Declaração do Pen Club International sobre o AO90 (16.09.12)

PEN Internacional – Comité de Tradução e Direitos Linguísticos

Declaração sobre a proposta de estandardização internacional da língua portuguesa

O Comité de Tradução e Direitos Linguísticos (CTDL) do PEN Internacional foi solicitado a comentar o Acordo entre os Estados de língua portuguesa empenhados num programa de estandardização ortográfica (Acordo Ortográfico de 1990/AO 1990). Esse pedido para examinar as alterações propostas foi iniciado pelo Centro português do PEN, cujos membros se opõem maioritariamente à estandardização internacional proposta. O encontro do CTDL em Barcelona (4-6 de Junho de 2012) expressou uma grande simpatia pela posição do PEN português e pediu que o Acordo internacional fosse examinado. Deve ser dito que muitos outros escritores, figuras públicas e linguistas questionam igualmente se as tentativas de aproximação de um Português estandardizado e universal serão uma boa ideia.

A história de tais tentativas no mundo lusófono apenas demonstrou quão difícil é tal questão. Em anexo com tentativas anteriores é adicionado no final do texto. Mais do que uma vez essas tentativas fracassaram.

Em comparação com a história recente de outras línguas internacionais, pode ver-se também que a ideia de estandardização além-fronteiras tem sido rejeitada mais vezes do que aceite.

Aparentemente, as duas forças condutoras por detrás do plano de estandardização do Português são de natureza administrativa e comercial. Se assim é, trata-se de fracos pontos de partida que podem prejudicar seriamente a língua portuguesa. Uma língua não é, primariamente, um instrumento administrativo ou comercial. Estes aspectos equivalem a actividades superficiais e utilitárias que requerem o que poderia chamar-se dialectos simplificados, tangenciais à língua viva. Uma língua viva favorece a criatividade, a imaginação, a iniciativa científica; ela adapta-se ao mundo real no qual vivem pessoas com as suas múltiplas diferenças e particularidades.

Tentar centrar uma língua em prioridades administrativas e/ou comerciais é enfraquecê-la ao atacar a sua complexidade e criatividade inata a fim de promover métodos burocráticos de natureza pública e privada.

No que diz respeito aos precedentes históricos, não é claro que essa iniciativa seja o resultado de uma reflexão clara sobre experiências ocorridas noutros lugares. Por exemplo, é amplamente aceite o facto de a tentativa centralizante, ao longo de vários séculos, para criar e manter um Francês universal, como foi levada a cabo em Paris, teve o efeito de alienar, a longo prazo, as populações em relação a essa língua sempre que era oferecida uma alternativa através de outras línguas mais abertas à criatividade local. Um resultado negativo prático foi um efeito de refrear a criação natural de vocabulário, seguido de uma retracção do vocabulário. A força motriz da língua francesa hoje em dia, com origem em todas as suas bases pelo mundo fora, é de tender para uma inclusão das diferenças na língua. O resultado é a possibilidade crescente de uma atmosfera nova e muito positiva em torno do Francês, por exemplo em África.

No que toca ao Inglês, houve tentativas equivalentes para uma aproximação universal no tempo do Império Britânico. Contudo, a força das regiões anglófonas (situação similar à do Português) levou a que tais regras tivessem sido quebradas tanto internacional como naturalmente. A força do Inglês actual é amplamente atribuída à sua abertura face às diferenças – a diferentes gramáticas, ortografias, palavras e, na realidade, significados. Uma das características mais positivas de qualquer língua internacional é o facto de palavras, ortografias, gramática, frases e sotaques assumem significados assaz diferentes como resultado de experiências locais ou regionais. Estas diferenças fazem frequentemente o seu caminho para além das fronteiras e são absorvidas por outras regiões anglófonas. É a natureza competitiva, independente e divergente das regiões inglesas que se tornou na marca distintiva da sua força – a sua criatividade quer na ciência, na literatura, no negócio ou, de facto, nas ideias. Existem tentativas constantes de ‘normalizar’ ou ‘centralizar’, tais como a norma estilística de Chicago. Contudo, tais tentativas, mais do que qualquer outra coisa, vão ao encontro das forças reais das línguas.

Exactamente o mesmo argumento poderia ser apontado para explicar a força crescente do espanhol como língua internacional. São precisamente as diferenças locais, nacionais e hemisféricas dentro da língua espanhola que lhe conferem uma força crescente. As diferenças nutrem-se mutuamente. A criação do Dicionário da Real Academia Espanhola, em cooperação com as Academias de língua espanhola em todo o mundo, tinha como objectivo incluir todas essas diferenças. Neste sentido, a tendência para uma celebração das diferenças dentro da língua espanhola foram paralelas à mesma abordagem, adoptada pelos maiores dicionários da língua inglesa.

Tanto quanto podemos ver, não há nada na iniciativa portuguesa que faça mais do que limitar a força natural da língua, tentando limitar a sua criatividade através de um colete-de-forças de regras burocráticas. Por exemplo, ao propor essa estandardização como requisito para os manuais escolares, as autoridades estarão efectivamente a limitar a criatividade de escritores em muitas partes do mundo lusófono. Tão pouco existe qualquer indicação de que tal estandardização conduza a um aumento no comércio dos livros entre as várias partes do mundo lusófono.

Finalmente, deveria ser sublinhado o facto de terem sido feitas numerosas excepções à proposta de estandardização, criando assim um conjunto de contradições linguísticas burocráticas que interferem com a configuração das diferenças que é real, original e criativa.

Estamos desapontados pelo facto de as autoridades que, qualquer que seja o seu poder, não possuem real competência em relação ao modo como as línguas vivem e crescem, tentarem limitar a força do Português ao imporem regras artificiais destinadas a minar a força de todas as línguas – ou seja, a sua capacidade de se reinventarem constantemente. Para isto, uma simples aceitação de uma diversidade de abordagens, habitualmente emergindo de diferentes regiões, é essencial. Duvidamos muitíssimo que essa proposta de estandardização produza outros efeitos para além de burocratizar os textos usados nas escolas, separando assim os alunos da real criatividade da língua portuguesa, nos planos regional e internacional.

PEN International Translation and Linguistic Rights Committee

Statement on the Proposed International Standardization of the Portuguese Language

The PEN International Translation and Linguistic Rights has been asked to comment on the agreement among most Portuguese speaking states to engage in a program of orthographic standardization (Orthographic Agreement from 1990 [Acordo ortográfico/AO 90)]. This request to examine the proposed changes was initiated by Portuguese PEN, whose members oppose the proposed international standardization. The T&LRC meeting in Barcelona (4-6 June, 2012) expressed great sympathy for the Portuguese PEN position and asked that the international agreement be examined. It should be said that many other writers, public figures and linguists, also question whether attempts to move towards a standardized universal Portuguese is a good idea.

The history of such attempts in the lusophone world has shown just how difficult the question is. An annex of earlier initiatives of this sort is attached. As can be seen, more often than not, they have led to failure.

When compared with the recent history of other international languages, it can also be seen that the idea of standardization across borders has more often than not been rejected.

It would appear that the two driving forces behind the Portuguese standardization plan are administrative and commercial. If so, these are weak points of departure that may be seriously damaging to the Portuguese language. A language is not primarily an administrative or a commercial tool. These are superficial and utilitarian activities which require what might be called simplified dialects tangential to living language. A living language favours creativity, imagination, scientific initiative; it adapts to a real world in which people live with their many differences and particularities.

To attempt to centre a language in administrative and/or commercial priorities is to weaken it by attacking its complexity and innate creativity in order to promote bureaucratic methods of the public and private sort.

As to historic precedent, it is not clear that this initiative results from a clear thinking through of experiences elsewhere. For example, it is widely accepted that the centralized attempt over several centuries to create and maintain a universal French, as laid out in Paris, had the long term effect of alienating populations from that language when offered a choice of other languages more open to local creativity. One practical negative result was a chilling effort on the natural creation of vocabulary, followed by a shrinking of vocabulary. The driving force in the French language today, originating in all of its bases around the world, is to move towards an embracing of the differences within the language. The result is the growing possibility of a new and very positive atmosphere surrounding French, for example in Africa.

As for English there were equivalent attempts at a universal approach in the time of the British Empire. However, the strength of the Anglophone regions (a situation similar to that of Portuguese) meant that these rules were both internationally and naturally broken. The strength of English today is widely attributed to its openness to differences – to different grammars, spellings, words and indeed meanings. One of the most positive characteristics of any international language is that words, spellings, grammar, phrases, and accents take on quite different meanings as the result of local or regional experiences. These differences often work their way across borders and are absorbed by other English speaking regions. It is the competitive, independent, differing nature of the English regions that has become the hall mark of its strength – its creativity whether in science, literature, business or, indeed, ideas. There are constant attempts to ‘normalize’ or ‘centralize’, such as the Chicago style system. However, these attempts, more than anything else, get in the way of the languages real strengths.

Exactly the same argument could be made to explain the growing strength of Spanish as an international language. It is precisely the local, national and hemispheric differences within the Spanish language which give it increasing strength. The differences feed off each other. The creation of the Dictionary of the Royal Spanish Academy with the cooperation of Spanish language Academies around the world had the aim of including all of these differences. In this way, the approach towards the celebration of differences within the Spanish language paralleled the same approach taken by major dictionaries of the English language.

As far as we can see, there is nothing in the Portuguese initiative which will do anything except limit the natural strength of the language by attempting to limit its creativity through an essentially bureaucratic straight jacket of rules. For example, by proposing this standardization as a requirement for school manuals, authorities will in effect be limiting the creativity of writers in many parts of the Portuguese speaking world. There is also no indication that such standardization will lead to an increase in the trade of books between the various parts of the Portuguese speaking world.

Finally, it should be pointed out that numerous exceptions were made in the standardization proposal, thereby creating a maze of bureaucratic linguistic contradictions which interfere with the real, grassroots, creative shaping of differences.

We are disappointed that the authorities who, whatever their power, have no real expertise in how languages live and grow, should attempt to limit the strength of Portuguese by imposing artificial rules designed to undermine the strength of all languages – that is, their ability to constantly reinvent themselves. For this, a simple acceptance of a diversity of approaches, usually emerging from different regions, is essential. We doubt very much that this proposed standardization will have any other effect than to bureaucratize the texts used in schools, thereby, cutting students off from the real creativity of the Portuguese language at its regional and international level.

[Transcrições integrais do original em Inglês alojado em http://www.serbesti.net/?id=1806 e da tradução para Português alojada no “blog” Proximidade (do Pen Clube Português).]

Este assunto foi noticiado no “post” anterior.

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1 comentário

  1. Divulgue-se e anuncie-se aos sete ventos mais esta machadada (agora do PEN Internacional) no Aborto ortográfico!
    O número de entidades que se manifestam contra o AO90 vai crescendo, embora com exasperante lentidão.
    Mesmo assim, o panorama dos “revoltados” não é animador.
    Salvo o fulgurante caso do CCB, todo o funcionalismo público tem medo de sofrer sanções disciplinares se escrever fora do AO90. Noutras áreas, só uma Associação de Estudantes universitários se declarou oficialmente contra o AO90, a AEIST (do Instituto Superior Técnico). No entanto, das restantes associações não houve — que eu saiba — mais reacções, e elas são muitas, suponho que mais de 200.
    Do mesmo modo, só a Câmara Municipal da Covilhã se manifestou contra o AO90, num universo de mais de 300 municípios.
    Dos múltiplos sindicatos de professores, só o Sindicato de Professsores da Região Centro se mantém fiel ao português falado e escrito correctamente em Portugal.
    Receio ter de concluir que Portugal chafurda num marasmo de abulia, o país está-se completamente nas tintas para que a ortografia seja assim ou assado — vemos por aí uma generalizada indiferença passiva por parte da população, que passa ao lado de anúncios, folhetos de supermercado, tabuletas, cartazes, painéis, onde se lê, por exemplo, “poupe eletricidade”, “coleções de inverno”, “ação correta”, “seleção nacional”, etc., e nem nota a diferença!
    No entanto é preciso estar muito atento: desde 2009 que o famigerado Malaca Casteleiro, pai e mãe do AO90, nos quer amarrar ao seu abortivo filho através da vinculação de um Decreto-Lei:
    «Tem de haver um decreto-lei que diga que a partir da data tal o Acordo entra em vigor», recorda Malaca Casteleiro, responsável pelo dicionário da Academia das Ciências, e que acompanha as negociações do Acordo desde o início. (Semanário Sol, 27 de Novembro de 2009). Ver:
    http://invirtus.net/in/story.php?title=acordo-ortogr%E1fico-pronto-a-usar-a-partir-de-janeiro
    Até agora, o AO90 está apenas aprovado por uma Resolução da Assembleia da República, e com uma data de entrada em vigor (1 de Janeiro de 2012) por uma Resolução do Conselho de Ministros. Ora, uma Resolução não é um acto legislativo, é uma espécie de “recomendação”, e não tem a força vinculativa de uma Lei ou de um Decreto-Lei.
    Antes que isso aconteça, é preciso fazer TUDO para que isso não aconteça!
    Será que Portugal já não tem alma para despertar deste sono fatal?
    Desperta, Portugal! Como diria Fernando Pessoa: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro… É a hora!”

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