Esta semana, no meio de uma embrulhada confusão de razões, contra-razões e subtilezas pouco subtis, saltitando de argumentos e de posições que não lembrariam ao Diabo, pior, que não lembrariam aos engendradores do Acordo Ortográfico, ficou-se a perceber uma coisa que digo já qual é. Mas antes, seja-me permitida uma sugestão: a de que futuros negociadores do mesmo instrumento, deputados ou não, académicos ou professores, editores, tradutores ou revisores de provas, sejam reciclados através de um curso intensivo de gramática da língua portuguesa, como condição essencial para integrarem esse grupo.
Agora, aí vai a conclusão que tirei e que tem o seu quê de melancolicamente lesivo da língua que falamos: nenhum ou quase nenhum dos deputados está de acordo com o acordo! Houve quem se pusesse de acordo para salvar internacionalmente a face, quem se pusesse de acordo para proteger o negócio da edição escolar, quem o fizesse em nome dos ritmos de adopção do dito nos outros países, quem o fizesse em nome dos mais variados interesses. Mas não houve ninguém com peso significativo no Parlamento que fizesse oscilar a balança a seu favor pondo-se de acordo contra o acordo através do seu voto. Omnes discrepantes, como se diria adaptando ao caso uma velha fórmula latina e recordando neste ensejo a corajosa declaração do deputado Mendes Bota.
Sendo assim, funcionando o pensar dos deputados como um feixe de premissas e o resultado a que chegaram como conclusão, o silogismo é de solução impossível e contraditória. É assim que se manifesta na Assembleia da República a vontade do povo português? Ora vindo-se, desde há anos demonstrando, em números não superados por qualquer outra documentação aberta à subscrição pública, que todos os sectores sociais são contra o Acordo Ortográfico, menos possivelmente os seus autores se é que estes ainda estão todos de acordo, não se percebe esta situação a que se chegou de criação e aplicação de três grafias diferentes, agora com uma posição edulcorada do nosso Parlamento que também não vai levar longe e que não cria condições para uma revisão multilateral das regras-quadro que permitiriam a sua aplicação, nem do autêntico chorrilho de asneiras que viola mesmo o preceituado nesse instrumento internacional.
Pretende-se chegar à almejada unidade ortográfica entre os povos que falam português como quem bate com força uma grande tigela de salada. A força centrífuga sobrepõe-se e lá se vão legumes e cereais pelo ladrilhado da cozinha escapando-se pela janela para não voltar. Creio que é nas Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado, de Camilo, que os familiares das personagens, nas suas familiares excursões dominicais a Valbom, exclamam alegremente enquanto preparam a alface que lhes vai acompanhar o saboroso sável frito (cito de cor): a salada quer-se mexida por um cego e temperada por um louco (“e com isto riam até dizerem que já lhes doíam as barrigas”).
Infelizmente é a uma situação de surrealismo delirante que se está a chegar. A língua está a ser destruída. Não conheço hoje muitos políticos que sejam a favor disso. Se falarmos de outros utentes qualificados, também não, salvas as excepções menores do costume e as propensões para a cedência do costume. E estamos a falar de Portugal. Se passarmos a Angola temos uma noção de como se pode e deve defender a língua de um país, das suas tradições, da sua cultura, das suas relações humanas e sociopolíticas, enfim, da sua identidade. Quanto ao Brasil, faz o que entende e não se sente vinculado por uma série de baboseiras que, está mais do que demonstrado, são perfeitamente inconstitucionais no nosso país.
Realmente, como na salada dos pais do imortal Basílio, o acordo foi mexido por uns cegos e temperado por uns loucos…
Vasco Graça Moura
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Vasco Graça Moura, publicado no “DN” de 05.03.14. “Links” e destaques adicionados por nós.]
3 comentários
« É assim que se manifesta na Assembleia da República a vontade do povo português?», pergunta Vasco Graça Moura. Eu lamento esse comportamento vergonhoso dos partidos políticos do meu país, pois ao que se assistiu foi à manifestação dos interesses partidários mais mesquinhos e não à expressão da vontade do povo português.
«Se passarmos a Angola temos uma noção de como se pode e deve defender a língua de um país, das suas tradições, da sua cultura, das suas relações humanas e sociopolíticas, enfim, da sua identidade.»
Enquanto em Portugal vigora o empenho imbecil em destruir a nossa língua, acabo de ler, no “Jornal de Angola”, um artigo intitulado “Livros mais baratos”, a dar conta do esforço contínuo levado a cabo neste país, para promover a formação e a valorização humana do povo angolano:
http://jornaldeangola.sapo.ao/reportagem/livros_mais_baratos
Agradeço as palavras da minha colega Maria José Abranches e adopto-as pois exprimem tudo o que eu poderia dizer.
Continuemos persistentes e tenhamos a desobediência como atitude durante este longo caminho a percorrer.
Maria do Carmo Vieira