«A palhaçada do Acordo Ortográfico» [Tomás Goldstein, “Mais Opinião”, 06.06.14]

logo_MaisOpiniaoJá toda a gente percebeu que o acordo ortográfico (AO) é uma palhaçada. Ainda só não conseguimos entender como é que vai ser daqui para a frente. A geração que estava na escola e na universidade, quando foi decidido que se queria mudar a língua, já não sabe escrever direito.

Eu não sou professor, mas imagino que ler trabalhos académicos nestes anos tenha sido doloroso. Sempre que leio textos desse tipo (e não só) sou confrontado com uma espécie de mistura entre pré-acordo, pós-acordo e invenção-acordo. Lê-se percepção e acção, misturado com ator e Egito e ainda novas palavras: ‘retracto’. Retracto existe, de facto, mas é um adjectivo e significa: retraído, contraído. Vem de retracção. quando nos referimos a retrato, querendo remeter para a imagem de uma pessoa produzida por um qualquer meio, a letra c não está lá a fazer nada. A palavra retrato (do latim retractus) já sofreu a síncope do “c” há muito tempo. Antes do novo acordo ortográfico não se escrevia ‘retracto’ nem ‘retractar’. Retractar significa uma outra coisa: dar por não dito, desdizer-se, mostrar público arrependimento.

O ideal seria a anulação do AO e o regresso à escrita pré-acordo. As crianças que aprenderam a escrever nestes anos e só conhecem versões como fator, objeto, e percetível têm de saber que aprenderam a escrever mal devido a decisões incompetentes do governo. Se esta opção for impossível e o único caminho for a imposição forçada (como já foi feita) de uma nova norma de escrita, então que fique bem claro. Assumam as escolhas e expliquem porquê. Mas explique-se também que, se a ideia era aproximar o português de Portugal do português do Brasil, não será bem sucedida. O Brasil suspendeu a entrada do acordo em vigor, pelo menos durante 3 anos, até 2016. Se supostamente a mudança era “por causa dos brasileiros” e para escrevermos todos da mesma forma, também não temos sido bem sucedidos. Os brasileiros continuam com a sua grafia; os portugueses têm uma nova grafia imposta por decreto que mais ninguém quer; e Angola, Moçambique e Timor têm a grafia anterior ao AO. Voltamos a dizer: o acordo não-foi-bem-sucedido. Ninguém o quer! Há, actualmente, três grafias da língua portuguesa!

Termino com uma referência à mutabilidade da língua. Claro que a língua não é imutável ao longo do tempo; nunca o foi. Mas quem introduz as mudanças é quem a escreve e quem a fala. Estas alterações não se fazem por decreto e nunca deviam ser impostas. Uma coisa é determinada forma gráfica cair no desuso e desaparecer. Outra é pegar num conjunto de regras mal definidas, sobrepô-las àquelas que as pessoas conhecem e usam e obrigar a que se escreva de outra forma.

Levantemo-nos do Chão!

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Tomás Goldstein, publicado no “site” Mais Opinião em 06.06.14. “Links” inseridos por nós.]

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