No mesmo dia 9 de Fevereiro, Jorge Miranda, no Público, e Carlos Reis, no Expresso, voltam a falar do Acordo Ortográfico. Com ambos tenho mantido amigáveis polémicas.
Jorge Miranda, que aborda com pertinência a questão do direito à língua e da sua protecção constitucional, refere o AO quase incidentalmente, para dizer que o preferiria “na medida em que possa contribuir para a afirmação internacional da língua portuguesa”, mas é de registar que nada diz quanto ao facto de o AO não ter entrado ainda em vigor e ser portanto inaplicável.
Quanto a Carlos Reis, não me surpreende que o seu artigo (“Acordo ortográfico: um homem mordeu um cão”) seja de clara defesa das pretensas vantagens do AO. Mas já me surpreende a sua interpretação sem sobressaltos da atitude de Dilma Rousseff ao prorrogar o prazo para o mesmo ser aplicado.
Somos informados de que o autor viveu um ano no Brasil e assistiu à aplicação sem problemas do AO um pouco por toda a parte, uma vez que testemunha que lá “o AO está bem e recomenda-se”.
Tenho de concluir que Carlos Reis entretanto não teve tempo para ler os jornais brasileiros dos últimos meses, nomeadamente quando se fizeram eco reiterado de protestos de políticos e de professores que exigiam a suspensão do AO para que se procedesse a uma revisão, e que menos tempo ainda teve para compreender que existe um evidente nexo de causalidade lógica e política entre essas exigências e a atitude da Presidente brasileira. Nessa carência de informação, é natural que ele se dispense de conjecturar que o AO nunca mais ficará na mesma e de tirar as consequências relevantes dessa conjectura. Mas é pena.
É de esperar que, encontrando-se agora em Portugal (felizmente para aquelas áreas académicas em que é um ilustre especialista), ele possa testemunhar que a maneira como se processa a pretensa aplicação do AO entre nós contribui para afastar a grafia do português de Portugal da do português do Brasil e da do português de outras paragens. Esse facto torna inadmissível a afirmação que faz de que “para atalhar a imperfeição [que afecta as línguas como produtos humanos] regulamos a língua até onde isso é possível sem que tal signifique mutilar singularidades”. As barbaridades a que tem conduzido a pretensa aplicação do AO por força da adopção de vocabulários e correctores ortográficos que não têm nada a ver com um vocabulário ortográfico comum mostram precisamente até onde vai a mutilação destemperada das singularidades, perpetrada em nome de uma unidade ortográfica ipso facto tornada inviável. Será isso que estabiliza o idioma?
Parece-me extraordinário que o autor não se preocupe com as muitas objecções científicas que o AO suscitou; que não pondere nem de perto nem de longe a impossibilidade jurídica de o AO ser considerado em vigor; que considere estar já em vias de ser suprida a falta do vocabulário ortográfico comum exigido pelo AO; e, ainda mais extraordinário, que queira extrair um argumento, de base meramente quantitativa, da situação actual para justificar a sua aplicação generalizada, ao dizer que tantos jornais e revistas, tantas estações de televisão, tantas instâncias oficiais, tantos sites, usavam o AO em meados de 2012.
A este respeito, seria interessante quantificar quantos autores de artigos e comentários na imprensa escrita exigem que eles sejam apresentados excluindo a aplicação do AO. E quantas pessoas, em especial professores, pais e responsáveis pela educação, protestam, subscrevem abaixo-assinados, pedem com urgência o fim do presente estado de coisas.
Enfim, tanto quanto sei, em Moçambique não ocorreu ainda a tramitação necessária para a ratificação. E quanto a Angola, não parece que sejam argumentos idóneos a favor dessa aplicação, nem a previsão de que Angola “acabará por aderir”, nem a piada quanto a “esse país que alguns agora olham como um modelo de sensata democracia cultural”.
Na verdade, é Portugal que tem telhados de vidro: a tentativa de imposição de um AO que não está em vigor, contra todas as regras do Estado de Direito e da Constituição, é que é pouco exemplar em matéria de democracia e de sensatez.
Meu caro Carlos Reis, no caso vertente não foi um homem que mordeu um cão. O AO é que mordeu a língua…
Vasco Graça Moura
[Transcrição integral de artigo de opinião, da autoria de Vasco Graça Moura, publicado no “Diário de Notícias” de 13 de Fevereiro de 2013.]
7 comentários
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Quem anda a morder os homens – e sobretudo, a língua de todos os portugueses – são indivíduos como este Carlos Reis. Carlos Reis que olha para o Brasil como aquele cão do His Master’s Voice olha para o gramofone diante de si. Com deslumbramento e fidelidade canina… não vá A Voz do Dono abandoná-lo.
Este Reis é detestável. Um devoto do avental sem cozinhado que preste. Não me admirava que esta tropelia toda com o idioma viesse de algo tão mesquinho como birrinhas de confrades aventaleiros por causa do português das receitas maçónicas.
Não me admirava nadinha.
Acabei de ler o artigo de Carlos Reis, em relação ao qual fiquei curioso.
Impressiona o registo usado: não responde a um dos inúmeros argumentos contra este AO90, baseia o seu discurso em impressões pessoais (“O acordo no Brasil está bem e recomenda-se”… deve ser por isso que adiaram a entrada em vigor?) e, claro tenta ridicularizar de forma grosseira e ignorante a luta contra o AO 90(a luta o AO90 não se “reacendeu”, está permanentemente acesa há muito tempo, apesar da arrogância e estupidez de que decide).
Os poucos argumentos que utiliza são facciosos. Assume ele, que na sua imensa sabedoria lhe compete “regular a língua até onde isso é possível, sem que tal signifique mutilar singularidades”.
É muita arrogância e pobreza de espírito.
Brilhante e com elegância a resposta de Vasco Graça Moura.
No dia em que, como ferverosamente espero, as nossas autoridades arrepiarem caminho e esta desgraça for travada, teremos uma enorme dívida de gratidão para com VGM. Obrigado!
Acerca de aventais, alguém me pode esclarecer num ponto? Tenho visto algumas alusões, mais ou menos veladas, acerca da História do acordismo, remontando a 1900 e pouco, e a ligações, já então, aos “chefs” em questão. Alguém me poderá dar umas luzes sobre isto, ou onde poderei encontrar algo sobre isto? Já tentei “googlar” de várias maneiras, mas nada aparece.
O Doutor Carlos Reis, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e um dos mais destacados defensores do Acordo Ortográfico (coincidência que nunca deixará de me causar espécie, porque sempre pensei que fossem condições mutuamente exclusivas), assina no Expresso de 9 de Fevereiro de 2013 um artigo triunfalista sobre o cada vez mais resoluto avanço do Acordo Ortográfico. É natural: combateu aquele combate e o seu lado da trincheira venceu — por isso canta vitória. Mas fá-lo com uma pontinha de pesporrência que não sei se lhe fica bem.
Sobretudo é pena que não diga que essa vitória foi conseguida à custa de algumas batotas. Cito duas (podia citar mais):
A batota da sobreposição ilegal de uma Resolução do Conselho de Ministros a um Decreto; e a batota da Microsoft, que abusivamente instalou nos computadores um conversor impondo o execrando e execrado Acordo, que sublinha (isto é, censura) a vermelho a ‘velha’ ortografia, sem curar de saber se os usuários estavam nisso interessados.
Com golpadas destas, é fácil ganhar.