«O legado de Vasco Graça Moura» [Jorge Colaço, in “blog” Retrovisor, 06.06.14]

Vasco Graça Moura 1942-2014

Vasco Graça Moura
1942-2014

O legado de Vasco Graça Moura

Agora que a poeira começa a assentar sobre o desaparecimento de Vasco Graça Moura, sobre tudo o que se tem dito e escrito acerca desta personalidade, há duas ou três coisas que apetece remoer.

Ao amplo e merecido consenso público que em volta desta figura maior da cultura portuguesa se suscitou, num primeiro momento justificado pela óbvia proximidade da sua morte, sucederam-se as declarações, os artigos, as crónicas, os comentários de louvor póstumo. E foi aí que começaram a aparecer as frases condicionais e as conjunções adversativas. Os ses e os mas.

Um sortido rico de colunistas encartados tratou de vir a terreiro tirar o chapéu, que decerto não usa, e curvar-se em vénias de amplitude igualmente variada.

Mas, porém, contudo, todavia, no entanto, não obstante.

Uma grande figura apesar de não ser de esquerda. Incompreensível.

E essa incompreensão é já uma reticência, uma sombra, uma prevenção. Uma nódoa na iminência de alastrar.

Pior do que isso, alguns vieram ensinar às crianças e ao povo que o homem foi realmente uma grande figura, muito embora dado ao exagero. Veja-se o que defendeu em política. Veja-se esta coisa do acordo ortográfico. Fúria demasiado grande e sonorosa para assunto tão pouco merecedor. Se era razão para tanto empolamento. Uma vocação de cavaleiro andante perdida em damas de pouca categoria. Mas, claro, isso não tira que foi uma figura importante, então não, poeta e etecetera.

Irra!

A menorização deliberada da intervenção pública de VGM, quer na vertente da acção política, quer sobretudo na oposição ao acordo ortográfico, é um mau serviço prestado à memória do escritor.

Mau serviço porque em ambos os casos, VGM colocou empenhamento e seriedade no que apoiou e no que contrariou. E essas suas posições, ainda que por vezes conjunturais, esses seus combates, são parte inalienável do seu legado intelectual.

A desvalorização da questão do acordo ortográfico como questiúncula irrelevante, como caturrice contrária aos ventos da História e do Progresso, e até como toleima, é um «branqueamento» da sua natureza eminentemente política, e não linguística, e significa o triunfo — mais um — do novo-riquismo nonchalant,que se crê muito moderno e se supõe terrivelmente sofisticado.

Como queria, e cria, o escritor, jornalista e panfletário austríaco, Karl Kraus, talvez seja mesmo verdade que a decadência dos povos se evidencie em primeiro lugar no descaso da língua: nos seus usos, abusos e desusos. João de Araújo Correia, escritor menos obscuro do que muitos que por aí se pavoneiam, escreveu: «Sim, o povo é que faz as línguas. Mas quem as desfaz é a canalha». E, por isso, a resistência, porventura vã, de Vasco Graça Moura ganha um significado maior, político e cultural. Resistência, cuja derradeira linha de defesa é a sua própria obra poética, romanesca e ensaística que brota de amor ciente e paciente por esta tão desconsiderada língua — «no teu próprio país te contaminas/ e é dele essa miséria que te roça./ mas com o que te resta me iluminas».

Jorge Colaço

Nota:

Jorge Colaço é o autor dos blogs Conteúdos em Português Retentiva. Sinto-me honrada e feliz pelo facto de ter escolhido publicar este texto aqui.

[Transcrição integral, incluindo nota da autora do “blog” Retrovisor, de texto da autoria de Jorge Colaço (publicado em 06.06.14).]

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2 comentários

  1. Texto magistral que não deixa indiferente quem não se conforma com “bezerros de ouro” e quem procura algo mais do que chafurdar nos trilhos para onde é empurrado.
    Urge demonstrar que esta luta não é “uma questiúncula irrelevante” de reaccionários bafientos e opositores à modernidade esclarecida e politicamente avant-garde.
    Não podemos deixar cair esta causa no esquecimento e permitir que a “canalha” (a daqui e a do Brasil), embalada pelos sons e as imagens de papagaios vendidos, faça vingar a mixórdia da “escrita oficial”.

    • Maria José Abranches on 7 Junho, 2014 at 16:25
    • Responder

    Que saudades de Vasco Graça Moura, uma voz portuguesa, digna e livre, indomável!

    Logicamente, como este excelente texto salienta, neste “Portugal dos pequeninos” e “modernitos”, a grandeza incomoda: há que reduzi-la, desvirtuá-la, torná-la compatível com a mediocridade reinante. Mas:

    «Não. Não podeis levar tudo. (…)
    Fica dentro de vós a consciência
    De que ali onde o mundo é mais vazio
    Havia um homem. (…)
    (Miguel Torga, “Ficam as sombras…)

    A questão do AO90 mantém-se e é de “natureza eminentemente política”: é pois no campo da política, a todos os níveis, que temos de nos bater contra esta “negociata” traiçoeiramente feita, nas nossas costas e contra nós, pelos políticos que temos vindo a eleger ao longo dos anos!

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