Talvez muitos ainda se lembrem da irritação de Felipe Scolari quando, numa conferência de imprensa em Portugal, nos anos em que foi treinador da selecção portuguesa, quis pôr em sentido um jornalista brasileiro que se lhe dirigiu dizendo “Ôi, Felipão…” Terá exclamado algo como isto: “Aqui não sou Felipão, sou Felipe Scolari!” Ora o uso generalizado de “Felipão” no Brasil para designar Scolari tem uma raiz de familiaridade e ao mesmo tempo de grandeza. “Felipão” é o “amigo Felipe” ou “conterrâneo Felipe” mas é também o “grande Felipe”. E para isso lá está, bem audível, o sufixo nominal -ão, neste caso aplicado com sentido aumentativo.
Mas se Scolari quis banir, ainda que conjunturalmente, o -ão do seu nome (voltou a ser Felipão no Brasil, embora o aumentativo tivesse perdido valor nos últimos 15 dias), um português tentou bani-lo em definitivo da Língua pátria há três séculos. Não só o -ão (que é típica e exclusivamente português) mas todos os ditongos nasais. A história, deliciosa, é contada pelo escritor Agostinho de Campos no volume II de Paladinos da Linguagem (ed. Aillaud e Bertrand, 1922). Num livro a que chamou Antídoto da Língua Portuguesa, editado em 1710, António de Mello da Fonseca (que usava como pseudónimo José de Macedo) desafiava o rei D. João V, ainda nos primeiros anos do seu reinado, a banir por decreto régio da Língua Portuguesa os ditongos nasais, substituindo-os “por outras formas mais próximas do italiano, do castelhano ou do latim”. Isto dava que, onde antes haveria -ão, passaria a haver -one, -ano ou -ude. Exemplos: Ladrone, sermone, irmano, verano, em vez de ladrão, sermão, irmão e verão; multitude e ingratitude em lugar de multidão e ingratidão; frouxidade e vastidade em lugar de frouxidão e vastidão; putrédine e caligine em vez de podridão e cerração; e até mesmo manhana, lana e romana em vez de manhã, lã e romã. Não queria só isto, claro. Queria também introduzir letras novas no alfabeto, criar tempos verbais até aí inexistentes e criar inúmeras palavras novas. Tudo por decreto (já vem de trás, tal mania) e acreditando ele que (o comentário é de Agostinho de Campos) “reordenada a nossa língua segundo os seus conselhos, por ordem do Snr. D. João V, todos os outros povos se apressariam a aprendê-la, assim enriquecida, depurada e ao mesmo tempo simplificada — guiando-a às honras e proveitos de linguagem universal”. No Antídoto, para exemplificar o seu horror aos ditongos nasais, contava inclusive uma história passada com D. Catarina, enferma em Londres e em repouso. Sugeriram-lhe as amas um caldo de galinha. Ao que a rainha respondeu: “Não.” O horror teria sido, segundo ele, generalizado. “Ai, manas! Que quer dizer aquilo? Que palavrinha é aquela, tão grandemente feia, e tão pequenina? Eu não sei como cabe tanta fealdade em tanta pequeneza…” Tirando o curioso pormenor de, nas exclamações de “horror”, ele ter escrito “tão” duas vezes, contra um só “não” da rainha, a campanha não foi por diante. Talvez porque o próprio rei, a quem ele dedicou o livro, se chamasse… João. Ficaria Joane? Joano?
Havia outros argumentos brandidos contra o -ão. Por exemplo: o facto de não se encontrarem nas tipografias francesas o o ou o a com til por cima. Mas, paradoxalmente, essas tipografias imprimiam livros em grego, alemão, holandês e italiano, com alfabetos bem diferentes. Donde, a ausência do til sobre tais vogais só podia ser atribuível à falta de interesse dos tipógrafos ou ao desleixo dos que, em Portugal, falando muito da Língua pouco ou nada faziam lá fora por ela. Comportamento, aliás, que os séculos seguintes viram tristemente renascer e com exemplos conhecidos.
Pois bem: se D. João V tivesse sido permissivo a tais audácias, e o intrépido José de Macedo fosse “promovido” a reformador linguístico do reino, decerto não haveria hoje… Felipão. Mas como os portugueses são teimosíssimos e até pronunciam ditongos “apagados” (mesmo sem til sobre o ui de muito, é “muinto” que ainda hoje se diz na fala portuguesa) o -ão goza de boa saúde. E se José de Macedo ressuscitasse em plena terra do brasileirão, do Felipão, do galpão, do feijão, do chorão ou do Domingão do Faustão, haveria de gritar, possesso, aqui d’El rão! — Perdão, aqui d’El rei!
[Transcrição integral de texto, da autoria de Nuno Pacheco, publicado na “Revista 2”, suplemento do jornal “PÚBLICO” de 20.07.14. “Links” e destaques adicionados por nós.]
2 comentários
Mais um motivo para redescobrir, reapreciar, e admirar, D. João V. Muito homem como ele era, sem dúvida não lhe agradou a ideia de passar a chamar-se «Joane»… 😉
É fantástico como este país dá periodicamente à luz sacripantas como António de Mello da Fonseca e Malaca Casteleiro. É pena que não dê periodicamente à luz D. Joões Quintos.