«É um facto que vou de fato» [Nuno Pacheco, revista “2”, 17.11.13]

rev2NP161113 Anda por aí um rebuliço por causa da decisão de um juiz não aceitar escritos no novo acordo ortográfico, vulgo A090. O Conselho Superior da Magistratura, solene, decidiu abrir um inquérito ao juiz visado depois de ter recebido uma participação, indignada, como era bom de ver, da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. O problema não estará, argumentam os decisores, na norma ortográfica em si mas no facto de o referido juiz se arrogar o direito de impor uma norma ortográfica a alguém. No caso, convém esclarecer, um recluso.

É curioso que esta espécie de parábola sobre ortografia e imposição assenta, que nem uma luva, ao próprio Estado. Porque se o juiz exigiu a escrita segundo as normas legais, que são as do acordo de 1945, o Estado não se coíbe de impor por aí a algaraviada do A090 mesmo antes de este ser lei, convindo que assim a plebe se tornará “acordada” mais depressa. Além disso, os decisores terão achado que tribunal não é escola. E daí o inquérito.

Num péssimo chavão felizmente em desuso, dir-se-ia que “vem a talhe de foice” contar outra pequena história relacionada com o tema. Vem num livrinho datado de 1947 e editado em São Paulo, pelo Jornal do Commercio (assim mesmo, com duplo M). Trata-se da edição brasileira do “Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal” (sic), decreto-lei n.° 8.286 de 5 de Dezembro de 1945, e no preâmbulo onde se conta a história da coisa diz-se que foi Portugal que rompeu em 1911 e em “atitude isolada”, com o critério etimológico em prol do fonético. Isso deu uma trabalheira às academias porque, depois de um falhado acordo em 1931, lá tentaram quimericamente engendrar um acordo “para dirimir, em definitivo, a balbúrdia ortográfica, cortando de vez as intermináveis dúvidas que a promoviam e alimentavam”. Na empresa pontificavam, do lado português, Júlio Dantas (que presidia) e do lado brasileiro nomes como Pedro Calmon ou Olegario Marianno (sim, com dois N). Como é da praxe, lá se pedia, “com a possível brevidade”, um “Vocabulário Ortográfico Resumido” para que o povo dos dois países se não perdesse na eminente sopa de letras legal. Esqueciam-se as boas almas desse longínquo 1945 que no Brasil, depois da ousadia gonçalvianista de 1911, se tinha já começado a escrever “fato” em vez de “facto”, “ação” em vez de “acção”, “atual” em vez de “actual”, “refletir” em lugar de “reflectir”, e isso mesmo confirma o texto do referido livrinho. Isto embora o acordo marchasse em sentido inverso, apontando como imperativa a conservação das sequências de consoantes cç, pç, ct e pt “nos casos em que não é invariável o seu fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade com as línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais: acção, activo, actor, afectuoso, arquitectura, colecção, colectivo, contracção, correcção”, etc. Mas tal entendimento esbarrou na “praxis”. Portugal aplicou o “acordo”, que foi alterando com o tempo, enquanto o Brasil o ia rejeitando ao correr do tempo.

O que tal acordo tinha de racional e lógico face a muitas palavras (mantinha-se, em nome da harmonia gráfica “com normas afins”, a grafia Egipto, apesar de muitos dizerem “Egito”, para ser lógico escrever-se e dizer-se “egípcio”) tem o actual (melhor, o “atual”) de desvario e desconchavo. Famílias inteiras de palavras são destroçadas em nome de um “fonetismo” inexistente, porque na verdade há dúzias de fonéticas possíveis no universo da língua portuguesa para uma mesma palavra grafada.

O filólogo José Pedro Machado (1914-2005) escreveu, com acerto, em 1986, a propósito da ortografia: “Pudemos alterá-la não sei quantas vezes em meia centena de anos, sem que isso afectasse o Português, que nem com tantas modificações ortográficas deixou de ser o menos evoluído dos idiomas românicos.” Isso foi em 1986. Hoje, quase três décadas passadas, corre o risco de ser o mais primário e basilar de tais idiomas. Objectivo (perdão, “objetivo”) a que doutas criaturas se entregam com fervor sem cuidarem de olhar os destroços que vão pisando à medida que estraçalham o que ainda restava da racionalidade da escrita. Só possível, hoje, de defender, aceitando a sua diversidade, como fazem outros idiomas menos dados a ditaduras.

[Transcrição integral de artigo publicado na revista “2” (suplemento do jornal “Público“) de 17.11.13, da autoria do jornalista Nuno Pacheco (director-adjunto do jornal). “Links” adicionados por nós.]

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