Centrar o debate acerca do Acordo (Anti-)Ortográfico na questão de uma suposta submissão de Portugal à norma brasileira é iludir a verdadeira questão em causa. O Acordo não substitui a norma portuguesa pela brasileira, substitui-as a ambas por uma norma que não corresponde a nenhum dos usos legítimos da Língua em qualquer dos países lusófonos, sejam eles Portugal, o Brasil, ou qualquer dos PALOPs. A influência do uso brasileiro, que tem atrás de si o peso incontornável da própria desigualdade da escala de cada um dos países, é um fenómeno invitável no processo de partilha do Português entre os seus falantes no Mundo e um processo natural na evolução da própria Língua, como sucede no Inglês britânico em relação à influência norte-americana. Não tem em si mesma nada de errado. O que há de profundamente ilegítimo em todo o mecanismo de imposição deste Acordo é, antes de mais, que ele decorre de uma conjura de gabinete entre personalidades que não tinham qualquer mandato para decidirem neste domínio e que corresponde a uma intervenção artificial do(s) Estado(s) numa matéria que deveria ser deixada ao livre curso dos consensos que se vão formando a cada momento no terreno em torno dos usos da Língua. E depois o facto de ele se traduzir em soluções que diluem desnecessariamente os laços com as raízes etimológicas do Português e com as demais línguas românicas, e que, para além disso, são com frequência profundamente aleatórias e contraditórias entre si. Em inúmeros casos, a solução imposta é absolutamente arbitrária, e justifica-se apenas como um gesto de autoridade discricionária e sobretudo fundamentalmente ilegítima destes legisladores autoproclamados, violando em simultâneo, quer a norma portuguesa, quer a brasileira. A luta contra o Acordo (Anti-)Ortográfico não é um combate entre Portugal e o Brasil, é uma luta comum contra o abuso do Poder em ambos os países e em todo o universo lusófono.
[Transcrição integral de “post” (público), da autoria de Rui Vieira Nery, datado de 25.02.14.]
1 comentário
Gostava eu de ter a capacidade de exprimir por palavras o que sinto numa Língua que não é a minha materna (às vezes, reconheço, nem em Castelhano consigo) mas desta vez não foi preciso porque Rui Vieira Nery (a quem não tenho o prazer de conhecer) fez o trabalho por mim.
Obrigada.