O que é que Cavaco Silva foi fazer a Díli? O que é que Portugal faz ainda na CPLP? Estas duas perguntas continuam actuais três dias depois de o Estado português, através da figura do seu Presidente da República, ter passado pela vergonha de ser conivente e de formalmente concordar com a decisão, aprovada por unanimidade, da entrada da Guiné-Equatorial na organização que se chama ainda Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa.
A aceitação pelos Governos da CPLP da adesão da Guiné Equatorial é um escândalo. A Guiné-Equatorial é há 35 anos dirigida por um tirano chamado Teodoro Obiang, que conduz o país ao arrepio de todas as regras do que se entende hoje em dia por Estado de direito democrático. A gestão cleptocrática dos recursos nacionais, entre eles o petróleo, por parte de Teodoro Obiang e do seu filho e vice-presidente Teodorin Obiang, já levou à instauração de processos nos Estados Unidos e em França. E quando alguém se opõe ao esbulho, acaba por ser preso. Como é o caso do empresário italiano Roberto Berardi, que foi sócio de Teodorin Obiang. Berardi denunciou que a empresa de ambos servia para desviar dinheiro do país e disponibilizou-se para testemunhar num processo internacional. Foi preso, torturado e está em risco de vida. (PÚBLICO 3/7/2014)
Esta trágica tirania tem como língua oficial o castelhano. Adoptou como segunda língua o francês, quando Obiang decidiu entrar no espaço francófono. E agora, mesmo que ninguém o fale, tem como terceira língua oficial o português. Como esse princípio é central para integrar uma comunidade dita de países com língua oficial portuguesa, a regra foi decretada por Obiang pai, com a mesma facilidade com que ofereceu de prenda de anos uma parte substancial da floresta do país ao seu filho Teodorin (Observador 20/7/2014).
A passagem do português a terceira língua oficial na Guiné Equatorial é uma decisão que tem a mesma profundidade e a mesma convicção das outras exigências que Obiang cumpriu para conseguir aderir à CPLP. Isto é: nenhuma. Vejamos a cronologia dos factos. Em 2006, a Guiné Equatorial ganhou estatuto de observador na CPLP. A adesão era a etapa seguinte e foi apadrinhada pelo Brasil e por Angola, cujos Presidentes faltaram agora à Cimeira de Díli, quem sabe se por vergonha de ficar na fotografia.
Em 2010, na cimeira de Luanda, foi aprovado um guião para a adesão. Deste constavam princípios óbvios: abolição da pena de morte, respeito pelos Direitos Humanos e democratização. Os dois primeiros parecem ser conceitos desconhecidos por Obiang. Em relação ao primeiro, a resposta foi uma não-solução. A pena de morte está suspensa por uma moratória. Ou seja, toda esta negociação é uma farsa desde o início: a Guiné Equatorial não fala português, não é uma democracia – é, sim, uma trágica tirania – e a pena de morte subsiste.
É sabido que o Presidente da República se opôs desde o primeiro momento. Assim como é conhecida a discordância de Paulo Portas e Rui Machete. Já a veemência da oposição do Governo de José Sócrates é menos conhecida. Mas o facto de se ter oposto desde o primeiro momento mais reforça a ideia de que o Presidente não deveria ter participado na encenação de Díli. Não basta estar na sala sem bater palmas e criticar depois.
Mais: como várias pessoas já referiram, a entrada da Guiné-Equatorial na CPLP reforça o carácter marginal que Portugal acabou por ter nesta organização. É certo que Portugal não tem direito a um estatuto privilegiado e qualquer tentativa de obter uma valorização especial nesta organização seria sempre vista como uma arrogância por parte da antiga potência colonizadora.
Agora, factos são factos e história é história. Há uma história comum, há laços comuns, há uma língua comum entre Portugal, Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Timor-Leste. É isso é o que constitui uma comunidade e é isso que está na base da constituição da CPLP. E a ligação da Guiné Equatorial à colonização portuguesa é a mesma de vastíssimos territórios que um dia constituíram o Império.
Hoje em dia, o facto de Portugal integrar a União Europeia potencia na CPLP as relações entre a Europa, a África e a América do Sul. Com a entrada da Guiné Equatorial e quando pedem estatuto de observador países como a Turquia, o Japão, a Geórgia e a Namíbia, começa a desenhar-se um perfil geostratégico totalmente diverso para a CPLP. (PÚBLICO 23/7/2014) E precisamente porque os factos são os factos é que ao longo dos anos se foi revelando a preponderância do Brasil e de Angola na CPLP e o enfraquecimento gradual do peso de Portugal. Agora, Portugal tornou-se redundante.
A ausência de uma explicação oficial clara e plausível para a decisão de acolher a Guiné Equatorial na CPLP autoriza todas as suspeições que possam ocorrer à imaginação de cada um. E há uma pergunta que resta fazer: em Portugal, a quem serve a entrada da Guiné Equatorial na CPLP?
[Transcrição integral de texto, da autoria de São José Almeida, publicado no jornal “PÚBLICO” de 26.07.14. “Links” e destaques (a “bold”) adicionados por nós. Foto do jornal, imagem (escudo de armas da República da Guiné Equatorial) de Wikipedia.]
1 comentário
Precisamente: «A passagem do português a terceira língua oficial na Guiné Equatorial é uma decisão que tem a mesma profundidade e a mesma convicção das outras exigências que Obiang cumpriu para conseguir aderir à CPLP. Isto é: nenhuma.»
Aparentemente, Portugal cultiva a triste tradição de participar em fantochadas internacionais desde que, com o barulho das luzes, se faça parecer que isso tem alguma coisa a ver com a ajuda a Timor-Leste. No caso presente, sob a forma da comparência em Díli “sem levantar ondas”.
Houve outra decisão obscura aparentemente também tomada “de arrastão” por simpatia para com Timor-Leste. Foi em 2004, sob a forma do II Protocolo Modificativo – que, recorde-se, dava muito destaque à adesão de Timor-Leste (que ninguém contestava, evidentemente) e fazia passar como insignificante (parecia um aparte a que ninguém deu importância?) a “decisão” de que bastaria que 3 países ratificassem o suposto acordo para este entrar em vigor em toda a CPLP.
Haverá certamente formas de ajudar Timor-Leste sem ser necessário enxovalhar a dignidade de todos.
E, a propósito, há outra pergunta que continua a ser extremamente pertinente: em Portugal, a quem serve a “adoção” do AO90?