Angola e Moçambique querem gerir o seu tempo na ratificação do Acordo
Fundamentos políticos, económicos, jurídicos. E linguísticos. A implantação do Acordo Ortográfico (AO) na totalidade da CPLP continua em discussão e os encontros de ministros da Educação e da Cultura em Luanda, há uma semana e meia, trouxeram à luz novos argumentos sobre os impasses na ratificação de Angola e Moçambique.
Há passos por dar, dizem responsáveis políticos e especialistas da língua dos dois países. Mas a posição angolana e moçambicana não são absolutamente coincidentes. O próximo passo, incontornável para Angola, é a elaboração de um Vocabulário Ortográfico Nacional, diz ao PÚBLICO, de Luanda, Paula Henriques, coordenadora da Comissão Nacional do Instituto Internacional da Língua Portuguesa em Angola.
Segundo esta responsável, a ratificação angolana “prevê-se para este ano”. E estará já requisitado financiamento ao Fundo Especial da CPLP e outros fundos de cooperação para a elaboração do Vocabulário Ortográfico Nacional angolano a ter em conta na composição do Vocabulário Ortográfico Comum. Porém, o documento de decisões finais que saiu do VII Encontro de Ministros da Educação afirma apenas a necessidade de um “diagnóstico” aos “constrangimentos” à aplicação do acordo, missão a desenvolver por um Secretariado Técnico Permanente – Portugal/Angola/Moçambique – com apoio do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa e academia.
Como chegar a um consenso para uma língua que vale 4,6% do PIB mundial num espaço com assimetrias gigantescas, demográficas e socioeconómicas? Como implementá-lo perante disparidades imensas nos sistemas de ensino? Como contornar os interesses geopolíticos e económicos? A proposta da Comissão de Língua Portuguesa em Moçambique “separa melhor a questão política e posição do governo da questão técnica”, diz-nos, de Maputo, Lourenço Rosário, reitor do Instituto Superior Politécnico Universitário de Moçambique, que dirige a comissão.
Numa posição distinta da angolana, defende que se deve avançar já com a ratificação por uma questão política e depois ir trabalhando as rectificações necessárias à implantação. “Portugal promulgou por seis anos o último acordo, Moçambique também quer gerir o seu tempo de implantação”, diz. Para isso, vários linguístas e professores puseram mãos à obra para esclarecimentos sobre sistemas fonológicos diferentes, correspondências entre sons e grafemas estabelecidos para as línguas de origem bantu. Criaram uma Cátedra de Português Língua Segunda e Estrangeira – protocolo de cooperação entre o Instituto Camões e a Universidade Eduardo Mondlane – e disponibilizam na Internet um consultório linguístico e um Observatório de Neologismos do Português de Moçambique, coordenado por Inês Machungo.
Neocolonialismos
Não é irrelevante o facto de o português ser língua estrangeira para grande parte da população de Moçambique e Angola. E são muitos os intelectuais africanos, de vários países, que continuam a lembrar que o português, adoptado no pós-independência como língua oficial e de escolaridade, não pode obstruir a diversidade linguística dentro da CPLP, embora considerem fundamental investir na consolidação da língua. Por isso, quaisquer decisões arriscam a nunca ser transparentes, já que a língua continua a ter um sentido de propriedade, impossível de agradar a todos. Há quem se insinue contra “imposições sub-reptícias de tipo neocolonial, sob a necessidade de uma unifi cação linguística”, como escrevia o angolano Cândido Lince no “Jornal de Angola”.
Carmo Neto, presidente da União de Escritores Angolanos, diz ao PÚBLICO ser favorável ao acordo – “só ganhamos ao aderir” –, mas insiste no reconhecimento da identidade linguística. Ou seja, a aceitação “da grafia africana das palavras adquiridas das línguas bantu”: “É importante rever contribuições que os angolanos sempre deram à língua portuguesa – na ortografia, semântica, morfologia – para que esta não seja estranha na nossa realidade e contexto.”
Já o antropólogo moçambicano José Pimentel Teixeira, autor do blogue ma-schamba, refere que “não há qualquer dinamismo endógeno quanto à necessidade de um AO, de seguir um processo que parece inultrapassável, pois dinamizado por Portugal e Brasil e que vai colhendo ratificações”. Atento ao desenrolar de eventos e desiludido por constatar que são ainda “as bases de uma lógica antiga a reinar”, escreve ao PÚBLICO de Maputo: “É algo que surge de fora, que pode ligar-se com o discurso ‘lusofonia’”. “A grande força motriz é a associação da homografia com a sustentação de um espaço de interesses e sentimentos e objectivos comuns.”
Considera que a questão das vantagens económicas também tem sido apenas centrada no contexto português: “Há muito para ganhar em termos económicos mas nunca fizeram as contas. Quanto ganharão as editoras, os parques gráficos africanos? Nunca pensaram porque não lhes interessa nem tão-pouco têm cultura para adequarem a retórica dos discursos quando falam para ou em África.”
Uma discussão revestida de “grande chauvinismo”, diz a escritora e professora universitária são-tomense Inocência Mata. Referindo uma certa saturação com os impasses, Inocência Mata diz que “está em jogo uma guerra de hegemonias”: “Em vez de se discutir o acordo, começa-se a discutir a História e os seus problemas, se nos submetemos aos brasileiros ou se a língua portuguesa perde a sua identidade.”
Já que as questões do vocabulário podem avançar paralelamente, também o escritor angolano José Eduardo Agualusa considera desnecessário atrasar-se mais a implantação do acordo nestes países, “sob pena de ficarem prejudicados”, por exemplo, na questão editorial. “Angola e Moçambique importam a maioria dos livros de Portugal e Brasil, livros já escritos segundo o novo acordo” o que, segundo Agualusa, pode provocar alguma desincronia na aprendizagem da escrita.
É outra das questões para que chamam atenção diversos intelectuais africanos, apreensivos com os problemas de aplicação, tendo em conta a vulnerabilidade dos sistemas de ensino, onde faltam sistematicidade e docentes com competências para tornar o acordo num instrumento eficaz.
Mas, se os problemas na aprendizagem da língua poderão melhorar com mais homogenia gráfica, “a grande diversidade” africana “não é gráfica, é sintáctica e semântica”, refere Pimentel Teixeira.
O deputado e escritor João Melo, por exemplo, recorda ao PÚBLICO o já longo contributo angolano para a africanização da língua portuguesa, caso do português do Brasil com vocábulos provenientes do kimbundu, do kikongo e do umbundu, e influenciado na estrutura e no sotaque. E defende que “como o acordo privilegia o aspecto fonético vai facilitar a expansão e aprendizagem da língua entre angolanos”.
Mas o acordo responde como se houvesse apenas uma fonética “culta” luso-brasileira sobreposta às fonéticas “cultas” dos outros países, contrapõe Pimentel Teixeira. E sublinha considerar que “isto é o pensar pós-colonial das décadas de 1970 e 1980, quando o AO foi gizado”: “É uma pantomina da concepção de partilha cultural, linguística, política) que se anuncia para agora, é tetricamente reaccionário.”
Marta Lança
[in jornal “Público”, secção “Cultura”, 11.04.12. Autoria: Marta Lança. (o link para o artigo não está disponível)]
[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]
4 comentários
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Um texto perfeitamente desconcertante. As preocupações atribuídas a Angola e Moçambique não têm nada em comum com as de quem em Portugal está contra o AO90, o que é extremamente preocupante para quem poderia ver nestes países uma réstia de esperança para poder de alguma forma corrigir esta situação.
A$ preocupaçõe$ de Angola € Moçambique $ão a$ da «cooperação»…
Cumpts.
Quem pagará a dita equipa de técnicos? E já agora, quem serão?
Os “técnicos” serão todos os que mais à frente se chegaram na defesa do AO. Os obedientes à voz do chefe. Estou a pensar em muitos mas há alguém que merece o prémio de pertencer a algumas dessas comissões: a “malta” da associação da APP – Associação de Professores de Português.
Estou a pensar, também, em algumas “eruditas” que têm escrito e publicado livrinhos de “felicidade” e facilidade: Por exemplo, a Edite Estrela , a Maria José Leitão , a Maria Almira Soares, etc, até porque convém convidar para estas decisões difíceis alguém que não seja do mesmo partido…
Há-de haver muitas viagens oficiais aos países africanos e Braziu. Estas coisas, para serem bem feitas, devem ser feitas olhos nos olhos.
Deveremos subsidiar re-edições de manuais escolares em vários países africanos e devemos enviar muita gente para fazer acções de formação no local.
No final terá havido muitas formas de pagar os favores e de queimar muitos milhões dos nossos impostos.
[…] artigo sobre o Acordo Ortográfico em Angola e Moçambique, publicado no jornal Público, de autoria de Marta Lanç…, jornalista que gere o imprescindível Buala. No artigo estão algumas opiniões minhas, o meu […]