«Vejo cavar-se um fosso…» [Helena Rebelo, jornal “Tribuna da Madeira”]

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É “supra citado” ou “supracitado”? Porquê?

Publicado a: 16:00, 6 Agosto, 2014
por Helena Rebelo

É estranha a passividade com que os portugueses, a nível individual, profissional e institucional, vão aceitando as incoerências do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO), procurando segui-las, sem se questionarem sobre elas. Estou a ler um artigo da área da Linguística escrito por um (uma) colega brasileiro(a) para emitir um parecer. Ao longo do texto, vou registando, por exemplo, “aspectos”, “expectativas”, “conectados”, “caracteriza” e “caracteres”. Seguindo o AO, esta pessoa, motivada pela maneira de dizer, mantém uma grafia que, em Portugal, pela mesma influência, querem alterar. Há algum tempo, tive de preparar um “póster” para um encontro científico, numa universidade portuguesa, e fui compelida a retirar o “c” em, por exemplo, “aspecto” e “características” para aplicar o AO. Era uma orientação da organização do evento. Por mais que dissesse que o AO concebia a “dupla grafia”, ninguém quis ouvir. Ando a ficar impressionada pelo desconhecimento generalizado, incluindo entre universitários da área da Linguística, do texto original do AO. Estou cada vez mais convencida que as consequências para a Língua Portuguesa deste AO são deveras nefastas. Com pena, vejo cavar-se um fosso, tendencialmente maior, entre a ortografia brasileira e a portuguesa, além de, esta, se vir a diferenciar da africana, nomeadamente da angolana. Está visto que os países africanos com o Português como língua oficial seguirão um caminho próprio. Com perplexidade, verifico que o AO, apenas do plano ortográfico, está a interferir com a Fonética, isto é, a pronúncia do Português Europeu. Um pouco por todo o lado, vejo escrito “contacto”, sem “c”, quando, todos os portugueses, que eu saiba, articulam essa letra, o mesmo sucede a “facto”. Poderá acontecer deixarmos de dizer como era hábito? Contudo, o problema maior é motivado pelas opções gráficas dos revisores textuais automáticos que seguem orientações que nem vêm no AO, mas são apresentadas por editoras. Sem grande reflexão, os portugueses vão escrevendo como ditam esses revisores, mas o melhor é inverter esta situação. Temos de ganhar alguma consciência linguística para termos a capacidade de pensar no que dizemos e escrevemos. Creio que o devemos, por exemplo, fazer com “supra citado”. Tem aparecido com a aglutinação dos dois elementos, como se fosse apenas um vocábulo. Pode haver, aqui, apenas uma palavra? Reflectir sobre tudo, incluindo usos linguísticos como este, é um exercício que aprecio bastante porque coloca problemas que continuarei, aqui, a propor. Isto não significa que saiba tudo ou que o assunto fique, na íntegra, resolvido.

Resumidamente, esta questão parece-me ser do domínio da Morfologia e da Semântica, envolvendo duas línguas: o Latim e o Português. Já escrevi um artigo sobre o assunto na revista JA da Associação Académica da Universidade da Madeira. Contudo, volto ao tema, aqui, porque continuo a ver “supra” e “citado” aglutinados em textos de todos os géneros. Neste caso, será “supra” um prefixo? Não me parece, visto que é um advérbio de lugar latino que se deveria escrever em itálico. É o contrário de “infra” que deveria seguir o mesmo procedimento. Com frequência, usamos expressões latinas como “sine die”, “ex aequo” ou “ipsis verbis” e ninguém dirá que são termos portugueses. O mesmo acontece com os advérbios “supra” e “infra” que ocorrem isolados (a referência supra – a referência que está acima / a referência infra – a referência que está abaixo) ou que incidem sobre particípios passados isolados (a referência supra citada. – a referência acima citada / a referência infra citada – a referência abaixo citada.). Há, pelo menos, três razões que revelam a não existência de vocábulo único: 1) a possível substituição de “citada” por outros elementos como “mencionada”, “indicada”, “apresentada”, etc. 2) a mudança de posição dos dois elementos (a referência citada supra – a referência supra citada) e 3) a viável supressão de “supra” (a referência citada). Portanto, estes dois advérbios latinos não se podem aglutinar com o particípio passado português que ladeiam, por mais que os revisores automáticos e as editoras permitam a aglutinação. Os dois elementos não formam um vocábulo. Que revelarão os dicionários do tira-dúvidas?

As sete obras do tira-dúvidas apresentam “supra” e “citado” como um adjectivo com os elementos aglutinados. Todos indicam a mesma definição e a mesma origem, como se houvesse reprodução dos dados. Eu discordo de todos, pelas razões apresentadas acima (e por outras), já que “supra” e “citado” têm existência própria. É curioso verificar que a lexicalização ocorreu apenas com “citado”, mas não se regista com “mencionado”, por exemplo. Como se terá chegado aqui? Poderá haver alguma confusão entre o prefixo “supra-”, que o AURÉLIO remete para “super-”, e o advérbio “supra” (que é Latim), como o indica o HOUAISS? É provável. Poderá a lexicalização dever-se ao sentido jurídico de “citado”, a fim de evitar mal-entendidos? Seria interessante procurar as razões para esta aglutinação impossível, quanto a mim. Tendo em conta as diferenças, comparo-a à de “com certeza”, que muitas pessoas lexicalizam. Numa língua viva, as possibilidades de grafia são inúmeras, mas nem todas são aceitáveis, mesmo se os dicionários as atestam.

Já sabemos que é fácil o que se entende e complexo, ou discutível, o contrário. Portanto, para um provável tira-teimas, nada melhor que um breve tira-dúvidas porque as dúvidas são o primeiro passo, mas não podem ser o último. Por que razão, o advérbio latino “supra” e o particípio passado “citado” não podem formar um vocábulo? Porquê? É assim por várias razões. Uma delas é a da inversão de posição dos elementos: “supra citado” – “citado supra”. Quem não concorda comigo pode aglutiná-los, já que tem os dicionários a atestar essa possibilidade. Eu não aglutinarei “supra” e “citado”, assim como não seguirei o AO pelas incoerências que apresenta. Contudo, pensarei no assunto porque a Língua Portuguesa é o meu instrumento de trabalho, mas, simultaneamente, o meu objecto de estudo. Para emitir o meu parecer, vou continuar a ler o artigo escrito com o AO, mas que segue a grafia do Português do Brasil. A impossibilidade de uniformizar as ortografias é evidente, como mencionado supra.

[ver quadro na página do original]

[Transcrição de artigo, da autoria de Helena Rebelo, publicado no jornal “Tribuna da Madeira” em 06.08.14. Destaques nossos. Imagem (logótipo) copiada de Wikimedia.]

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