Volto ao assunto, porque o assunto continua. Deu-se até o caso de os defensores da coisa andarem por aí mais mudos do que as consoantes a que chamam, toscamente, mudas. E depois de o Brasil ter suspendido o “acordo’ ortográfico para avaliação, muita gente começou a perceber que não há inevitabilidades, nem combates perdidos à partida, apesar das traições dos académicos e da cobardia de certos políticos deste Governo, que se diziam antiacordistas quando estavam na oposição.
Pessoas que achavam que “tanto faz” ou que era muito barulho por nada, começam a dar ouvidos a Eduardo Lourenço e a António Lobo Antunes; a Vasco Graça Moura e a José Gil; a Pacheco Pereira e a Miguel Esteves Cardoso; até a Ricardo Araújo Pereira e João Pereira Coutinho, que devem estar de acordo em poucos assuntos. E talvez essas pessoas tenham lido as seguintes notícias: a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa não aplicou o “acordo”; a Associação Portuguesa de Linguística criticou-o; o PEN Clube recusou-o; a Associação Portuguesa da Editores distanciou-se dele; a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores não o aceitam.
Foi-se tornando claro como água que o “acordo” ortográfico não é um acto cultural. É um acto político como reconheceu aliás o autor moral da iniquidade, Malaca Casteleiro, em declarações a este jornal: “Isto não é uma questão linguística, é uma questão política, uma questão muito importante do ponto de vista da política de língua no âmbito da lusofonia. Esquece-se muitas vezes que, para haver lusofonia, tem de haver medidas concretas e alcance prático e esta é uma “delas”. E que tal “medidas concretas e de alcance prático” como uma CPLP relevante, um Instituto Camões activo, apoios às traduções e aos leitorados, bibliotecas bem equipadas? Era mais útil, menos megalómano, menos nocivo.
Também caiu a tese, assacada em bloco aos antiacordistas, de que o “acordo” é uma “cedência ao Brasil”. Porque entretanto multiplicaram-se as reacções hostis além-Atlântico. O dramaturgo Ariano Suassuna, por exemplo, preferiu sair dos manuais escolares a ver os seus textos republicados em “acordês”. E o grande Millôr Fernandes, antes de morrer, teve ainda tempo para declarar em bom português: “O acordo ortográfico é uma merda”. Um reputado especialista em Camilo Pessanha, Paulo Franchetti, da Universidade Estadual de Campinas, declarou: “O acordo ortográfico é um aleijão. Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano; a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o Governo apressadamente impôs como lei (…). O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos de eficácia duvidosa”. Não vale a pena tentar apresentar os antiacordistas como “antibrasileiros”, porque há bem mais brasileiros antiacordistas.
Infelizmente, muitos Portuguesas pregam o aleijão como se fosse um unguento. O actual Presidente da República disse um dia que o português de Portugal se arriscava a tornar-se uma espécie de latim, como se uma variante falada por milhões de indivíduos equivalesse a uma língua morta. Já a grotesca “Nota Explicativa” ao “acordo” explica que os portugueses estão “teimosamente” apegados à sua grafia, dando-nos reguadas de mestre-escola pela nossa impertinência cultural. Para acabar com tal desfaçatez, uns quantos sábios da Academia das Ciências de Lisboa impuseram aos luso-falantes a sua aberrante legislação, quando nos países onde existem Academias realmente prestigiadas vigoram recomendações não vinculativas, dicionários excelentes, consensos transcontinentais. Mas os políticos e os académicos não se contentam com uma língua que muda espontânea, inevitável e constantemente; querem mudanças por decreto, como déspotas iluminados que são.
Fizeram o “acordo” ignorando os pareceres técnicos divergentes e a opinião de agentes qualificados da língua. E agora assustam-se com o levantamento cívico. Perceberam que fracassaram, que nem todos nos calamos, que estivemos atentos às consequências. O “acordo” quis unificar a língua e multiplicou duplas grafias, facultatividades, cláusulas de excepção, ‘opting outs’. Quis simplificar o ensino e cortou as palavras da sua raiz etimológica, da sua família, dificultando uma compreensão de conjunto. Quis ser um acordo “lusófono” e pouco mais é do que um contrato luso-brasileiro, do qual os brasileiros duvidam. E agora ainda passámos pela humilhação de ter o oficioso “Jornal de Angola” a lembrar-nos que o “étimo latino” ajuda a compreender o percurso de uma palavra.
Este acordo não serve, não presta, é preciso denunciá-lo ou, no mínimo, revê-lo em profundidade. É preciso acabar com aberrações como a recessiva “receção” e o tauromáquico “espetador” e a lasciva “arquiteta”. E com a fantasia de que as consoantes que abrem as vogais são “mudas”. E com a ideia de que a escrita é uma transcrição da fonética. Introduzam o xis, o ípsilon e o zê, escrevam Janeiro e Inverno com minúscula, mas deixem em paz a língua portuguesa.
(As citações são retiradas de “Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico”, de Pedro Correia, edição Guerra e Paz.)
pedromexia@gmail.com
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Pedro Mexia, publicado no semanário “Expresso” de 25.05.13. “Link” disponível apenas para assinantes do jornal “online”. “Links” no texto inseridos por nós.]
10 comentários
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Bravo, Pedro Mexia, disse tudo! a lingua portuguesa agradece.
Obrigada, Pedro Mexia, pela inteligência e pelo carácter incisivo do seu texto. Chamemos os bois pelos nomes, e sejamos claros: este “acordo” que instaurou a desortografia, e mais, um verdadeiro caos ortográfico para nosso pesadelo é, de facto, um aleijão. Haja vontade política para o anular liminarmente. E isso tem de ser feito no Parlamento, porque foi o Parlamento que, levianamente e com a ignorância dos tolos, o aprovou em 2008. Uma questão política, de facto.
«É preciso acabar com aberrações como a recessiva “receção” e o tauromáquico “espetador” e a lasciva “arquiteta”.» Excelente! No pormenor, e no geral. E ainda bem que há muitos «teimosos»…
O comentário mais feliz é o de Millôr Fernandes. Da minha lavra apenas acrescentaria que todos os intervenientes na sua feitura e promulgação ainda conseguem ser uma merda muito maior. Desde sempre o repudiei e continuarei a repudiar.
MARAVILHOSO Pedro Mexia, finalmente alguém a falar por nós quando afirma: *Não vale a pena tentar apresentar os antiacordistas como “antibrasileiros”, porque há bem mais brasileiros antiacordistas*. E não será demais repetir, só mais esta vez, a declaração do professor da Unicamp: *O AO é um ALEIJÃO*: “Linguisticamente malfeito, politicamente mal pensado, socialmente mal justificado e finalmente mal implementado. Foi conduzido, aqui no Brasil, de modo palaciano; a universidade não foi consultada, nem teve participação nos debates (se é que houve debates além dos que talvez ocorram durante o chá da tarde na Academia Brasileira de Letras), e o Governo apressadamente impôs como lei (…). O resultado foi uma norma cheia de buracos e defeitos de eficácia duvidosa”.
Excelente missiva para todos quanto amam a lingua portuguesa e não querem adaptações traiçoeiras e sem nexo ou sentido.
“Bravo” é a todos nós que defendemos a sua abolição desde o início e nunca cedemos em circunstância alguma–nem vamos ceder nunca.
Subscrevo por inteiro as palavras da Professora Ana Isabel Buescu! A responsabilidade do Parlamento em todo este processo é incontornável e tem agora uma oportunidade de se retractar, aproveitando o Grupo de Trabalho da 8ª Comissão, criado por proposta do grupo parlamentar do PCP, aprovada por unanimidade na referida Comissão. O Parlamento não pode continuar a fazer de contas que o AO90 é aceite pacificamente pelos cidadãos eleitores! Nós não queremos esse “aleijão” que nos estropia a língua e fere irremediavelmente a nossa identidade cultural!
Excelente texto. Servirá, certamente, de uma boa luneta para correcção de visões, política e socialmente, tendenciosas e pouco esclarecidas.
Magistrado alega que as “actas não são uma forma do verbo atar” e que “os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso”.
“O juiz Rui Teixeira, que conduziu a instrução do processo ‘Casa Pia’ e que agora está colocado no Tribunal de Torres Vedras, não quer os pareceres técnicos sociais com o novo Acordo Ortográfico”, revela o Correio da Manhã na edição de hoje.
O magistrado enviou uma nota à Direcção Geral de Reinserção Social (DGRS) em Abril onde se podia ler, que esta “‘fica advertida que deverá apresentar as peças em Língua Portuguesa e sem erros ortográficos decorrentes da aplicação da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011 (…) a qual apenas vincula o Governo e não os tribunais'”.
A DGRS pediu um esclarecimento ao juiz, tendo este respondido que a “‘Língua Portuguesa não é resultante de um tal «acordo ortográfico» que o Governo quis impor aos seus serviços’, diz o juiz, acrescentando que ‘nos tribunais, pelo menos nestes, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário'”.