«O último ‘espaço imperial’ de Portugal» [semanário “Angolense” (Angola)]

O Novo Acordo Ortográfico firmado entre os países de língua portuguesa é um tiro desse pensamento hegemónico português que saiu pela culatra. O Brasil roubou a cena com a maior parte das alterações a seu favor, incomodando assim profundamente a intelectualidade tuga. Os países africanos, em maior ou menor grau, resistem.

Flag_of_Angola.svgSe a Língua Portuguesa faz 800 anos, o que é que nós temos a ver com isso? Tudo. Sim, nós, os angolanos (e demais africanos falantes do português), temos tudo a ver com isso, mesmo que, ao contrário dos portugueses, não tivéssemos nenhum motivo para comemorar essa data (e não sei se temos e nem porquê teríamos que ter).

O certo é que, por mais que sejamos kimbundos, umbundos, kikongos, nganguelas, tchokwes,kwanhamas e outros bantus, toquemos batuques, cantemos massembas e dancemos tchiandas, enfim, apesar de quaisquer africanidades que possamos exibir, nós nao falamos apenas a Língua Portuguesa. Nós somos a Língua Portuguesa. Nós pensamos em Português.

Certamente, não será esse o juízo dos nossos cotas, já que eles estarão sempre agarrados à necessidade de conservação das nossas línguas nacionais (com muita razão). Também não é a ideia de muitos dos chamados intelectuais, para quem o Português é a língua materna. Para todos em geral, a Língua Portuguesa (a oficial) é estrangeira. Então, «sermos» a Língua Portuguesa ou «pensarmos» por meio dela, afigura-se como uma aberração.

Mas, no fundo, basta matutar. Depois de quase cinco dos oito séculos de existência dessa língua terem sido dedicados à colonização em África e ela ter sido um dos principais instrumentos de moldagem do homem colonizado, mormente com a rigorosidade do processo de assimilacionimo em que a cultura europeia nos foi dada a engolir, «naturalmente», o resultado não poderia ser diferente.

Isso, porém, sem deixar de ressaltar que essa preocupação com a língua nunca foi exactamente objecto de cuidados aquando da colonização. Afinal, os africanos iletrados eram considerados «fora» da história, só «entrando» nela através das formas de dominação, tendo a política de não-educação sido uma maneira de manter o estatuto de inferioridade do colonizado.

Assim, fomos feitos como uma espécie de RoboCop – a figura semi-homem e semi-máquina que o cineastra holandês Paul Verhoeven inventou num dos filmes de Hollywood. Cabeça e alguns membros humanos e o resto do corpo feito de um conjunto de metais automatizados. Um sujeito movido à memória electrónica, com lapsos de lembranças humanitárias.

No nosso caso, a cabeça continuou fisicamente africana, mas fomos automatizados ao modo ocidental, sendo a memória portuguesa com «lapsos» de lembranças africanistas.

A rigor, deixamos de ser simplesmente indígenas africanos, mas também a rígida «civilização» imposta sobretudo depois que movimentos revolucionários começaram a lutar contra a ocupação lusitana, não conseguiram nos tornar inteiramente «europeus».

A transformação resultou nesse «humanóide» estereotipado de alma africana e fazeres misturados, onde a língua é a maior expressão da identidade portuguesa e o seu «DNA» está igualmente presente de alguma maneira nas nossas faculdades mentais.

Quando se diz que portugueses e angolanos (e por extensão outros luso-falantes africanos) são povos irmãos, «biologicamente», esse é um deslavado conto-da-carochinha. Os tugas que o narram, fazem-no para se «cambombiarem» e os angolanos que o repetem, para se «cachicarem».

Mas não deixa de haver um quê de verdade na existência dessa «irmandade», partindo-se do princípio de que a convivência, por mais desigual que tenha sido, estabeleceu uma determinada igualdade de pensamento, por meio do uso da mesma língua.

Além das fortunas vindas dos recursos naturais que ajudaram a edificar as grandes metrópoles que hoje fazem o orgulho dos europeus, particularmente dos portugueses, entre outros ganhos, se há algum elemento que realmente pode simbolizar com dignidade a história dos descobrimentos e explorações lusitanas pelo mundo, esse elemento é a língua.

O facto de falarmos a Língua Portuguesa, como o cume da moldagem promovida pelo regime colonial, é prova de que os seus intentos foram concretizados, mesmo que o sonho de um reinado lusitano eterno tenha desmoronado.

Agora inventou-se uma ferramenta ideológica para recuperar o espaço perdido além-mar, numa tentativa apagar a história colonial e as relações polêmicas com os povos antes dominados, mediante um esforço para controlo da língua-mãe, a Lusofonia. A idéia de uma pátria lingüística deixa subentendido que Lisboa é a capital do «território virtual» lusitano onde aos os africanos se destina a «inferioridade intelectual».

O Novo Acordo Ortográfico firmado entre os países de língua portuguesa é um tiro desse pensamento hegemónico português que saiu pela culatra. O Brasil roubou a cena com a maior parte das alterações a seu favor, incomodando assim profundamente a intelectualidade tuga. Os países africanos, em maior ou menor grau, resistem.

E pode-se ter certeza de uma coisa. A metamorfose natural de uma língua tem força. Do mesmo modo que a Língua Portuguesa um dia nasceu das mobilidades inflingidas pelo tempo ao Latim, assim também está no prelo do tempo a normatização das variantes de cada pais que actualmente se expressa nesse idioma.

O último «espaço imperial» de Portugal é a Língua Portuguesa, diante das suas antigas colónias, com excepção do Brasil, que desgarrou-se cedo do poder lusitano, cortou o cordão umbilical e segue totalmente independente o seu caminho.

Herdeiros e saudosistas fazem de tudo para manter viva a chama do «império». Constituem uma «corte fiel» de intelectuais lusófonos, dando azo à manutenção desse ideal de superioridade linguística. Mas, a língua portuguesa popular de Angola (assim como a variante dos outros africanos) não vai precisar mais de meia dezena de séculos para declarar a independência linguística da nossa nação.

Jornalista. Texto originalmente publicado no jornal Semanário Angolense (Angola) a 5 de Julho de 2014

[Transcrição integral de artigo, da autoria de N. Talapaxi S., publicado no semanário “Angolense” (Angola) em 05.07.14. Reproduzido pelo jornal “Público” em 27.07.14, no âmbito da iniciativa «24 jornais escrevem sobre futuro do português» (ver “compilação” AQUI). Imagem (bandeira de Angola) de Wikipedia.]

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