«O ensino do português e o Acordo Ortográfico» [VGM, “DN”, 22.01.14]

Vasco Graça MouraDNlogo

Já tive ocasião de saudar aqui o novo programa de português do ensino secundário. Penso que ele restitui a esta disciplina uma dignidade, uma qualidade e um sentido que ela tinha perdido com as inovações catastróficas preocupadas fundamentalmente com o “eduquês”, ou, como leio no último Expresso, com uma série de contorcionismos retóricos do género de ver os professores “a ter de debitar” as características de cada texto, “aulas reprodutivas”, “pedagogia burocrática”, baixa da “motivação dos alunos”, coisas assim, retumbantes e medonhas, que, além de assegurarem um acesso luminoso ao português, eram evitadas até agora pelo programa em vigor, em que o saber não precisava de ser construído sem um conjunto adequado de leituras ou, sabe-se lá!, não precisava de ser construído de todo, mesmo sem quaisquer leituras.

Ora, se pensarmos que não pode ensinar-se nem estudar-se a língua portuguesa sem um contacto elementar com os seus testemunhos literários principais produzidos ao longo da História, basta percorrer a lista de obras do novo programa para se ver que ele corresponde a um cânone mínimo, repito, mínimo, da nossa literatura e que, mesmo admitindo-se que poderia comportar alternativas, é pedagogicamente indispensável para o estudo em questão. Das críticas que lhe são feitas, de resto, fica-se com a sensação de que o problema está muito mais do lado dos professores do que do lado dos estudantes, estando aqueles, até agora, pelos vistos dispensados de “aulas reprodutivas” e de “pedagogias burocráticas” para atingirem o nível de ensino da língua a que se chegou nesta matéria.

Com estas questões do programa de português para o secundário cruza-se, mais uma vez e inevitavelmente, a do Acordo Ortográfico, objecto de um belo artigo de José Pacheco Pereira no Público de sábado. Em que ortografia vão os nossos grandes autores ser servidos nas escolas? Serão implacavelmente desfigurados pela aplicação dessa coisa sem nome? Ou virá o Governo a tomar providências rápidas para, pelo menos em parte, remediar a situação?

A crítica definitiva do Acordo Ortográfico, nos planos científico, jurídico, político e sociocultural, está feita há muito, pelo que nem sequer vale a pena retomá-la. Mas torna-se necessária uma solução que, de resto, e como Pacheco Pereira também salienta, sairá tanto mais cara ao País quanto mais tarde ela for tomada. Os custos directos e indirectos serão muito altos, mas arriscam-se a tornar-se astronómicos se se continuar a perder tempo. Trata-se de uma questão também política que, pela sua dimensão internacional, requer um particular tacto no seu tratamento e cuja solução, segundo creio, poderia ser encontrada em três planos.

Em primeiro lugar, o Governo poderia negociar com os editores de livro escolar, que não são assim tantos, o abandono do esquema actual de aplicação do Acordo nas edições escolares, tendo em conta o tempo de validade dos livros e manuais existentes e o seu ritmo de substituição.

Entretanto, o Governo suspenderia a aplicação do Acordo Ortográfico decretada por uma Resolução do Conselho de Ministros de ultrajante memória, determinando que, na medida do possível, se voltasse já ao sistema anterior (afinal o ainda vigente, quer se queira quer não…).

Em terceiro lugar, no plano internacional, seriam desencadeadas as medidas necessárias a uma revisão (ver nota de ILC) imediata do Acordo Ortográfico pelos oito países de língua portuguesa (incluindo portanto Timor).

Estas três dimensões do problema não terão nunca uma solução satisfatória, atendendo aos malefícios já provocados e aos que se desenham no horizonte. Mas na situação em que nos encontramos, não se pode esperar que haja muitas outras saídas possíveis e esta seria certamente uma delas.

Para além dos objectivos visados no curto, no médio e no longo prazo, no plano escolar deixaríamos de ter, desde já, os nossos grandes autores barbaramente estropiados por uma grafia abstrusa. E isso, agora que o ensino do português vai mudar no ensino secundário, é de uma importância primordial.

Vasco Graça Moura

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Vasco Graça Moura, publicado no “Diário de Notícias” de 22.01.14. “Links” inseridos por nós.]

Nota: a ILC pela revogação da entrada em vigor do AO90 não preconiza a “revisão” do “acordo ortográfico”, conforme já aqui explicitámos por diversas vezes.

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4 comentários

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    • Maria José Abranches on 23 Janeiro, 2014 at 0:14
    • Responder

    Mais uma vez, a voz prestigiada de Vasco Graça Moura vem agitar publicamente as águas dormentes e podres em que muitos gostariam que se mantivesse a questão do Acordo Ortográfico de 1990. Li, com muito interesse e agrado, os vários artigos que publicou ultimamente sobre o ensino em geral e o ensino do Português em particular. E sinto-me feliz por desta vez se referir explicitamente ao AO90: de facto, como é possível debater o ensino do Português sem pôr em causa a aplicação deste Acordo, cuja insanidade é de dia para dia mais visível? Um Acordo espúrio, desnecessário, nocivo e, eu diria, sacrílego, pelo despudor com que viola a língua e corrompe a nossa cultura, a começar pela literatura que desrespeita e desfigura sem vergonha.
    Suspenda-se o AO90 no ensino, já, é a única coisa decente a fazer!
    E é como professora de Português no secundário (agora reformada), e ex-leitora em Paris, que sinto necessidade de constantemente reagir a esta desastrada estupidez.
    N.B.: Do DN, só leio o VGM, pois recuso ler seja o que for publicado em “acordês”!

    • Fernando Ferreira on 23 Janeiro, 2014 at 15:48
    • Responder

    Boa-tarde,
    Concordo plenamente com o Dr. Vasco Graça Moura, bem assim com todos os que se opõem ao famigerado “aborto” ortográfico.
    Sendo provável que o AO90 seja inconstitucional, porque é que não se suscita no respectivo tribunal, a inconstitucionalidade?
    Os meus cumprimentos,
    Fernando Ferreira

    1. Caro Fernando Ferreira,

      Esse é um dos pressupostos da ILC pela revogação da entrada em vigor do AO90, como abaixo transcrito. Um dos pressupostos, portanto, não o único.

      «Ou seja, e em suma, temos que vigora em Portugal uma lei imposta por Estados estrangeiros e que resulta em exclusivo de um expediente de formulação, já que esta foi alterada do primeiro para o segundo Protocolo Modificativo. Ora, isto vem contrariar flagrantemente, como parece por demais evidente, o espírito, a forma e a letra da própria Constituição da República Portuguesa (CRP), em que se reclama e afirma a soberania nacional, a defesa da identidade e do património nacionais e o estabelecimento de um Estado de direito democrático, sendo que neste, por definição, os cidadãos devem ser consultados em tudo o que diga respeito àqueles pilares fundamentais, à sua personalidade enquanto povo, ao seu legado histórico milenar e aos direitos sobre os valores intemporais e imateriais que enquanto tal definem esse mesmo povo.»
      http://ilcao.com/?page_id=92&page=3

      Cumprimentos.

      JPG

    • José Guimarães on 24 Janeiro, 2014 at 12:46
    • Responder

    O des…acordo orangotangráfico é tão direc…tamente imbecil e prac…ticamente imposto à Nação Portuguesa, que, neste mês de J…aneiro, os artigos e comentários supra deveriam de imediato ter força de Lei…!!!

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