Enquanto há língua há esperança
Há coisas que de tão simples nos passam ao lado. Qual a forma mais eficaz de um Estado impor um disparate ou uma arbitrariedade? Não tem nada que saber. Anuncia que o disparate e/ou a arbitrariedade são obrigatórios. Claro como água. Transparente como papel celofane.
Evidentemente, decretá-los é sempre mais fácil em Estados totalitários. É assim que na China os monges budistas estão proibidos de reencarnar sem autorização do governo. Por cá, o emprego da ortografia pré-AO nem com o consentimento das autoridades. O MEC decidiu proibi-la.
Os alunos do 9º e do 12º anos, em breve sujeitos a exames nacionais, ver-se-ão penalizados (até 25%) se usarem a ortografia anterior ao Acordo (aquela que lhes ensinaram).
“Recepção” em vez de “receção”? Pim! Distinguir “pára” de “para”? Pim! Dois cês em “acção”? Pim-Pam-Pum! E assim sucessivamente…
Perante a decisão, contestada por muitos professores, alunos e encarregados de educação, a presidente da Associação de Professores de Português, Edviges Ferreira, não se pronunciou sobre a bondade do Acordo, mas foi firme ao sublinhar a bondade do exercício do poder: “Se [os professores] são funcionários do MEC e o MEC determina que o AO é para cumprir só têm de obedecer”. E se Edviges Ferreira fosse chinesa não seria mais diáfana.
Obscuro é o Acordo. Nas movitações, no teor e nas consequências. As últimas são desastrosas! Nunca se viu tanta asneira junta. É “fato” para facto, “contato” para contacto, “impato” para impacto, “infecioso” para infeccioso, “batéria” para bactéria, “perfecionista” para perfeccionista… Seria fastidioso prosseguir. Dirão: isso são erros! Não constam do Acordo. Ah, pois é! Mas curioso mesmo é que ninguém os escrevesse antes do dito.
Quanto ao teor, já os especialistas explicaram como a mítica unificação resultou num labirinto de variantes ao gosto do freguês e quão perverso é o critério da pronúncia culta (Coimbra? Porto? Funchal?).
A parte fácil são as motivações: novos dicionários, prontuários, livros escolares e adaptações de clássicos dão dinheiro a muita gente (além dos instrumentos online).
O que é que o MEC tem que ver com isto? Simples. Face à aberração (que ninguém no estrangeiro está a levar realmente a sério), sai da cartola a política do facto consumado. Quandos os putos deixarem de saber escrever português, quem sobrará para defender a língua?
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Ana Cristina Pereira Leonardo, publicado no semanário “Expresso” de 21.03.15. “Links” adicionados. Imagem: ver https://ilcao.com/?p=12002]
3 comentários
Excelente artigo, sem papas na língua! Porque tudo, neste AO90, é sinónimo de abuso de poder, de falta de transparência, de imposição totalitária, de negação da democracia!
MEC, cujo timoneiro é esse grande ex-educador da classe operária, esse grande democrata que antes apoiava a Revolução Cultural Chinesa e agora apoia a revolução linguística do Malaca Casteleiro. Por isso mesmo, tudo naquele ‘comité’ – e na obrigatoriedade do uso do AO90 – “é sinónimo de abuso de poder, de falta de transparência, de imposição totalitária, de negação da democracia!” Há coisas que não mudam, mesmo quando se troca de uniforme…
Não leria este excelente artigo se a ILCAO não o divulgasse e daí as primeiras palavras de agradecimento lhe serem dirigidas. À Ana Cristina Leonardo também um imenso obrigada pela limpidez dos argumentos apresentados, bem reveladores da estupidez reinante, nesta matéria, estreitamente associada a uma arrogância que já nauseia.