“[A] bem-aventurada Virgem Maria foi preservada intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua conceição.”
Pio IX, Bulla Ineffabilis Deus DS 2803, 8 de Dezembro de 1854
Em Outubro do ano passado, o astrofísico Neil deGrasse Tyson irritou-se com um pormenor do filme Gravidade. O motivo da fúria foi alguém ter-se lembrado de pôr uma médica (interpretada por Sandra Bullock) a fazer a manutenção do telescópio Hubble, em vez de entregar tal tarefa a um engenheiro especializado quer na correcção de aberrações esféricas da óptica, quer na calibragem de espectrómetros e detectores, quer no estudo da cinemática e da morfologia de objectos astrofísicos compactos (chamo a atenção para a quantidade de consoantes mudas e pronunciadas que tudo isto implica).
Apesar de pontualmente se atrever a um ou outro trocadilho sobre a ortografia inglesa, creio que o novo apresentador da série Cosmos não estará minimamente preocupado com o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Imaginemos, todavia, que DeGrasse Tyson se interessava pelo processo que deu origem ao caos ortográfico actualmente instalado nas publicações oficiais e no ensino: rapidamente desconfiaria de que se tratava de mais uma obra de ficção escrita pelo argumentista do Gravidade e com repetição da graçola da médica a fazer de engenheiro ou vice-versa (sim, porque no filme há um “vice-versa”).
Uma das preocupações permanentemente ausentes do espírito dos negociadores, promotores e amigos do AO90 tem sido a das consequências na leitura (e não só na escrita) da supressão de diacríticos (consoantes e acentos). Os negociadores, promotores e amigos concentraram-se em – e ficaram-se por – aspectos políticos, como a famigerada “unificação”. Curiosamente, depois de a tese da “ortografia unificada” ter caído, porque é uma falácia do tamanho da Via Láctea, agora há quem se lembre de que a “unificação”, afinal, é das regras, independentemente de uma das consequências dessa “unificação das regras” ser a criação de discrepâncias anteriormente inexistentes.
Infelizmente, já lá vai o tempo das especulações. Com a existência e a ampla difusão de textos escritos “ao abrigo” do AO90, temos material suficiente para comprovar a exactidão das previsões atempadamente feitas e a irresponsabilidade de quem as ignorou. Um exemplo recente foi dado por Maria Alzira Seixo: numa aula de Português, um aluno do ensino secundário leu em voz alta um texto que continha a frase “a conceção [sic] de Nossa Senhora foi imaculada” e pronunciou o “conceção” (sic) exactamente da mesma forma como pronunciaria “concessão”. A este propósito, Maria Alzira Seixo acrescentou (e bem) que, apesar do contexto, o aluno não leu “conceição”.
São conhecidas as razões que justificam uma ocorrência “conceição” em vez de “concepção”. Curiosamente, também a possibilidade de uma ocorrência “conceição” em vez de “conceção” (sic) é contextualmente plausível e não só pela presença de “Nossa Senhora”. Esta idealização de um “i” depois do “e” é corroborada por um fenómeno perturbador que actualmente se começa a identificar em leitura de textos escritos “ao abrigo” do AO90: devido à supressão do “c” de directo, alguns indivíduos lêem “direito” em vez de direto (sic).
A supressão do “p” em palavras como “excepção” levará doravante quer a um aumento de ocorrências de *excessão em vez de exceção (sic), quer à necessidade de em publicações portuguesas se indicar, como já acontecia antes do AO90 em publicações brasileiras, que “’excessão’ (com dois ss) constitui erro grosseiro” (vide Manual de Redação e Estilo do jornal Estado de S. Paulo), mas com um aditamento para a norma portuguesa de uma nota acerca da diferença entre “concessão” e “conceção” (sic). Sim, para a norma portuguesa. Porque, em português do Brasil, a “concepção” mantém-se imaculada: ei-la, a célebre “unificação das regras”.
Fenómenos como a capacidade de identificação rápida de palavras, a fluência de leitura e o uso do contexto ortográfico na descodificação de palavras novas passaram ao lado de quem elaborou o AO90, pois só está atento a estes fenómenos quem se debruça sobre áreas directa ou indirectamente relacionadas com a aprendizagem da leitura e não quem se dedica a ouvir o som da sua própria voz e se entretém a conceber (lá está, a concepção) leitores e escreventes ideais. Contudo, como dizem em Direito, o desconhecimento da lei não aproveita ao infractor. Exactamente, ao infractor. Convém que se enterre o AO90, para, duma vez por todas, deixarmos de ter “diretos” que passam a “direitos”, “concepções” que soam a “concessões” e *excessões em vez de excepções porque passaram a exceções (sic).
Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Francisco Miguel Valada, “In” Jornal “Público” de 19.02.14. “Links” inseridos por nós.]
2 comentários
Muito bem, parabéns por mais esta acha contra o AO90. De facto, e aos poucos, a pronúncia de certas palavras vai-se alterando, diria mesmo ‘avacalhando’, ao ponto de não se perceber de que palavra se trata. “Conceção”, “Receção”, “Detetar” “Espetador” são bons exemplos disso. Só os burros de raça Casteleiro não vêem que “fenómenos como a capacidade de identificação rápida de palavras, a fluência de leitura e o uso do contexto ortográfico na descodificação de palavras novas passaram ao lado de quem elaborou o AO90”.
Análise Magnifica! Parabéns!
Poderíamos imigrar, abandonar o País, por vergonha da vergonha que o Português sente ao ver-se cortado e mal sonorizado. Mas não devemos. Continuar é preciso.