«A língua portuguesa também é nossa» [semanário “Angolense” (Angola)]

Penso que o cerne da questão será: futuro risonho para o português de Angola que é absolutamente avesso ao acordo linguístico, mas este é assunto para outro debate, ao lado de mais de uma dezena de outras línguas angolanas, faladas e ainda pouco escritas pelos povos de Angola.

Flag_of_Angola.svgFalar do futuro da língua portuguesa implica, antes de mais, falar do seu passado. Tal como só podemos discorrer acerca do futuro de alguém se tivermos em conta o seu passado e presente, a sua história, também para falarmos do futuro de uma língua, temos de considerar em primeiro lugar o seu passado e o seu presente.

Mas, antes disso, tenho de dizer que fiquei boquiaberto quando o Salas Neto me ligou a pedir um texto por ocasião dos 800 anos da língua portuguesa. Porquê boquiaberto? Porque não sabia de qualquer 27 de Junho como dia da língua portuguesa – sabia antes do 10 de Junho, que se confunde com o dia da nacionalidade portuguesa.

Porém, bem vistas as coisas, é salutar a separação entre o dia da nacionalidade e o dia da língua. Até porque há língua portuguesa fora da nacionalidade portuguesa – e, inclusivamente, a esmagadora maioria dos falantes de português tem nacionalidade diferente da portuguesa.

Apoio, portanto, a ideia do 27 de Junho ser o dia da língua portuguesa, tanto mais que se trata da data do primeiro documento escrito em língua portuguesa por um soberano – D. Afonso II, que a 27 de Junho de 1214 subscreveu o seu testamento, 76 anos antes de D. Dinis transformar o português em língua oficial na que viria a ser a pátria de Camões.

A dúvida é se devemos ou não celebrar a data em Angola. Eu penso que sim, porque a língua portuguesa transcende desde há muito as fronteiras de Portugal, sendo hoje (também) língua dos angolanos. Ao contrário do que muita gente pensa e até afirma, a língua portuguesa é de Angola, da mesma forma como o é de Moçambique, de São Tomé e Príncipe, de Cabo Verde, da Guiné-Bissau ou do Brasil. Da mesma forma como há um português do Brasil (com sotaque próprio e outras nuances), também há um português de Angola.

Não nos esqueçamos que, para além de língua de colonização, o português foi também língua de resistência. Foi em português que se fez boa parte da resistência à ocupação colonial. É em português que a maioria dos angolanos hoje se entende. E o português, penso, é já língua materna da maioria dos angolanos (o censo vai dizer se estou certo ou não).

Portanto, parece-me que, em Angola, a língua portuguesa vai bem, sim senhor. Vai até melhor do que se esperava, pois cometeu¬-se o erro de tentar esquecer as demais línguas nacionais no acesso ao ensino, com todos os malefícios daí advenientes.

Neste momento, o português é por cá a mais utilizada língua de acesso ao conhecimento. Mas temos de convir que o português não se vai manter sozinho em Angola. Há uma série de outras línguas, também angolanas, que vão continuar a marcar a sua presença (espera-se que, também, como línguas de acesso ao ensino para quem as tem como maternas).

Portanto, entre nós, não se pode conceber a língua portuguesa sem as demais línguas, faladas pelos diferentes povos de Angola. A construção da nação em nada será negativamente afectada pela utilização de outras línguas – muito pelo contrário. A coisa funciona como a globalização, que só tem sentido quando pensamos também no local, no regional.

Penso que o cerne da questão será: futuro risonho para o português de Angola (que é absolutamente avesso ao acordo linguístico, mas este é assunto para outro debate), ao lado de mais de uma dezena de outras línguas angolanas, faladas e (ainda pouco) escritas pelos povos de Angola.

Não posso terminar sem referir uma outra língua, cuja adopção nos catapultará para patamares hoje inatingíveis. Já o disse há alguns anos e repito-o agora: é tempo de o inglês ser adoptado como segunda língua oficial em Angola. Para Angola se inserir cada vez mais no mundo, temos de o fazer. Não já em benefício da minha geração, mas para a geração dos meus filhos, para a Angola a partir de 2025-2030.

Sociólogo. Texto originalmente publicado no jornal Semanário Angolense (Angola) a 28 de Junho de 2014

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Paulo de Carvalho, publicado no semanário “Angolense” (Angola) em 28.06.14. Reproduzido pelo jornal “Público” em 27.07.14, no âmbito da iniciativa «24 jornais escrevem sobre futuro do português» (ver “compilação” AQUI). Imagem (bandeira de Angola) de Wikipedia.]

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1 comentário

    • Jorge Pacheco de Oliveira on 2 Agosto, 2014 at 15:21
    • Responder

    Dá satisfação ler um texto de tão grande lucidez.

    Para mais, registo que o autor vem ao encontro de uma velha proposta minha acerca da adopção do inglês como segunda língua oficial. No meu caso, de Portugal obviamente.

    Creio que já aqui disse que publiquei três artigos contendo tal proposta, o primeiro dos quais na revista Ingenium, da Ordem dos Engenheiros, edição de Março de 1999. Acredito que um dia assim será feito.

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