«A velhíssima mãe e os seus diferentes filhos» [Nuno Pacheco, “Público”, 27.06.14]

testamento1214

É sempre ingrato falar de algo tão usual como a língua, mas talvez seja por muito falarmos dela, com euforia e sem tino, que a ela sempre voltamos, como náufragos sem madeiros que nos valham num mar imenso. Vamos, pois, à língua e aos seus futuros.

Mas é impossível falar em futuro sem relembrar, ainda que brevemente, o passado. O tempo do galego-português (ou galaico-português, se preferirem), nascido do latim no ângulo noroeste da Península Ibérica, depois da presença romana iniciada em 218 a.C. Outras invasões e conquistas trouxeram outros falares. E se o latim escrito continuava como língua de cultura e transmissão de conhecimento, o português nascido de uma das línguas peninsulares (galego-português, castelhano e catalão; os bascos não haviam abraçado o latim e assim se mantiveram) viu o seu vocabulário, latino e grego na origem, enriquecer-se com palavras de origem germânica (menos) ou árabe (mais). O Testamento de D. Afonso II, que está na origem da mais recente euforia celebrativa, está datado de 27 de Junho de 1214 (faz agora exactamente 800 anos) e é, a nível oficial, o mais antigo documento escrito em língua portuguesa de que há registo. Mas o português não parou por aí, e às influências da proximidade com o castelhano (que chegou a ser usado como segundo língua falada e escrita, inclusive por Gil Vicente e Camões) veio depois a ser influenciado, a partir do século XVIII, pela língua francesa. Gramática, Ortografia e Lexicografia iam-se desenvolvendo desde o século XVI. E iam surgindo os dicionários e vocabulários, com realce para os de Bluteau e de Morais e Silva (ambos escritos e publicados já no séc. XVIII). Por onde andava o português falado, já então?

A crescer e a modificar-se, mas em caminhos diversos consoante as geografias. Portugal e Brasil, mantendo unidade ortográfica até aos últimos tempos da monarquia portuguesa (já o Brasil se tornara independente em 1822), caminhavam para uma óbvia e natural separação em termos de expressão linguística. A velhíssima mãe-língua, ela própria com ainda mais antigos progenitores e parentes, via os filhos crescer, sem contudo prestar atenção suficiente às suas necessidades e diferenças. África, neste campo, também por via da colonização, viu-se a braços com o português como língua oficial (de ensino, de administração) mas não de uso. Porque nesse papel estavam as línguas maternas, não as do colonizador. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe tinham crioulos próprios (ainda hoje de uso comum no dia-a-dia), Guiné-Bissau, Angola e Moçambique tinham (e têm) várias línguas, correspondentes a etnias. E se os movimentos de libertação africanos optaram pelo português no momento de escolher uma língua oficial, isso deveu-se à necessidade de evitar divisões (escolher uma língua em detrimento de outra acirraria tribalismos) e ao mesmo tempo de aproveitar o esteio do conhecimento já semeado pelo português.

Depois disso? O vazio, ou quase. Quando, após as independências, os países africanos clamaram por professores, por ajuda no ensino, a resposta foi fraca ou nula. Angola, Moçambique e Guiné-Bissau quiseram incentivar o português em finais dos anos 1970, mas com parco sucesso. Manuel Ferreira (1917-1992), professor e africanista célebre, autor de livros como Hora Di Bai ou A Aventura Crioula, escreveu em 1988 num livro intitulado Que Futuro Para a Língua Portuguesa em África? (curiosamente, a mesma pergunta que hoje repetimos mas com os olhos postos em ambições maiores) o seguinte: “Houve um período em que esses três países procuraram, insistentemente, socorrer-se de Portugal para a contratação de professores cooperantes, mas sabe-se de quanto os sucessivos Governos portugueses, socialistas ou social-democratas, mostraram estranhamente um soberano desdém pelos continuados apelos dos Governos desses países.” Agostinho Neto terá dito, então, que ia bater a outra porta: a do Brasil.

Pois foi exactamente no Brasil que a língua portuguesa tomou forma distinta, falada e escrita e isso deveria constituir motivo de orgulho. Ao contrário do desprezo a que foi votada África. Cuidou-se excessivamente da ideia de língua oficial, descuidando a língua de uso. Artifício útil para palestras, mas máscara de enorme incompetência. Quando hoje se levanta a bandeira dos “250 milhões de falantes”, Brasil e Portugal são contados na íntegra mas África e o Oriente (Índia, Macau e Timor) são esquecidos na realidade dos seus dias, das suas populações, mesmo que sejam lembrados num punhado de intelectuais, governantes e funcionários. Temos, por incompetência e cobiça, os olhos postos nas altas esferas do poder, mas esquecemos a aldeia, a sanzala, a tabanca. Não nos importamos de mentir quando, alardeando o português como “língua de negócios”, tratamos desses negócios naturalmente em inglês, não só no estrangeiro mas também em Portugal, como se o nosso idioma nos envergonhasse, subservientes como sempre ao que nos vem de fora e achamos mais capaz e mais útil. Como queremos que o português seja língua de trabalho no estrangeiro quando nem em Portugal o é? Quem queremos enganar com tais sonhos de expansão, quando os esforços têm sido contrários, no sentido de fechar, minguar, menorizar o português perante outros idiomas, esses verdadeiramente internacionais porque, em lugar de se auto-elogiarem, impõem-se, fazem-se ouvir. Os ingleses não falam da língua, falam a língua. Assim o deviam fazer os portugueses.

Mesmo no universo dito lusófono. Os brasileiros em Portugal falam, orgulhosamente e bem, como o fariam no Brasil. Mas muitos portugueses, mal chegam a terras de Vera Cruz, já estão a tentar esconder o seu sotaque e a “abrasileirar” a fala. Sinal de pequenez congénita, que está na base dessa aberração chamada “acordo ortográfico”, que não só é totalmente inútil do ponto de vista prático (como se vê, para um mesmo acontecimento, global e recente, Portugal fala em Mundial de Futebol e o Brasil em Copa do Mundo, sem que nenhum acordo resolva tais diferenças, nada subtis – ou sutis, como se dirá no Brasil) mas também do ponto de vista da unidade da língua. Foram criadas novas e artificiais diferenças, impostas à fala e não determinadas por esta, ao contrário do que sucedeu noutras reformas ortográficas, de que o português aliás abusa. Sem resultado: ainda há pouco tempo, uma tradutora dizia, num colóquio público, que se antes eram feitos dois documentos para as instâncias internacionais, um para Portugal e outro para o Brasil, depois da vigência oficiosa do acordo (que não é oficial em país algum) continuaram a ser produzidos dois documentos, um para Portugal e outro para o Brasil. África, como de costume, continua arredada destes malabarismos.

Ora devíamos, isso sim, estar a trabalhar no sentido de reconhecer (e aceitar como naturais) as diferenças na evolução do léxico, do vocabulário e das estruturações frásicas nos vários países onde o português é língua oficial, mas também de consignar tais diferenças (vocais ou gráficas) como património comum, em lugar de as escondermos como se fossem “aleijões” da língua e indesejáveis “impurezas”. Isso tem sido feito em livros à margem das academias, como 7 Vozes – Léxico Coloquial do Português Luso-Afro-Brasileiro – Aproximações (Lidel, 1997) ou De Olho na Língua – Palavras de Cá e de Lá (Brasil, 2006), mas tem estado arredado do trabalho dos bonzos das academias, preocupados em misturar o imisturável, ignorando que é na diversidade que reside a força do português, falado ou escrito.

Manuel Ferreira, o africanista, tinha um sonho. Escreveu-o, no livro já citado. Dizia que os africanos (como já o haviam feito os brasileiros) interiorizariam a língua portuguesa “tornando-a totalmente sua. Tão sua que a modificam, a alteram, a adaptam ao universo nacional ou regional, e a transformam, no plano da oralidade e no plano da escrita. Transformações que levarão (levam ou levaram) à caboverdianização, à angolanização, moçambicanização, guineização, santomensização. A língua portuguesa deixa, portanto, de ser de Portugal para ser de todos esses países, além do Brasil, da Galiza, de Timor-Leste, de toda a parte onde ela se fala com expressão numérica e social.” Isto para concluir: “ Se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes: a de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, a variante de Angola, Moçambique, do Brasil, de Goa, da Galiza, de Timor-Leste, a variante de Portugal.”

Estamos, portanto, a fazer o inverso disto. A inchar a língua como a rã da fábula, que estoirou de tanto querer igualar-se ao boi. A festejar a inércia e a premiar a farsa. A língua, que tanto nos deu, pela fala e pela escrita, há-de resistir. Mas desejar-lhe um futuro é desejar-lhe liberdade e diversidade. Ou seja: tudo o que hoje lhe tiramos.

Nuno Pacheco

Jornalista, director-adjunto do PÚBLICO

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Nuno Pacheco, jornal “Público” de 27.06.14. “Links” adicionados por nós. Imagem digitalizada de exemplar impresso (distribuído com a edição do jornal “Público” do mesmo dia) do testamento de D. Afonso II (1214).]

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2 comentários

    • Maria do Carmo Vieira on 28 Junho, 2014 at 16:59
    • Responder

    Gostaria que um acordista reagisse a este artigo de Nuno Pacheco, o que, no entanto, não acontecerá porque não será possível aplicar os chavões com que habitualmente brindam qualquer discussão sobre o AO. Um texto que de forma inteligente mostra a diferença. Bem-haja, Nuno Pacheco!

    Maria do Carmo Vieira

    • Luís Alcobia on 29 Julho, 2014 at 12:03
    • Responder

    Um texto espectacular.

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