Intervenção do deputado Miguel Tiago em audiência CECC/CNECP, 27.11.13

armasRP

 

[transcrição]

Muito obrigado, senhor presidente.

Eu, em primeiro lugar, gostava de cumprimentar, de agradecer muito, dar nota de que foi, pelo menos para mim, deveras interessante este nosso encontro, quer pelo conteúdo quer pela dimensão política, apesar de estarmos perante um Grupo de Trabalho técnico, mas, de certa forma pelos mesmos motivos que já foram inclusivamente aqui avançados pelo senhor deputado Michael Seufert.

Bem sei que as questões que, da nossa parte, tendo em conta que estamos na Assembleia da República Portuguesa, colocamos são eminentemente políticas e portanto são tratadas na esfera diplomática e política, mas não deixo, ainda assim, de acrescentar algumas notas, até para ilustrar um pouco qual é o ponto de partida.

O PCP, já agora, só para dizer, é o partido que propôs a criação de um Grupo de Trabalho na Assembleia da República para reflectir politicamente sobre o Acordo e é o único partido que não votou favoravelmente o Acordo Ortográfico de 90.

Eu aproveito para dizer que estava em vigor um acordo antes do Acordo Ortográfico de 90. Estava em vigor o acordo de ’45, acordo esse que Portugal cumpriu escrupulosamente apesar das deformações, entre aspas, que aplicou à escrita portuguesa e que, passados poucos meses o Brasil decidiu deixar de aplicar — o que eu nem sequer questiono nem critico.

Aliás, até porque esta discussão tem-se situado por várias vezes e por demasiadas vezes no patamar errado. A maior parte das pessoas que vieram participar no nosso Grupo de Trabalho, que defendem o Acordo ou a direcção que o Acordo serve — portanto, da submissão da escrita à oralidade — são linguistas, a generalidade deles. Portanto, são pessoas que têm uma concepção de engenharia perante a língua. Curiosamente, a linguística não estuda as grafias — estuda a língua. E as grafias não são sequer parte da língua. Portanto, eu posso escrever português em árabe ou posso escrever português em hieróglifos.

Portanto, é curioso que a proposta de acordo seja defendida por aqueles que não estudam a grafia, estudam apenas outras componentes da língua — aliás, isto é errado, porque a grafia não é uma componente da língua — estudam as componentes da língua. Enfim, logo isto sugere as maiores dúvidas. Eu gostava, se o senhor presidente me permitisse, de fazer uma pergunta. Se nós concertarmos um Acordo… mas uma pergunta que implica uma interacção directa.

[Voz de Carlos Enes, indistinta, aparentemente anuindo]

A oralidade brasileira e a oralidade portuguesa são distintas. Partimos desse pressuposto, não é? Eu, por acaso, sou brasileiro de nascimento e portanto conheço bem as diversas diferenças. São distintas. Portanto, se concentrarmos um acordo gráfico, ortográfico em torno da oralidade há uma consequência. E eu pergunto: a nossa oralidade tende a aproximar-se ou a divergir? A oralidade dos povos brasileiro e português tende a…

[Ernani Pimentel]
Não se mexe na oralidade.

[MT]
Não, não não. A sua tendência natural. Não falo dos acordos. A nossa tendência natural é a de se aproximar a oralidade ou que ela divirja?

[EP]
Na realidade já se distanciou bastante.

[MT]
Exactamente. Pronto.

[EP]
Mas o “P”, que vocês pronunciam. A letra “P”, de Paulo, Pereira, a letra P, ela representa uma determinada… não é a pronúncia que ela representa. Ela representa um significado. Não é o som que muda o significado.

[MT]
Certo. Já me deu a resposta. Eu estou a referir-me única e exclusivamente à oralidade. A nossa pronúncia…

[EP]
A nossa proposta não é oralidade.

[MT]
Bem sei. É relacionar a escrita com regras inteligíveis que resultem da oralidade.

[EP]
Sim, isso. Isso.

[MT]
Perfeitamente entendido. Aliás, reconheço desde já que é a proposta mais simplificadora da grafia portuguesa — para um universo restrito. Porque, digo-vos já que as palavras iriam ser radicalmente diferentes escritas aqui do que seriam escritas no Brasil. Porque, por exemplo, se eu quisesse escrever aqui (eu estava há pouco a olhar para ali) “semestre”. O brasileiro pronuncia “semestri”. Se eu quisesse escrever “semestri” eu não sei como é que escrevia. Tinha de pôr um “i” no fim.

[EP]
É porque é o senhor.

[MT]
Não, mas eu estou a dizer, de acordo com a minha pronúncia. Eu ia escrever “semestre” e eu a pôr lá um “s” porquê? Podia pôr um “x”. “Semextre”. É um “x”. Porque é que eu vou ali usar um “s”? Tal como… bem, enfim, enfim. Ou seja, aquilo que é relativamente inteligível de acordo com a vossa oralidade é diferente para a nossa. E portanto… apesar de eu reconhecer, aliás, é verdade, nunca tinha visto uma proposta tão revolucionária do ponto de vista da simplificação e democratização — de acordo com o universo e a sua oralidade. E portanto as palavras tenderiam a divergir na escrita cada vez mais. E eu, isso, para mim, é evidente, cada vez mais escreveríamos de forma diferente palavras iguais. O que, para mim, também, sinceramente não é dramático, tendo em conta que eu acho não é a escrita que une a nossa língua. Não é só a escrita que une a nossa língua.

Portanto, isto era apenas para vos dar nota do nosso ponto de partida para avaliar as consequências políticas do acordo. Para o PCP, haver um acordo ou não haver um acordo não é algo em que cristalizámos. Não é determinante para o futuro da língua que haja um acordo, e se for possível chegar a um acordo que reflicta simultaneamente as preocupações daqueles que lidam com a língua de um lado e do outro também não temos nada que nos diga que não é possível chegar a um acordo.

Agora, sacrificar a escrita portuguesa, tendo em conta as especificidades da nossa oralidade a uma reforma como a que está no acordo, ou uma que siga o mesmo rumo, parece-nos que é, do ponto de vista da política da língua — e não me refiro aqui aos termos técnicos da vossa proposta — do ponto de vista da política da língua, da preservação, até, da língua como instrumento de política estrangeira, parece-nos que seria liquidatário para Portugal.

Portanto, aquilo que registamos politicamente deste nosso encontro, que foi muito útil, parece-me, é que, de facto, há que tomar rapidamente medidas para percebermos que n… se a senhora deputada Gabriela Canavilhas dá o assunto por encerrado parece-me que nem a comunidade brasileira, nem a comunidade legislativa brasileira, nem mesmo em Portugal a comunidade em geral partilha desse pressuposto. E portanto, o processo estará politicamente fechado quando as massas, quando as grafias de ambos os povos estiverem consolidadas e aceites comummente de acordo com regras que sejam inteligíveis. Isso para mim, é o fundamental, é que a regra seja inteligível. Ou seja, que eu, mesmo que nunca tenha visto uma palavra na vida…

[EP]
…saiba lê-la.

[MT]
… saiba lê-la. E mesmo que nunca tenha ouvido uma palavra na vida saiba escrevê-la. Este é o ponto de partida. E, para isso, podemos ir pela oralidade ou podemos ir pela regra fixa e inteligível.

E, a partir daqui eu julgo que, não os linguistas, mas as Academias… e infelizmente Portugal não tem uma Academia, esse é um problema fundamental. Porque o Brasil tem uma Academia. Uma Academia Brasileira das Letras, forte, pujante, com presença na imprensa, com reflexão sobre o tema, e Portugal não tem. Portugal tem a Academia de Ciências de Lisboa, que tem, de acordo com a lei, a capacidade de intervir no domínio da Língua e que, até hoje, interveio, tanto quanto eu saiba, apenas uma vez no domínio da Língua quando se pronunciou sobre a primeira versão do Acordo, ainda nos anos de 90, aliás, antes da versão do acordo de 90. Nunca mais interveio no processo, nunca mais deu uma palavra sobre o processo. O que é natural, para quem conhece a Academia de Ciências de Lisboa, que eu por acaso conheço, tendo em conta que é uma Academia principalmente composta por pessoas das Ciências Naturais e que, portanto, a sua atribuição de poder sobre a Língua é absolutamente… portanto, foi um acto de… não sei… para facilitar o Acordo, provavelmente, atribuiu-se a uma Academia de geólogos, biólogos, físicos, matemáticos, o poder sobre a Língua Portuguesa. É uma coisa, também, estranha, e que resultou de facto, depois, na falta de acompanhamento da Academia, da Universidade e dos cientistas da Língua em Portugal perante o Acordo. O que foi aqui… estou só, apenas, a dizer aquilo que também aqui foi assumido pela própria Academia: que nunca mais intervieram. O resto é opinião minha, portanto, da sua composição e da sua incapacidade natural para a Língua.

[/transcrição]

[Transcrição do depoimento do deputado Miguel Tiago prestado em “reunião de trabalho”, subsequente a audiência conjunta (CECC/CNECP) concedida a dois delegados do Senado brasileiro, na Assembleia da República portuguesa, a 27 de Novembro de 2013. Destaques e “links” de nossa responsabilidade.]

[Gravação integral desta “reunião de trabalho” disponibilizada pela A.R. AQUI.]

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5 comentários

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  1. Mais decidido este deputado. Aplaudo!

  2. [MT]
    « […] o fundamental, é que a regra seja inteligível. Ou seja, que eu, mesmo que nunca tenha visto uma palavra na vida…

    [EP]
    …saiba lê-la.

    [MT]
    … saiba lê-la. E mesmo que nunca tenha ouvido uma palavra na vida saiba escrevê-la. Este é o ponto de partida. E, para isso, podemos ir pela oralidade ou podemos ir pela regra fixa e inteligível. »

    O fundamental — digo eu — é que a escrita e a fala sejam inteligíveis. Saber ler, saber escrever são realmente o ponto de partida. Mas a ler e escrever incapzes todavia de perceber um texto já temos batalhões de ignorantes a sair das escolas. O caso é que apesar de se aperceberem aí de que os analfabetos agora são sempre só e apenas «funcionais» não tiram a devida conclusão: escrita a metro e papaguear ignaro não são fins em si. Entender o que se diz e escreve, sim. Mas continuem, no que toca à escrita (que é o legado que passará aos vindouros) aos pontapés à Etimologia e a despir o léxico das suas marcas subtis de sentido; Pobres de espírito que vão na contramão e nem topam.
    Cumpts.

  3. [MT]
    « […] o fundamental, é que a regra seja inteligível. Ou seja, que eu, mesmo que nunca tenha visto uma palavra na vida…

    [EP]
    …saiba lê-la.

    [MT]
    … saiba lê-la. E mesmo que nunca tenha ouvido uma palavra na vida saiba escrevê-la. Este é o ponto de partida. E, para isso, podemos ir pela oralidade ou podemos ir pela regra fixa e inteligível. »

    O fundamental — digo eu — é que a escrita e a fala sejam inteligíveis. Saber ler, saber escrever são realmente o ponto de partida. Mas a ler e escrever, incapazes todavia de perceber um texto, já temos batalhões de ignorantes a sair das escolas. O caso é que apesar de se aperceberem por aí de que os analfabetos agora são sempre, só e apenas «funcionais», os simplificadores não tiram a devida conclusão: escrita a metro e papaguear ignaro não são fins em si. Entender o que se diga e escreva, sim. Mas continuem, no que toca à escrita (que é o legado que passará aos vindouros) aos pontapés à Etimologia e a despir o léxico das suas marcas subtis de sentido…
    Pobres de espírito que vão na contramão e nem topam.
    Cumpts.

    • Feliciano Alves on 11 Dezembro, 2013 at 15:24
    • Responder

    Aqui deixo uma pérola ortográfica do noticiário das 14h da TVI 24:

    http://i.imgur.com/tKnkiwM.jpg

    O meu comentário é: Porque é que ao removerem as letras “C” ficaram a meio caminho? Deixaram lá outro “C”! Podíamos ter ficado com “ténias de comunicação”!

  4. Caro @Feliciano Alves,

    Partilhámos a imagem que enviou no “mural” da ILC no Facebook.

    Muito obrigado!

    https://www.facebook.com/photo.php?fbid=709879669030460&set=a.140530625965370.21412.118988834786216&type=1

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