«É agora que nos vamos ver livres da receção?» [Nuno Pacheco, PÚBLICO, 13/05/2012]

NP13052012O truque é simples. Num restaurante de má fama, um cliente refilão mas pouco astuto queixa-se do bife. Que está mal passado, que assim não o come nem paga, era o que faltava! O empregado encolhe os ombros, leva o prato, vira o bife ao contrário e trá-lo outra vez. O cliente despacha-o, voraz, satisfeitíssimo por ter reclamado. Nada mudou: nem o restaurante, nem o cliente, nem o bife. A ilusão é uma arma temível, não é?

Vem isto a propósito de uma carta, já divulgada onlinecitada, pelo menos, no weblog do escritor David Soares, Cadernos de Daath, e está na íntegra em cedilha.net/ilcao), que o cineasta, escritor e professor António de Macedo (sim, esse mesmo, o de Sete Balas para Selma, A Promessa ou O Princípio da Sabedoria) enviou por estes dias ao secretário de Estado da Cultura, sem obter resposta. O tema é o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) e a dúvida ali colocada é pertinente. Ora leiam:

“Segundo o AO90, os Brasileiros podem continuar a escrever (como sempre escreveram pela reforma ortográfica brasileira de 1943), por exemplo: acepção, aspecto, conjectura, perspectiva, decepção, detectar, excepcional, tactear, retrospectiva, percepção, intersectar, concepção, imperceptível, respectivo, recepção, susceptível, táctico
Em Portugal, com o mesmo AO90, seremos obrigados a escrever: aceção, aspeto, conjetura, perspetiva, deceção, detetar, excecional, tatear, retrospetiva, perceção, intersetar, conceção, impercetível, respetivo, receção, suscetível, tático…

Ora, a ideia não era uniformizar? Será que os Brasileiros não se vão rir quando virem, em escritos de Portugal, aberrações como deceção, recetivo, perceção…?”

No comentário que escreveu depois, como adenda à carta, António de Macedo conclui: “Ou seja, iguala-se de um lado (atual, direção, exceção, elétrico, objetivo, etc.) e desiguala-se do outro, como nos exemplos que citei na minha mensagem ao SEC. No fundo eu estava perguntando, por outras palavras, o que é que lucrámos com isto, Portugueses e Brasileiros, perguntando também, implicitamente, se não seria mais simples deixar tudo na mesma — ao menos, já estávamos familiarizados com as igualizações e as desigualizações, em vez de termos de aprender outras novas sem nenhuma vantagem óbvia.” Seguindo o raciocínio de António de Macedo, peguemos num, dois, três, quatro, uma dúzia de livros brasileiros recentes. Não é difícil ler, a par de ato ou fato (que cá se mantém facto, já agora, numa deliciosa “ortografia comum”), palavras como aspecto, perspectiva, caracterizou, facção, respectivamente, etc. Essas mesmas que o unificador acordo quer que, SÓ EM PORTUGAL, se escrevam aspeto, perspetiva, caraterizou, fação (é verdade, FAÇÃO!) e respetivamente.

É isto um acordo para unificar a ortografia? Onde está o empregado que serviu o bife, hã? Não vêem que está mal passado? Não, não vêem. Vão “adotar” a coisa e não vêem. Mas comem-no, regalados, apesar do truque baixo do bife apenas virado na cozinha, sem ver outra vez a frigideira, para que todos se deliciem com a ilusão de uma ortografia unificada. Mas há vozes atentas, vejam lá, que percebem a impossibilidade de tais mudanças. Leiam-nas: “Há diferenças intransponíveis dos dois lados do Atlântico, as quais foram acentuadas pelo tempo.” Autor? João Malaca Casteleiro, o pai do aborto, perdão, do acordo ortográfico (pág. 6 do opúsculo Atual: o que vai mudar na grafia do português, ed. Texto, 2007).

Claro que nada disto interessa, obviamente. Porque, diz-se por aí, o acordo não pode ser posto em causa, o acordo é um facto. Enganam-se: é um fato. Um fato feito por alfaiates incompetentes, que não serviriam nem para um pronto-a-vestir de segunda. E aprovado por quem descuidadamente se veste por dentro, cuidando que melhor o faz por fora. O que vale é que não faltam por aí políticos adversários do acordo. Por exemplo: Paulo Portas, Pedro Passos Coelho, Nuno Crato, Francisco José Viegas. Só é pena é estarem na oposição, coitados. Senão já tinham ido à cozinha, pegado na frigideira e…

[Transcrição integral. In jornal “PÚBLICO” (Revista 2) de hoje, 13.05.2012 – link disponível para assinantes. Destaques a “bold” e “links” inseridos por nós.]

[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]

Print Friendly, PDF & Email
Share

Link permanente para este artigo: https://ilcao.com/2012/05/13/e-agora-que-nos-vamos-ver-livres-da-rececao-nuno-pacheco-publico-13052012/

3 comentários

    • Pedro Marques on 13 Maio, 2012 at 22:13
    • Responder

    Alguém que tiver coragem de ler essas palavras acordizadas que as leia e as diga em voz alta, porque não se lê da mesma maneira.

    • Ana Isabel Buescu on 13 Maio, 2012 at 22:53
    • Responder

    É preciso continuar a nossa luta contra o aborto ortográfico. Obrigada à ILC, ao Nuno Pacheco, e a todos os que não se rendem. A defesa da Língua Portuguesa permite o direito à insurreição

  1. Agora parece que já temos no governo políticos que outrora se opuseram ao “acordo” então porque continuamos na mesma com as crianças na escola a desaprender o português??

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.