No justíssimo doutoramento honoris causa conferido pela Universidade do Porto a Vasco Graça Moura – um dos mais brilhantes e multifacetados homens de cultura da sua geração, ainda polemista frontal e corajoso -, coube o elogio do doutorando ao professor catedrático Gaspar Martins Pereira, que recuperou um dos mais generosos combates do homenageado “contra o desastre do novo acordo ortográfico”.
Não podia ter sido mais oportuno, num momento em que o tema voltou à ordem do dia, com direito a votação de quatro propostas de resolução no Parlamento, uma das quais baseada numa petição de cidadãos inconformados com o rumo das coisas. Propunham os peticionários uma desvinculação do Acordo (AO), aprovado em 1990 e já com dois protocolos a modificar os pressupostos iniciais, em 1998 e em 2004.
Como é da praxe – e, talvez, por não ser um tema fracturante – prevaleceu nos parlamentares o clássico gesto de ‘empurrar com a barriga’, sem coragem para corrigir uma singularidade, onde Portugal surge fragilizado perante as dúvidas e os recuos dos seus parceiros falantes.
A barafunda instalada, com as clássicas ‘guerras de capoeira’, não foi suficiente para convencer a maioria a não ficar pela mera atitude, pífia e timorata, de recomendar ao Governo que constitua um grupo de trabalho para fazer o “acompanhamento da aplicação do acordo ortográfico”. Sem prazo. Nem suspensão, nem revogação. Ou seja, nada.
Com medo não se percebe bem de quê, a bancada PSD/CDS optou por meter a cabeça na areia e ignorar o caos, que viceja desde que se quis impor uma ortografia por decreto.
Coerente e incansável, Vasco Graça Moura repetiu que o documento “não é aplicável, porque não existe um vocabulário ortográfico comum” a todos os países de língua oficial portuguesa, criticando, ainda, “as facultatividades introduzidas”, geradoras da maior turbulência. Não foi ouvido. Mas os factos deram-lhe razão. A ideia de uma ortografia unificada falhou.
A coligação desperdiçou uma boa oportunidade de debater seriamente o assunto, sem ser ao sabor de utopias de iluminados. O diploma que chegou à votação final perdeu pelo caminho o essencial do seu conteúdo. Amputado, deixou os deputados proponentes de mãos vazias.
Com este recuo, os parlamentares desvalorizam sinais inquietantes, desde a balbúrdia no ensino de Português nas escolas, à desregulação operacional, ilustrada pelo uso simultâneo de diferentes grafias.
Veja-se o caso da imprensa. Este jornal, por exemplo, não segue o AO. Não está sozinho. Há mais jornais a fazerem-no. E mesmo nas páginas dos títulos aderentes ao novo AO , sobejam os colunistas que, por vontade expressa, se mantêm fieis ao antigo.
Dos media ao livro, a dignidade da língua sofre tratos de polé. Escreve-se pior, lê-se menos, enquanto a confusão do AO mascara muita ignorância. O que nasce torto…
O grupo de trabalho, se surgir, é um nado-morto, conforme bem ensinava a famosa série inglesa Yes, Prime Minister…
É um estratagema para deixar tudo como está. Infelizmente, é o país que perde, enquanto emerge um novo tipo de analfabetismo funcional, exibido por gente convencida que é letrada.
Dinis de Abreu
[Transcrição integral de artigo de opinião, da autoria de Dinis de Abreu, publicado no semanário “Sol” em 19.03.14. “Links” e realces adicionados por nós.]
2 comentários
O acordo veio para ficar e já é impossível voltar atrás. Mesmo que se prove que não serviu para nada, o sentido de responsabilidade da nossa classe política exigirá que persista como um facto consumado.
Há apenas duas questões que não têm sido discutidas mas que é urgente serem solucionadas:
1ª) Portugal está isolado na aplicação do AO-90 e o estatuto de ‘orgulhosamente sós’ nunca foi bom para nós. Os PALOP e Timor não só não o aplicam como nem têm planos para a sua implementação (Angola e Moçambique ainda pior porque nem sequer o ratificaram e os sinais vindos de Angola são todos no sentido de não o vir a adoptar nunca com o argumento patético de que não participaram na sua elaboração e que foi tudo ‘cozinhado’ entre portugueses e brasileiros – ridículo é o mínimo que se lhe pode chamar !!!). Assim, é necessário que o governo português exerça toda a pressão que puder, aplicando sanções se necessário for, por forma a obrigar aqueles países a usarem o AO o quanto antes. É verdade que não somos donos da língua mas temos o dever (nós e os brasileiros) de impôr aos demais aquilo que achamos que é melhor para todos;
2ª) As diversas instâncias internacionais continuam a utilizar nas suas comunicações, ora o Português de Portugal (por exemplo: União Europeia), ora o Português do Brasil (por exemplo: FIFA).
É necessário explicar a estas instituições que existe agora uma ortografia unificada e comum a Portugal e ao Brasil e que deverá ser obrigatoriamente utilizada por forma a evitar duas traduções (sim, porque ao contrário do que aqueles senhores pensam o Acordo Ortográfico já está mesmo em vigor e unifica mesmo a ortografia).
O mais caricato é que em ambos os casos que citei, as instituições utilizam palavras escritas na nova ortografia,no entanto, dão-lhe depois um cariz marcadamente português ou marcadamente brasileiro.
O acordo ortográfico foi inventado para unificar a ortografia de todos os falantes de português (um texto escrito por um português ou por um brasileiro deverão ser exactamente iguais) e candidatar-se a língua oficial da ONU. Tal não está a acontecer mas tem de acontecer sob pena do AO-90 poder vir a ser considerado um disparate.
Este assunto é demasiado importante para ser escamoteado.
Pedro Oliveira Reis
Pedro Oliveira Reis, não percebi se grande parte do seu comentário é sarcasmo ou não.
O facto da classe política não querer voltar atrás no acordo só para não ficarem mal vistos é assustador. Só mostra o abuso de poder ao não suspenderem um acordo que foi implementado ilegalmente e ainda se darem ao trabalho de sabotar e até ameaçar todas as tentativas democráticas de discutir este assunto.
Se fazem isto para o acordo ortográfico imaginem então o que eles farão no futuro com outros assuntos.
Portugal aplicar sanções a Angola é uma piada. Angola é um importante parceiro económico de Portugal e a “família real” Angolana é detentora de grande parte das gigantes nacionais. Sem falar que poderiam fazer a vida negra a muitos políticos que têm negócios em Angola.
Essa de ser preciso unificar a ortografia portuguesa para se tornar língua oficial da ONU é a maior anedota de todas. A língua inglesa e chinesa têm variantes e no entanto são consideradas oficiais.
Este assunto é realmente demasiado importante para ser escamoteado. Infelizmente é isso que os políticos já fizeram. É considerado assunto tabu.