Isabelle Oliveira. “Temos de abandonar complexo de inferioridade da língua portuguesa”
Por Marta Cerqueira
publicado em 7 Jun 2014 – 05:00Investigadora lidera uma das faculdades da Sorbonne. E é partir de Paris que quer fazer com que a lusofonia chegue mais longe
Isabelle Oliveira viveu apenas um ano em Portugal, mas defende como poucos a língua portuguesa. A investigadora é directora da Faculdade de Línguas Estrangeiras Aplicadas da Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, cargo que ocupa desde 2011. Ter um papel de liderança numa das maiores instituições de ensino superior do mundo não a assusta e até tira partido do estatuto para executar ideias que passam sempre pela promoção do português no estrangeiro. Critica os políticos que falam inglês em cimeiras internacionais, mas está convencida de que o poder da língua não vem da sua uniformização. Daí ser contra a aplicação do acordo ortográfico. Aos 37 anos, Isabelle conta que tem “grandes planos para a língua portuguesa”, a prioridade dos muitos projectos em que se envolve. Até porque, avisa, está na hora de a lusofonia ir mais longe.
Tendo ido com os seus pais para França ainda bebé, de onde vem essa paixão pela língua portuguesa?
Em minha casa sempre se falou francês mas eu sempre tive um carinho especial pelo português. Considero-me franco- -portuguesa mas não me revejo de maneira nenhuma no conceito de luso-descendente. É preciso que percebam que os portugueses em França são muito mais exigentes agora do que eram na década de 60.
A nova vaga de emigração não tem alterado a imagem dos portugueses em França?
Não vejo isso. Ainda há muito a fazer para quebrar estereótipos. Os portugueses chegam com altos níveis de qualificação mas não estão integrados na sociedade. Em Portugal não há uma noção real da precariedade em que os portugueses vivem em França. Há dois ou três casos de êxito, mas a maior parte passa muito mal, principalmente aqueles que têm formação nas áreas sociais e humanas. E acabam por se sujeitar a trabalhos menores. Além disso, os portugueses de segunda e terceira geração já se consideram franceses e não têm a noção de solidariedade com os que chegam de novo. Penso que é preciso uma integração bem pensada para conseguir, a longo prazo, implementar uma nova imagem da emigração portuguesa.
E os luso-descendentes que querem voltar para Portugal, têm abertura?
Nem por isso. Tive muitos problemas com os estudantes da Sorbonne que vieram estagiar para Portugal, porque enfrentaram situações de discriminação. Em Portugal, o sotaque francês não traz prestígio, mas se falarmos do inglês, ou seja, um sotaque com poder económico, já não há problema.
Existem estereótipos a quebrar nos dois países?
Sim, muito fortes. O inglês é a língua dominante devido ao poder económico dos Estados Unidos. O latim já o foi e o francês também já teve a sua idade de ouro. Está na hora de a lusofonia ir mais longe. Na Sorbonne temos cada vez mais franceses, chineses e árabes a quererem aprender português. São pessoas com visão de futuro.
O português é uma língua muito procurada na Sorbonne?
É o terceiro idioma com mais procura, a seguir ao inglês e ao espanhol, mas muito por mérito da universidade. Vamos aos liceus e organizamos jornadas, não ficamos à espera dos governantes para fazer promoção.
E é fácil para os estrangeiros aprender português?
Damos a opção de aprenderem a norma brasileira ou portuguesa. Normalmente, dizem que a fonética brasileira é mais fácil de aprender.
As universidades têm um papel de defesa da língua?
O português está realmente em decadência em França. São as universidades, por serem autónomas, que têm o poder de projectar a língua. Eu aproveito o cargo de chefia que ocupo para implementar as minhas ideias, que passam sempre pela promoção do português. Mas no ensino secundário esse trabalho está nas mãos dos governantes.
O que pode ser feito a nível governamental?
O Português nunca fez sequer parte dos currículos do secundário em França. Os alunos que recebemos dizem que aprendem o português nas ruas, não na escola. Não se entende, tendo em conta que é uma das línguas mais faladas em todo o mundo. Não existe um projecto global, apenas medidas dispersas a servir demagogias impostas. A língua portuguesa não é propriedade de ninguém, muito menos dos políticos, mas a verdade é que nunca houve uma política da língua em Portugal, coisa que existe em França há anos. É preciso uma política mais agressiva e abandonar o complexo de inferioridade quanto à língua portuguesa.
É ainda considerada uma língua menor a nível internacional?
Sim, há uma grande falta de consideração pela língua portuguesa. Em França ainda é vista como uma “língua de gueto”. Nesse caso, Portugal e França são ambos culpados. Cabe a Portugal ser mais credível junto das entidades francesas e explicar o activo da língua portuguesa no palco internacional. Mas para isso é preciso abandonar a imagem de “coitadinhos” no que diz respeito à comunidade portuguesa lá fora e passar a projectar uma imagem positiva do país.
Considera que a língua portuguesa não é defendida internacionalmente?
O problema começa com os governantes. Por exemplo, no Parlamento Europeu não se fala português, há um deslize constante para o inglês ou o espanhol, quase sempre mal falado. E estamos a falar de um local que tem intérpretes. Nessas situações deviam sempre escolher falar português, é uma forma de impor o país.
A CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) pode ter um papel importante nesse trabalho internacional?
Claro que sim, pode ter o papel que teve a organização internacional da francofonia na defesa da francês. Não se percebe, por exemplo, como é que o português não é uma das línguas oficiais das Nações Unidas.
Consegue ver a língua portuguesa a impor-se no futuro?
Como optimista que sou, vejo um futuro risonho. É uma língua com um enorme potencial e vejo o português a ocupar o lugar que o inglês ocupa actualmente.
Acha mesmo que é possível quebrar a hegemonia do inglês?
Não estamos numa luta contra o inglês, que esse tipo de rivalidades não leva a lado nenhum. Queremos é restabelecer o poder da língua portuguesa, dar-lhe o lugar que ela merece. Mas não é com uma uniformização da língua que chegamos lá.
Refere-se ao acordo ortográfico?
Sim. Nenhuma língua, até mesmo algumas com mais variantes que o português, teve de se unificar para se impor internacionalmente. O acordo vai matar o nosso património linguístico e a diversidade linguística e cultural que deviam ser a nossa força.
Considerando que Portugal sozinho não tem força para projectar a língua, a uniformização não poderia ser uma ajuda?
É preciso conjugar esforços para defesa da língua, mas isso não passa pela sua uniformização. O acordo é uma aberração a todos os níveis, jurídico, linguístico, cultural. É importante perceber que saímos mais enriquecidos com as diversidades de cada país.
Mas já está a ser criado um vocabulário comum entre os países da CPLP.
Inicialmente achavam que suprimir meia dúzia de consoantes mudas ia resolver o problema. É evidente que não, porque as diferenças entre os países vão muito além disso, tanto a nível de escrita como culturalmente falando. O vocabulário comum para certas áreas de especialidade já existe e são os glossários. Mais que isso não me parece sensato.
Optou por fazer Erasmus em Lisboa. Precisava dessa experiência?
Fui para França ainda bebé, nunca tinha vivido cá. Fiz toda a escolaridade lá, mas depois de um percurso científico decidi estudar e aperfeiçoar o meu português. Os meus pais ficaram em estado de choque porque já me estavam a ver médica. Estudei português ainda em França, mas decidi vir para Portugal uma temporada. Costumo dizer que foi o meu banho linguístico. Estando em Lisboa um ano, consegui ler os grandes autores e pesquisar sobre a língua.
Consegue fazer uma comparação entre os dois sistemas de ensino?
França sempre foi um exemplo em termos de ensino, mas tem recuado nos últimos anos. Estamos agora a tentar implementar reformas curriculares de forma a modernizar o sistema de ensino. Portugal não tem um mau sistema educativo, mas tem de sofrer algumas mudanças, principalmente para que se torne mais criativo. Existem também os problemas orçamentais…
Que em França não existem?
Existem, mas França tem a vantagem de não ter universidades privadas. Em Portugal há demasiada formação para as poucas ofertas de trabalho existentes. Além disso, o ensino francês é muito atractivo financeiramente, principalmente quando comparado com o português. Uma licenciatura e um mestrado custam 300 euros anuais e um doutoramento 500 euros. Isto porque França preconiza a igualdade de oportunidades no acesso ao ensino.
Têm muitos portugueses a procurar cursos na Sorbonne?
Sim. O problema é que os franceses são chauvinistas e não aceitam quem não domine a língua. Quem se inscreve num mestrado é sujeito a um teste de francês feito pelo orientador, para assegurar que no final não tem de redigir a tese pelo aluno. Os portugueses dominam o inglês muito melhor que os franceses, mas precisam de apostar no francês se querem prosseguir estudos lá.
O seu percurso seria o mesmo se tivesse escolhido estudar em Portugal?
Com certeza não teria conseguido ascender a um cargo deste género em Portugal, principalmente ainda jovem. Felizmente na Sorbonne existe uma política de paridade. Há um incentivo para que as mulheres assumam cada vez mais responsabilidades.
[Transcrição integral de entrevista, realizada pela jornalista Marta Cerqueira, publicada no jornal “i” de 07.06.14. “Links” e destaques nossos.]