da legítima desobediência civil, ainda veremos os de sempre, já virados do avesso de modo politicamente correcto, berrando nos púlpitos “não fui eu! eles obrigaram-me! eu estive sempre do lado certo!”.

Pena o imortal Eça de Queiroz não estar cá para escrever o 2.º tomo de O Conde d’Abranhos!

(Este texto sintetiza, com as adaptações ao registo escrito, o essencial da intervenção do autor no Goethe Institut, em 9/1/2012)

Paulo Jorge Assunção, docente e investigador

[Transcrição integral de texto de opinião, da autoria de Paulo Jorge Assunção, no “Público” de hoje, 27.02.12. Link não disponível.]

Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.

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  1. Ora aqui está mais um bom artigo. Algo complexo, como os melhores, mas muito bom. Claro que nenhum acordita o entenderá. É gente «humilde», que «confia» no que lhe sopram.
    Cumpts.

    • Maria José Abranches on 27 Fevereiro, 2012 at 18:31
    • Responder

    Excelente texto! Foi portanto decisiva a referida Resolução do Conselho de Ministros do anterior governo (que ocorreu a 9 de Dezembro de 2010)! Aliás vale a pena ler esse belo pedaço de prosa, que começa assim: «A língua portuguesa é um elemento essencial do património cultural português.» No parágrafo seguinte concretiza-se esta ideia: «Ao Governo compete criar instrumentos e adoptar medidas que assegurem a unidade da língua portuguesa e a sua universalização, nomeadamente através do [A.O.L.P.] e da promoção da sua aplicação.» Daí a “missão” do ILTEC que agora nos propõe:«O Portal da Língua Portuguesa contém os dois recursos oficiais para a aplicação do AO em Portugal, como determinado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de janeiro: o Vocabulário Ortográfico do Português e o conversor Lince.» (Com aplicação do AO, já se vê). Mudámos de governo, estamos em crise aguda, mas estas decisões permanecem inalteradas!… E o autismo do poder instalado continua!

  2. É curioso como retive opinião semelhante quando li essa delirante peça chamada Resolução do CM n.º 8/2011, com que o actual estudante parisiense nos brindou perto da sua saída governativa.
    Temos de alargar a cadeia de contestação a este nocivo Acordo. Na minha particular tribuna tenho procurado contribuir para esse patriótico movimento.
    Um abraço a todos.
    António Viriato (Presente no FB e em http://alma_lusiada.blogspot.com)

  3. Aqui no Brasil há o Movimento Acordar Melhor liderado pelo prof. Ernani Pimentel. Numa audiência pública realizada na Comissão de Educação Cultura e Esportes do Senado Federal,no dia 4 de novembro de 2009, o Acordo Ortográfico foi debatido. O referido professor expôs as incoerências, contradições e fuga do objetivo na aplicação do Acordo. Depois, o Presidente de Honra da Academia Brasileira de Filologia, Leodegario Amarantes de Azevedo Filho chamou a atenção sobre o descontentamento dos portugueses em relação à imposição feita pela ABL, não só a Portugal, mas, também ao Brasil.
    O escritor Walter Esteves Garcia, representante da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação lembrou que os escritores portuhgueses se mostravam indignados com o (des)acordo ortográfico.

    Finalmente, em 4 de abril de 2012, mais uma vez, o Movimento Acordar Melhor faz uma audiência pública na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal para debaer sobre o Acordo. dessa vez, além do Prof. Ernani Pimentel, o Prof. Pasquale Cipro Neto apontaram a ilegalidade do Acordo bem como a sua falta de lógica.

    Ainda não ouvem o povo. É isso o que ocorre no Brasil. Nem ao menos os especialistas são consultados.

  4. Caro Helenilson, por cá passa-se exactamente o mesmo. Os especialistas foram completamente ignorados. O AO90 é inútil e absurdo, mas continuam a querer impô-lo contra a vontade da esmagadora maioria das pessoas.

    Onde estão os argumentos que realmente justifiquem o AO? A resposta é simples: não os há. Nem aí, nem aqui, nem em lado nenhum. Há apenas cabeças duras que se recusam a admitir o disparate em que consiste o AO. Nunca houve qualquer dificuldade em nos entendermos por causa da ortografia, para quê inventar e forçar esta inutilidade que nem sequer “resolve” coisa nenhuma?

    Ainda bem que o Brasil não desiste de chamar os governantes à razão. Por cá continuaremos a fazer o mesmo.

  5. No final de agosto de 2012, a senadora Ana Amélia do PP-RS apresentou uma proposta para que o prazo final da transição da Nova Ortografia não se dê no dia 31 de dezembro de 2012, como está previsto no Decreto nº 6.583 de 29 de setembro de 2008. Ela peque esse prazo seja até o final de 2019, tempo suficiente para que os especialistas sejam consultados e que seja feita uma revisão do texto oficial do Acordo Ortográfico, não só pelos especialistas brasileiros, como também pelos especialistas dos países lusófonos. Incluindo a Galiza.

    • Bento (Galiza) on 7 Setembro, 2012 at 0:29
    • Responder

    Caro Sr. Helenilson:
    Obrigado por lembrar essa condiçao que tem Galiza, a de partilhar a nossa língua comum. Mesmo partilha a honra de ser, em parte, o seu berço. Condiçao e honra amiúde desconhecidos quando nao ignorados para o resto dos países lusófonos.
    Também é bom saber que no Brasil há quem conserve o bom senso sobre este infeliz Acordo que tanto contribuiu para a deturpaçao e desorientaçao a propósito das nossas raízes lingüísticas e culturais.
    Desejaria que vinhesse a haver na Galiza uma aristocracia, dando a esta palavra tao deturpada o seu valor etimológico; uma aristocracia que amasse a sua (nossa) Língua e que a respeitasse, bem como às diferentes variedades que ela adopta. E que trabalhasse para oferecer uma normativa galega que permitisse a verdadeira inserçao de Galiza e do galego no nosso espaço comum. Inserir, mas nao dissolver, que é o que fam aqueles que por estes lares tenhem adoptado mimetica e acriticamente esta infeliz ocorrência que empobrece, uniformiza, descaracteriza e afasta a nossa variante lingüística das suas origens e do resto das línguas cuja matriz é o Latim.

  6. Finalmente saiu o Decreto nº 7.875, de 27 de dezembro de 2012, alterando a data da implementação do Acordo Ortográfico para 1º de janeiro de 2016.
    A ideia dos expositores da audiência pública na Comissão de Educação e Esporte do Senado Federal era para que fosse corrigido o texto oficial do Acordo (o que exigiria a participação dos especialistas dos demais países lusófonos), mas os membros da Academia Brasileira de Letras acham que isso só faz que retarde ainda mais a entrada em vigor do Acordo. Eles nem ouvem os especialistas nem acham que a Academia Brasileira de Filologia deveriam tomar parte na elaboração.
    Espero que aprendam com os portugueses que não há como dizer que as novas regras simplificam a escrita. Basta lembrar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2009); o Vocabulário Ortográfico Português, do ILTEC (2011); e o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, da ACL (2012), já são uma prova da confusão trazida pelo Acordo Ortográfico.

  7. O adiamento da entrada definitiva em vigor do Acordo Ortográfico, no Brasil, não parece seguir o rumo que desejávamos. Evanildo Bechara lamentou que houvesse o adiamento, e que apesar disso, em 1º de janeiro de 2016 a antiga ortografia não valerá mais. Todos os professores e gramáticos já ensinam a nova ortografia por se tratar de uma lei, mas todos fazem sérias críticas.

    Há muita incoerência mas os especialistas anda não foram consultados. Ainda perguntamos; por que ainda nao consultaram a Academias Brasileira de Filologia?

  1. […] com profundidade e legitimidade jurídica – à questão é recomendável ler este artigo de Paulo Jorge Assunção, “O AO90 está em vigor? Onde?”, agora publicado no jornal Público. Recomendável pelo menos para nós, desacordistas, que somos, […]

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