«Aventura desastrosa» [Maria do Carmo Vieira]

E porque o recurso à tecnologia adquiriu um poder soberano na sala de aula, ofuscando a figura do próprio professor, que não levará muito tempo tornar-se-á desnecessário, vai sendo comum apresentar, por exemplo, o estudo de Eça de Queiroz ou de Fernando Pessoa em power point, partindo de esquemas e de texto que acabam por substituir a narrativa e a emoção contagiante do professor, em relação ao autor e à obra em questão. Aspecto que se enquadra na «reciclagem de conhecimentos» que se exige aos professores, não só em matéria pedagógica e tecnológica, como linguística (TLEBS e o novo Acordo Ortográfico), «bagagem operacional» determinante para a definição do perfil do «novo professor» e para a sua avaliação.

Lembre-se, a propósito da TLEBS, o frenesim descritivo do «funcionamento da língua» em detrimento da Gramática, cujo estudo deveria ser feito de uma forma gradual até ao final do 3.° ciclo. Infelizmente, os recentes exames do 12.° ano demonstraram que muitos alunos não dominavam aspectos elementares da sintaxe, como a distinção entre sujeito e predicado, matéria, em princípio, trabalhada no final do 1.° ciclo. Não houve, pois, esquecimento ou falta de atenção, como alguns quiseram justificar, mas pura ignorância. Esta situação agravar-se-á com a confusão que a TLEBS veio causar porque, longe de levar os alunos a reflectir sobre a língua e a compreendê-la, desorienta-os e confunde-os com a sua nomenclatura tecnicista e obsessão descritiva, impondo-se assim a sua reavaliação, ouvindo os professores. No mesmo tipo de aventura desastrosa, se inscreve o Acordo Ortográfico de 90, tendo em comum com a TLEBS a indiferença dos seus mentores por pareceres negativos 22 e por críticas cientificamente argumentadas em inúmeros artigos (que continuam) e obras várias. Refira-se que está ainda a decorrer um processo de recolha de assinaturas (cedilha.net/ilcao), através de uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC), com o objectivo de revogar a Resolução da Assembleia da República N.º 35/2008 (RAR).

22 Entre os quais a Direcçâo-Geral dos Ensinos Básico e Secundário: «Há acordos assináveis, sem grandes problemas e há outros que são de não assinar. O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, uma simples consagração de desacordos.»

Excerto do texto com o título «Reflexão sobre o Sentido de Ensinar», da autoria de Maria do Carmo Vieira, inserido na obra “Reinventar Portugal” (vários autores), ed. Estampa, Lisboa, 2012. Capa: NMDesign.

[Nota 1: os links foram adicionados por nós ao texto original.]
[Nota 2: foi solicitada à Editora autorização expressa para esta reprodução.]

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2 comentários

  1. Muito bem tudo. Do excerto às notas. Eis como se trabalha de maneira séria e sensata.
    A propósito da Estampa e outras: alguma editora estará na disposição de acolher a I.L.C. Na feira do livro que se avizinha?
    Cumpts.

    1. Sobre as editoras, sim, muito em breve publicaremos aqui notícias.

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