O Acordo Ortográfico de 1990 foi um processo infeliz, tratado nas costas da população dos países lusófonos, como se a língua fosse propriedade de um grupo de linguistas e os governos tivessem legitimidade para mudar por decreto uma língua que não é propriedade sua, mas do país e dos cidadãos.
O percurso errático do AO arrasta-se há 24 anos (ou melhor, há 39, porque começou a ser pensado em 1975) e ainda não está legalmente em vigor, porque as populações lhe resistem e porque, quando se tentou impô-lo pela força de um decreto, o resultado foi o caos.
O que faltará acontecer para que os sucessivos governos reconheçam que pretendem a quadratura do círculo e que estas tentativas pura e simplesmente não funcionam?
No ano passado a presidente Dilma adiou para 2016 a entrada em vigor do AO no Brasil, e, a acreditar nos jornais, tomou essa decisão sem consultar os seus parceiros.
Pretende-se vender-nos a ideia patética de que o português de grafia uniformizada (vulgo, o “acordês”) é a língua do poder e dos negócios, e de que, seguindo o “acordês”, todos seríamos, a reboque do Brasil, grandes potências emergentes, a caminho de um mundo magnífico de poder e riqueza, partilhado por 240 milhões de falantes. Será que não percebemos a irracionalidade desta ideia?
E por que razão o “acordês” seria a língua franca dos negócios? “Acção” e “facto”, por ex., são muito mais compreensíveis para qualquer estrangeiro do que “ação” e “fato”, porque mais próximas de “action” e “fact” – e o inglês continua a ser a língua mais falada nos negócios internacionais.
Manter em cada país a sua variante da língua é uma marca de identidade e um património, que está acima do poder de qualquer governo. Porque os governos passam e mudam, mas as línguas não podem passar nem mudar como se fossem governos.
É natural que o Brasil pretenda maior protagonismo liderando estas alterações linguísticas. Mas os restantes países lusófonos não têm nada a lucrar com isso, só têm a perder. O Brasil, como grande potência emergente que já é, vê o AO a nível simbólico e estratégico. Mas para nós, e para os restantes países lusófonos, o AO não tem qualquer vantagem, desde logo económica: com AO ou sem AO, o Brasil vai sempre cuidar dos seus negócios e interesses, e só deles, o que é perfeitamente legítimo: os países cuidam de si próprios, e tomáramos nós ter em Portugal quem defendesse os interesses do nosso país como Dilma defende os do Brasil. Os laços e afectos só existem a nível das pessoas. A nível dos países, há apenas interesses. Não sentimos isso na pele, também aqui na Europa? As mudanças pretendidas no AO são desnecessárias, e incongruentes. E não aproximam as variantes da língua – porque as maiores diferenças são a nível lexical e sintáctico, e essas manter-se-ão, o que quer que aconteça.
Só dois exemplos: se o AO é fundamental para que nos entendamos, então por que razão no Brasil os livros portugueses, escritos segundo o AO, são traduzidos para o português do Brasil como se estivessem escritos numa língua estrangeira? Por que razão “mesa de cabeceira” passa a “criado mudo”, “ficou pasmado” a “ficou pasmo”, ”foi apanhado pela polícia” a “foi pego pela polícia” etc. etc.?
Por que razão a nós nunca nos passou pela cabeça traduzir para o português europeu Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Ruben Fonseca ou qualquer outro autor?
Por que razão as livrarias portuguesas têm em todo o lado bancas de livros brasileiros, e a literatura do Brasil nos é tão familiar, quando o inverso não se verifica?
Por que razão há cada vez MENOS estudos de literatura portuguesa nas universidades brasileiras, e cada vez MAIS estudos de literatura brasileira nas universidades portuguesas?
A resposta é simples: porque Portugal se abriu há muitas décadas ao Brasil, cujos autores circulam livremente entre nós, porque os sentimos como se também fossem “nossos”, enquanto o Brasil sempre levantou barreiras alfandegárias intransponíveis aos livros portugueses, que lá chegam a preços proibitivos, e na maior parte dos casos nunca chegam.
A solução não está em “acordizar”, mas em ter um intercâmbio maior e mais simétrico, em conhecer-nos melhor, valorizando as nossas diferenças.
No ponto em que estamos, temos dois caminhos:
O do senso comum, que é reconhecer que a língua portuguesa admite variantes, nos diferentes países onde é usada, o que só a enriquece. Não pode haver qualquer hierarquia entre os países lusófonos, nem entre as suas variantes linguísticas: nenhum país é dono da língua, e nenhum é inquilino. Vamos deixar a língua evoluir naturalmente, a partir de dentro e não por decretos, porque ela é um organismo vivo, e cada país a usa a seu modo, como bem entende e quer, porque ela é sua e lhe pertence por direito próprio. Nenhum país tem o direito de policiar ou fiscalizar o uso da língua em qualquer outro país lusófono. O português não é uniformizável, qualquer acordo é um contra-senso. E, mesmo que fosse possível “acordar” e “simplificar”, o resultado seria imensamente empobrecedor.
Ou entendemos isto e desistimos de acordos, ou vamos persistir por muitas décadas neste processo delirante de acordos impossíveis – um acordo ortográfico falhado atrás de outro, seguido de um já anunciado acordo de vocabulário que irá ser igualmente falhado, e depois um acordo de sintaxe falhado, etc. etc. – …até bater na parede de um imenso Desacordo final, que deixará profundo desgaste e feridas a todos níveis, entre países que sempre souberam entender-se e conviver, respeitando e valorizando as suas diferenças.
[Transcrição integral de “note” publicada por Teolinda Gersão na sua página da rede social Facebook em 24.02.14. “Links” adicionados por nós.]
Nota: neste como em qualquer outro conteúdo, próprio ou alheio, as ligações a entradas “wiki”, não havendo alternativa em Português, são sempre feitas preferencialmente às versões em Inglês, Francês ou Castelhano. Evidentemente, recusamos a “Wikipédia Lusófona” pelas suas total “acordização” e selvática brasileirização
1 comentário
Excelente artigo que apenas peca pela afirmação final : “países que sempre souberam entender-se e conviver, respeitando e valorizando as suas diferenças”.
Esta afirmação não me parece coerente com o que a autora refere mais atrás, em minha opinião, acertadamente. Na verdade, o Brasil não tem sabido respeitar nem valorizar as diferenças que identifica em Portugal.
É ai que reside uma das maiores dificuldades em estabelecer qualquer acordo ortográfico com o Brasil. Se tal se justificasse. Lamentavelmente, não obstante a sua enorme dimensão (é o quinto país mais extenso do planeta) o Brasil revela demasiados tiques de anão complexado perante o antigo colonizador.
Era tempo de terem um pouco mais de bom senso no trato com Portugal. Até porque ascenderam à independência sem nenhuma guerra colonial significativa, como se verificou entre os Estados Unidos e a Inglaterra e em muitos outros casos.