Nim, Senhor ex-Ministro

Paradoxo ortográfico

O presente texto foi escrito independentemente do novo acordo ortográfico, ou seja, obedece, ao mesmo tempo, às normas linguísticas anteriores e posteriores a esse acordo. É, por isso, uma espécie de exercício de resistência passiva a uma ortografia que se tornará obrigatória em 2015. Confesso, no entanto, que o resultado foi garantido à custa de um dos populares conversores que habitam a internet. De todo o modo, o processo foi surpreendente: num texto corrente com mais de trezentas palavras, não fui obrigado a substituir nenhuma.

Este modesto e afortunado exercício constituiu a comprovação empírica de algo que eu intuía. Do acordo ortográfico de 1990 (não tão novo como isso), pode dizer-se uma coisa que vale para a generalidade das pessoas: é pior do que o pintam os seus pais e amigos, mas melhor do que querem fazer crer os seus inimigos jurados. Para o bem e para o mal, o acordo não irá alterar o modo de falar e escrever português em Portugal, no Brasil ou em qualquer outro país lusófono. Todos sabemos que as especificidades do uso de uma língua excedem largamente a grafia.

Estou certo de que o público brasileiro continuará a preferir, em geral, obras e textos escritos em português do Brasil, bem como tradutores e intérpretes que usem esse português na construção frásica, na escolha de vocábulos e, claro está, na pronúncia. Do lado de cá do Atlântico acontecerá, seguramente, o inverso. Nada disso retira uma certa utilidade à unificação da grafia, sobretudo para as editoras e em documentos oficiais. Mas essa unificação é imperfeita, visto que o acordo admite que muitas palavras se escrevam de duas maneiras diferentes.

Porém, o que me causa maior perplexidade no acordo é a mudança de grafia de palavras que se escreviam da mesma maneira em Portugal e no Brasil. “Abjecção” e “acepção”, por exemplo, passam a escrever-se, em Portugal, “abjeção” e “aceção”, mas continuam a escrever-se à maneira antiga no Brasil. Esta nova divergência resulta de a consoante suprimida ser muda para os portugueses e pronunciada pelos brasileiros. Em nome da fonética, que é e continuará a ser diferente nos dois países, torna-se agora diferente, paradoxalmente, a grafia das palavras.

Rui Pereira

[Transcrição integral de artigo da autoria de Rui Pereira publicado no jornal “Correio da Manhã” de hoje, 26.01.12. Destaques e sublinhados nossos.]

Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.

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