Carta ao Primeiro-Ministro [por António de Macedo, cineasta]

«Enviei a missiva ao Primeiro-Ministro no dia 13 de Junho, dia de Santo António, figura que simboliza bem, pelo que dela tem sido feito em Portugal, o estado lamacento (irremediável?) em que este país se vem atascando.

A esmagadora maioria dos Portugueses só conhece de Santo António a falsa mitografia folclórica do santo namoradeiro que se divertia a quebrar bilhas às moças nas fontes, ao passo que o verdadeiro Santo António, desconhecido do povo português, foi um dos maiores eruditos de Filosofia Medieval, um dos 33 Doutores da Igreja a par de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila, cujo pensamento original tem sido exaustivamente analisado e investigado por conceituados estudiosos internacionais, e cujos textos e sermões (escritos em latim) estão traduzidos desde o século XVIII em todas as línguas cultas… – menos em português!

Em português só conseguiu ser publicado em 1987 graças aos persistentes e isolados esforços do Padre Henrique Rema, douto especialista em Santo António que conheci pessoalmente e com quem trabalhei, e que durante mais de quinze anos batalhou junto de editoras com responsabilidades como a Imprensa Nacional ou a Fundação Gulbenkian, sem êxito, até que em 1987 a Lello, do Porto, lá condescendeu em publicar a edição bilingue (latim/português) dessa preciosidade nacional.

Naquele inenarrável concurso da RTP “Os Grandes Portugueses” (2006-2007), sujeito ao voto popular, Santo António nem sequer vem mencionado entre os 10 finalistas.

Vem este aparente desvio a talho de foice para reiterar que a escolha do dia 13 de Junho não foi inocente: para mim o caso de Santo António simboliza e resume tristemente o estado de miséria cultural de um povo que se compraz na auto-aniquilação, desconhecendo ou mesmo desprezando o que deveria torná-lo grande e enaltecer-lhe a auto-estima. Pelo contrário, parece que os Portugueses sentem uma necessidade doentia de aderirem ao que mais pode aviltá-los e descaracterizá-los. O desleixo pela língua Mátria, evidenciado pela acrítica e progressiva aceitação do AO90 (salvo uma ou outra honrosa excepção), não precisa infelizmente de mais comentários.»

António de Macedo, em mensagem de email para a ILC AO90.

———- Mensagem encaminhada ———-
De: Antonio de Macedo
Data: 13 de Junho de 2012 13:02
Assunto: Oportunidade
Para: Gabinete do Primeiro-Ministro

Exm.º Senhor

PRIMEIRO-MINISTRO

Ao cabo de 81 anos de penar por este mundo, e sobretudo pelas tortuosas vicissitudes de Portugal, venho junto de V. Ex.ª solicitar um pouco da sua atenção, caso lhe interesse acolher alguma da experiência de um causticado octogenário “enriquecido por muitas batalhas perdidas – discipular maneira de se lhes descobrir o verdadeiro ganho”, como digo no prefácio de um livro meu (Da Essência da Libertação, IN-CM, Lisboa 2002).

Vem isto a propósito da cancerígena proliferação do novo Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) cujas metástases ameaçam sufocar irremediavelmente a expressão escrita da língua Mátria deste país, língua que se disseminou pelos continentes do planeta onde foi adquirindo tonalidades e matizes distintos ao contacto com as diferentes culturas e geografias. E digo língua Mátria, e não língua Pátria, para me servir de uma feliz expressão da saudosa, vibrante e combativa Natália Correia, extraordinária mulher de letras e de cultura, de quem tive o privilégio de ser admirador e amigo pessoal.

Tinha eu 43 anos quando sobreveio a Revolução de 25 de Abril de 1974, e muito havia eu sofrido sob o regime do Estado Novo com os permanentes agravos por parte das repressões e da censura; dos quatro filmes de longa-metragem que até então fizera, todos sofreram cortes censóreos com o inevitável cortejo de esgotantes confrontos com os censores a que tais violências obrigavam, e um dos filmes foi totalmente interdito.

Pior que isso, porém, era a vergonha que eu tinha de suportar quando me deslocava a festivais internacionais de cinema e os cineastas franceses, ingleses ou americanos se referiam a Portugal com complacente sarcasmo – irrespondível ainda por cima -, quando motejavam o atraso, a iliteracia, a probição de as mulheres usarem biquini nas praias, a exigência de uma licença do Estado para se usar isqueiro (licença que custava 40 escudos por ano, como cheguei a pagar), a mordaça moral, o servilismo de um povo que se deixava sucumbir sem reagir, a própria censura que tudo camuflava incluso os suicídios – Portugal era o único país no mundo onde ninguém se suicidava! -, além da “vantagem” de Portugal ser o país menos poluído da Europa devido ao exíguo número das suas indústrias…

Com o 25 de Abril respirou-se, e – pensava eu – tudo isso teria mudado para sempre.

Mas mudou, de facto?

Corremos o risco de estar a cair numa ignomínia que a História julgará.

Nunca me passou pela cabeça que ao cabo de tantos anos fosse possível ler um dia, em jornais estrangeiros, coisas como estas: “Portugal adopts Brazilian spellings” (Chicago Tribune), “Brazilian devours its mother tongue” (Gulf Stream Blues), “Portugal: le parlement approuve le rapprochement du Portugais avec brésilian” (Matinternet), “Le créole brésilien remplace officiellement le portugais au Portugal” (Témoignages), “In Portogallo si parlerá brasiliano” (Corriere della Sera), “Portuguese now more Brazilian and less… Portuguese” (Oz Traveller), “Brazil gives back to Portugal” (The China Post), etc.

Confesso que nunca senti tanta vergonha de ser português, desde os tempos de Salazar, como ao ler isto nos meios de comunicação social estrangeiros!

Não lhe peço, Senhor Primeiro-Ministro, que em penitência dos erros do seu antecessor José Sócrates (para não falar noutros culpados) se apresente descalço e de baraço ao pescoço como Egas Moniz, ou que dê de penhor as honradas barbas como o vice-rei da Índia D. João de Castro, figuras da História de Portugal de incomparável estatura na afirmação da sua dignidade de Portugueses. Apenas lhe solicito que, assim como corrigiu algumas das disposições erróneas do seu antecessor, corrija mais esta que ele substanciou com a infeliz Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, diploma que a maioria dos Portugueses de indiscutível mérito intelectual e cultural repudia, e cuja suspensão ou revogação será historicamente bem-vinda – logo que V. Ex.ª, com a sua autoridade e responsabilidade de Primeiro-Ministro, promova essa desejável suspensão ou revogação.

Aproxima-se o próximo ano lectivo que terá início em Setembro, e instantemente lhe peço, Senhor Primeiro-Ministro, em face da desorientação e dos transtornos verificados nas escolas, com graves reflexos no desempenho dos alunos, que considere aquele limite antes que o desastre se torne tragicamente irreparável.

Esperançado na boa compreensão e na decisiva acção de V. Ex.ª, permito-me subscrever-me,

Com os meus melhores cumprimentos.

António de Macedo

Ex-cineasta, escritor, professor universitário

Doutorado em Sociologia da Cultura (FCSH-UNL)

http://en.wikipedia.org/wiki/Antonio_de_Macedo

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21 comentários

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  1. Bravo!

    • João de Jesus on 18 Junho, 2012 at 14:50
    • Responder

    Será que V. Exª endereçou a sua pertinente e brilhante exposição ao governante mais sensível e atento às violentas agressões que puseram moribunda a Língua Pátria?
    Eu, atrever-me-ei a duvidar. Certamente estará mais interessado e empenhado em cumprir as directizes da Troyka e inventar um novo imposto que contribua para que o pobre povo de Portugal, fique ainda mais depauperado e mudo! E para um Povo mudo, o purismo da Língua, será um pormenor de pouca importância…..

    • João Teixeira on 18 Junho, 2012 at 15:18
    • Responder

    Parabens pela sua iniciativa, à qual dou o meu apoio.

    Os autores desta reforma que o vocabulário matemático (grande parte dele tem raiz latina em muitas línguas, incluindo o inglês e mesmo o alemão) passa a ter uma grafia que o afasta grandemente da sua grafia nessas outras línguas. Exemplo:

    vector (português), vector (espanhol), vector (inglês), vetor (AO)
    rectângulo (português), rectángulo (espanhol), rectangle (inglês), retângulo (AO)

    De facto, a Matemática é uma linguagem universal. Quanto mais próxima estiver o português do latim mais facilmente poderemos ler um texto matemático escrito noutra língua. O mesmo se passa com as outras ciências e com a tecnologia. Noto que o vocabulário científico e técnico forma uma parte substâncial do léxico.

    João Teixeira

  2. Parabéns ao autor!

    • Claudia Figueiredo on 18 Junho, 2012 at 17:01
    • Responder

    BRAVO!!

    • Alda M. Maia on 18 Junho, 2012 at 19:56
    • Responder

    Permito-me, à guisa de comentário, inserir a tradução do que foi publicado no Corriere Della Sera.

    EM PORTUGAL FALAR-SE-Á BRASILEIRO
    (In Portogallo si parlerà «brasiliano»)
    O Parlamento de Lisboa aprova o projecto: adequa-se a língua ao padrão da ex-colónia.

    Rio de Janeiro – É a língua dos enigmas de José Saramago ou sussurrada ao som pungente do fado; mas é, sobretudo, gritada pelas mulatas de Jorge Amado e que se tornou bossa nova por Vinicius de Moraes.
    Só dez milhões de pessoas falam português onde a língua nasceu, enquanto no resto do mundo são 220, em grande parte brasileiros: era fatal que quem deveria sucumbir, no processo de unificação da língua, fosse precisamente Portugal. E assim aconteceu.
    Com uma certa fadiga, sexta-feira o Parlamento de Lisboa aprovou um acordo ortográfico entre os oito países onde se fala português. Além de Portugal e Brasil, existem as ex-colónias de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor Leste, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Nada de verdadeiramente radical – as mudanças dizem respeito só a uma parte da ortografia – mas Portugal deixou decorrer uma dezena de anos, antes de ceder.
    Quase todas as modificações desviam as regras para o uso brasileiro da língua, bastante simplificado desde séculos.

    Os puristas do idioma opuseram-se, até fim, à capitulação, entregando uma petição de 33 000 mil assinaturas aos deputados de Lisboa, a fim de que a reforma fosse anulada. Mas nada a fazer.
    Há anos, quando uma comissão fixou as novas regras, decidiu-se que a aplicação partiria com a aprovação de apenas três países, entre os quais não necessariamente Portugal. Em seguida, porém, foi considerado um dever esperar o sim português.
    “Somos os pais da língua portuguesa, não os seus patrões” – disse o deputado Nuno Melo, no momento de votar.
    No Brasil, com um certo orgulho, comemorou-se a viragem, recordando que aconteceu no ano do ducentésimo aniversário da transferência da Corte real de Lisboa para o Rio de Janeiro, fugindo de Napoleão em 1808. A colónia que se tornou império.

    As modificações ortográficas dizem respeito, sobretudo, aos acentos e hífenes e à eliminação de letras que, na pronúncia corrente, foram desaparecendo. Um exemplo, sobre todas, é a palavra «selecção» que se escreverá, em qualquer lugar, “seleção”, como os brasileiros chamam, aliás, à própria equipa nacional.
    Quem deve mudar mais é Portugal, com 1,4 por cento das palavras, contra o,4 do Brasil. No que concerne alguns vocábulos, na falta de acordo, as diferenças nos dois lados do Atlântico manter-se-ão. Assim como, obviamente, na língua de todos os dias, a qual difere bastante mais do que a ortográfica. É provável que traduções e dobragens permaneçam separadas, como já acontece agora.
    Na TV, pelo contrário, e hegemonia da telenovela brasileira não deixa vias de fuga: há dezenas de anos que os portugueses se habituaram, diversas horas por dia, ao sotaque cantado da ex-colónia.

    Os fautores da reforma sustentam que os benefícios serão notáveis: desde a uniformidade na investigação via Internet à linguagem jurídica internacional.
    Uma antiga aspiração lusófona é de ver a própria língua entre as línguas oficiais na ONU. Actualmente são seis: inglês, mandarim, árabe, francês, russo e espanhol.
    Quem, pelo contrário, não parece apaixonar-se pelo tema é José saramago que afirmou: “Eu continuarei a escrever como sempre. Depois, será um problema dos revisores das provas”.
    Rocco Cotroneo
    CORRIERE DELLA SERA – 18 Maio 2008

    • Parabéns e uma dúvida on 19 Junho, 2012 at 15:50
    • Responder

    Parabéns ao ilustre senhor pela bela carta e pela bela iniciativa!

    Aproveito este espaço para fazer uma pergunta: alguém por aqui me poderá esclarecer porque é que quando faço uma pesquisa no motor da Google já não aparece, na barra esquerda, a opção pesquisar “páginas de Portugal”, e só aparece opção procurar “páginas em português”?

  3. @ Parabéns
    Já tinha reparado. Deve ser porque a cáfila de dromedários que abocanharam a chucha do Estado andam à cata de chuchar no Bataclan. Está aí essa mansa notícia do Corriere della Sera que bem o diz: «capitulação». Agora agente é todo um imenso Brasil, né?
    Angola não foi nisso, notou?!…

    Se quiser páginas de Portugal no Google experimente acrescentar «site:.pt» às pesquisas.
    Cumpts.

    • Jorge Teixeira on 19 Junho, 2012 at 19:21
    • Responder

    Agradeço ao sr. António Macedo a sua iniciativa. Infelizmente já ouvi o sr. Primeiro-ministro na Assembleia da República defender o AO90 por isso não deposito esperanças na capacidade do bom-senso penetrar no sr. Primeiro-ministro quanto ao AO90.

    PS: Não trabalho para a google e embora não me pareça assumido, aparenta preparar-se para cobrir apenas o português do Brasil nos seus produtos. Há vários sinais disso nos produtos web e no Android.

    • Vitorino Jorge on 19 Junho, 2012 at 19:42
    • Responder

    Considero o acordo ortográfico uma afronta e um atentado à democracia atendendo à forma como foi aprovado.
    Por isto, louvo naturalmente a iniciativa.
    Ainda que frontais, inteligentes e corajosas, as iniciativas não têm tido o eco que, em meu entender, merecem.
    Acho que a força- ou a sua ausência – que for colocada na luta contra este disparatado acordo servirá para mostrar qual o nível de consciência e de dignidade do nosso povo.

  4. «…a cáfila de dromedários que abocanharam a chucha do Estado anda à cata de…», digo

    • Paulo Assunção on 19 Junho, 2012 at 22:54
    • Responder

    É preciso repudiar este aborto ortográfico de todas as formas. Não podemos capitular a este acto neo-colonialista, a esta vexação humilhante que meia dúzia de políticos analfabetos que temos nos querem fazer engolir.

    Vergonha, o que se está a passar é uma vergonha. Mete nojo ver a nossa língua e a nossa ortografia desfigurada desta forma.

    Bem haja pela sua carta e pela coragem neste país de carneiros amestrados.

  5. Agradeço a resposta e sugestão do Bic Laranja: «site:.pt» será.
    Cumpts

  6. … e a sugestão do Bic Laranja funciona mesmo! Já não tenho de apanhar as bofetadas dos sinônimos, antônimos, cotidianos, moscous, européia, etc., até encontrar uma página pt redigida em pt de facto, ainda que acordizado : ( , ou não.
    Uma vez mais, os meus agradecimentos.

    • Jorge Mendes on 20 Junho, 2012 at 17:16
    • Responder

    Se estes sabem tanto de lingua Mátria , como Cavaco sabe de Camões e dos 12 (????) cantos dos Lusiadas, não vamos longe. Mas não insistam muito: Coelho, se o deixarem ,põe-nos a pedir esmola ,em Alemão, ( lingua que tanto ama) á porta do ” Reichstag”

    • Jorge Mendes on 20 Junho, 2012 at 17:19
    • Responder

    Obrigado António Macedo. A sua luta, a nossa luta, é inglória e perdida.Outros valores mais altos se “alevantam”.

    • Maria José Abranches on 20 Junho, 2012 at 18:40
    • Responder

    Muito obrigada, Sr. Professor, pelo seu belo e vibrante apelo ao Primeiro-Ministro de Portugal, em defesa da nossa “língua Mátria”! Esse texto, testemunho de uma vida ao serviço da cultura e da dignidade de ser Português, confirma também a “fatalidade” de ser Português: a nossa predisposição atávica para sermos governados por quem nos ignora, nos desrespeita e nos envergonha!

    • Jorge Teixeira on 21 Junho, 2012 at 17:35
    • Responder

    @Jorge Mendes: a nossa luta só será perdida se os partidos chumbarem a nossa ILC! E se o fizerem ficar-se-á a saber que vivemos em ditadura!

    • Pedro Marques on 21 Junho, 2012 at 20:02
    • Responder

    Jorge Teixeira, e não vivemos já???

  7. Parabéns nosso Querido António Macedo!

    • Fernando Castro on 24 Junho, 2012 at 13:34
    • Responder

    Já um ministro da ditadura disse a Salazar, quando este se viu pressionado a inventar a Campanha de Educação de Adultos para minorar a vergonhosa percentagem de analfabetismo em Portugal, já na segunda metade do século XX, “isso ensine-os a ler e a escrever e depois ature-os”.
    Na actualidade vemos muitos dos responsáveis governativos, nos areópagos internacionais, a discursar ou a conversar, amenamente, com congéneres estrangeiros, sem intérprete ao lado. Seguramente estarão a exibir o seu excelente inglês aprendido no British Council, o francês no Lycée Français Charles Lepierre, mesmo o alemão no Goethe Institut, já que o espanhol terá sido aprendido nas muitas idas a Espanha, talvez numas económicas férias em Marbella ou num iate em Palma de Mallorca. Assim se dignifica a língua portuguesa.
    Será que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, semianalfabeto, como alguns dos seus detractores o designavam, alguma vez falou outro idioma que não o seu, na ONU, nas reuniões do G-20, e quantas outras?
    Nunca deixemos de lutar pela língua portuguesa actual que ela evoluirá naturalmente e não por decreto.

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