«O AO90 e os seus trolhas» [António Guerreiro, “Ípsilon”, 29.03.13]

ipsilon290313

O Acordo Ortográfico e os seus trolhas

António Guerreiro

Há poucos dias, um dos auditórios da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa encheu-se de gente, ao ponto de muitos não terem conseguido entrar, para ouvir alguns convidados da universidade e exteriores a ela exporem os seus argumentos contra o Acordo Ortográfico. Porque é que uma questão aparentemente menor em relação aos problemas políticos e sociais consegue mobilizar tanta gente e provocar discursos inflamados? A resposta a esta questão tem múltiplas parcelas. Em primeiro lugar, as pessoas sentem como intolerável que o poder político se ocupe de questões que não lhe dizem respeito e que não podem ser submetidas ao arbítrio de quem detém o monopólio da violência legal. O Governo legisla hoje sobre a norma ortográfica como legisla sobre a nossa saúde, o nosso corpo e a nossa vida. É a isto que se chama biopolítica. Mas as razões de indignação surgem agravadas por um outro factor: o Governo arroga-se o direito não apenas de exercer essa violência legal, mas de o fazer em relação a uma matéria da qual manifestamente não percebe nada. À violência junta-se a ignorância. E, a somar à violência e à ignorância, há ainda uma razão estratégica absurda e anedótica: a de fazer da unificação ortográfica (que, afinal, é uma miragem e, por agora, já resultou num desacordo mais fundo do que aquele que tínhamos antes) um instrumento de conquista de poder e de influência da língua portuguesa no mundo. Por último, a coroar todas estas razões, há a desordem ortográfica a que afinal ficámos submetidos (e a quem pretende que está a aplicar o novo Acordo Ortográfico deve ser dito que aquilo que está a fazer é a inventá-lo à sua maneira para o tornar exequível). Mas a indignação de tanta gente contra o Acordo Ortográfico (na verdade, os seus públicos defensores passaram ao silêncio e já só se defendem a si próprios) e a reivindicação de uma espécie de objecção de consciência, por parte de muitos, para se subtraírem a ele, como se de uma guerra se tratasse, mostra bem que aquele argumento do aspecto meramente convencional da ortografia e da sua exterioridade em relação à língua está longe de dizer a verdade. Se assim fosse, as pessoas não reagiriam como quem as esfola e as espolia. Joga-se na ortografia algo muito mais profundo do que um sistema de regras gráficas convencionais. É certo que a linguística, por via de Saussure, está essencialmente voltada para a parole, a fala. Mas foi precisamente contra o primado da phonè que um filósofo como Derrida construiu a sua “gramatologia”. E de que modo é que a gramatologia aqui nos interessa? Interessa-nos para perceber que há uma arqui-escrita, como se fosse anterior à fala; e que é preciso instalar a escrita no coração da linguagem e não no exterior dela, como pretendem os construtores (autênticos patos-bravos) do Acordo Ortográfico e os seus seguidores. Esta ideia de uma arqui-escrita é bastante complicada, mas por agora poderíamos deduzir dela a seguinte conclusão: a partir do momento em que aprendemos a escrever e passamos a utilizar o código escrito, a palavra é para nós, mais do que uma fonação (isto é, uma imagem acústica), um traço gráfico. E esse traço deixa de ser meramente convencional, ganha uma dimensão “arqui-“, archè, isto é, situa-se numa dimensão originária. Só os engenheiros civis da língua e os trolhas ao seu serviço não percebem isto.

[Transcrição (e imagem) a partir de ficheiro PDF publicado por João Roque Dias na plataforma ISSUU. Texto da autoria de António Guerreiro publicado originalmente na revista “Ípsilon” (suplemento do jornal “Público“) de 29.03.13. “Links” inseridos por nós.]

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3 comentários

  1. Do melhor este Guerreiro. Em suma, uma cambada de empreiteiros sub-coisos, patos-bravos (sem ofensa para os patos e patolas) que se movimentam afanosamente, embriagados pelo cheiro dos euros fáceis e querem tranformar a língua numa espelunca de azulejos policromáticos em caixilharia de alumínio.

  2. Belíssimo artigo de opinião. Feliz a comparação entre os construtores do AO90 (parece o nome de uma auto-estrada) e os patos-bravos que, na sombra, mandam em tudo neste país. Isto para não falar de outros pedreiros… alguns deles acérrimos defensores deste mamarracho.

    • Maria Miguel on 2 Abril, 2013 at 16:43
    • Responder

    Excelente análise.
    Com tanta verdade visível e fundamenta, o tempo de espera do regresso
    ao traço das palavras (original desde 1945),é-me incompreensível.

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