FERNANDO PESSOA E A ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA
E
O ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990«O Estado nada tem a ver com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno […].»
Fernando Pessoa«Minha pátria é a língua portuguesa» é a frase poética de Bernardo Soares que mais tem sido citada, e, a nosso ver, de forma desajustada, a propósito do AO de 1990. Com efeito, desintegrada do seu contexto e das suas influências perde o seu sentido, e daí a manipulação de que lamentavelmente tem sido alvo, enganando o incauto que, por desconhecimento do texto em que a mesma se encontra, dará razão ao mistificador. Integrada no “Livro do Desassossego”, de autoria deste semi-heterónimo de Fernando Pessoa, «ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa», a referida frase, assim isolada, parece servir, e mesmo assim forçadamente, os objectivos dos acordistas, mas se nos dermos ao trabalho, e ao prazer, de a ler no contexto em que se insere, compreenderemos o seu significado. Assim, transcreverei do texto de Bernardo Soares o suficiente para que o possamos compreender, não deturpando as palavras do seu autor:
«Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a página mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em quem se bata, a orthographia sem ípsilon […]. Sim, porque a ortographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»Bernardo Soares, neste seu texto, confessa, indirectamente, o seu apoio a Fernando Pessoa, comungando da mesma aversão pela reforma ortográfica de 1911 (que o poeta considerou «desnecessária e não urgente») e pelo acordo de 1931 (entre Portugal e o Brasil)1, caracterizando-se os dois momentos pela valorização da escrita fonética em detrimento da ortografia etimológica, que, no entanto, constitui a marca “da cultura greco-latina, origem do mundo moderno”2. Nesse território abstracto, que constitui a “pátria”, identificada com a “língua portuguesa”, revelou-se conscientemente Pessoa, como “poeta-dramático”, criador de vários “actores” e “amigos”, veiculando no uso da palavra escrita e criativa uma cultura que se universalizará, no cumprimento desse Quinto Império espiritual que a “Mensagem” (1934) anuncia.
Quando Bernardo Soares salienta que «a palavra é completa vista e ouvida» aponta os dois “princípios opostos”, que o seu criador, Fernando Pessoa, defendera em relação à ortografia da língua portuguesa, envolvendo o necessário equilíbrio entre “memória visual” (palavra escrita) e “memória auditiva” (palavra falada), ou seja, “cultura/etimologia” e “uso”, concluindo: «ambas as forças são necessárias, porém cada uma, considerada em si, é nociva, e assim nocivo o seu predomínio sobre a outra, […]. […] uma ortografia absolutamente conforme com a pronúncia não tem pois necessariamente razão de assim ser […]»3. Com efeito, a etimologia é o traje da palavra, através do qual se desvenda o significado dos elementos que a “vestem” e que constituem a sua história e “a continuidade da nossa cultura”. Como tal é um acto grosseiro desejar anulá-la, decretando simultaneamente uma obediência que põe em causa a liberdade cultural.
Será interessante retomar as críticas fundamentadas por Fernando Pessoa, a propósito da reforma (1911) e do acordo ortográficos (1931), acima referidos, aplicando-as, porque, na verdade, se ajustam, ao AO de 1990, “desnecessário e não urgente”, que também impôs levianamente o predomínio da “pronúncia” sobre a “etimologia”, através de um processo profundamente polémico cujos porquês se mantêm, exigindo respostas. Escreveu Pessoa, na obra já identificada: «Mas, se havia que reformar, a reforma não haveria de ser senão em tornar o sistema mais lógico, mais coerente consigo mesmo, onde porventura o não fosse, […]». Actualmente, onde está a lógica quando se escreve, por exemplo, na base deste AO, “Egito” e, para o habitante do país, “egípcio”? Onde se situa o critério científico quando se justifica esta situação com “a pronúncia” e se explica a abolição das consoantes mudas, invocando a “teimosia lusitana”»? Parece anedótico, mas leia-se a “Nota Explicativa” do AO de 1990, no ponto 4.2 (“justificação da supressão de consoantes não articuladas”), alíneas d) e f), onde se acusa, de uma forma sobranceira e bizarramente colonialista, não só a «teimosia lusitana em conservar consoantes que não se articulam» quando a «norma brasileira» já «há muito as suprimiu», mas também o facto de os lusitanos «tentarem impor a sua grafia àqueles que há muito as não escrevem, justamente por elas não se pronunciarem.»
Historicamente, a reforma ortográfica de 1911, nunca aceite pelos brasileiros, foi por estes revogada em 1919; o AO de 1931, de início aceite pelos brasileiros, acabou por ser revogado em 1934 (governo de Getúlio Vargas) e o AO de 1945, delineado na «Conferência Inter-Académica de Lisboa para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa», e adoptado pelos brasileiros foi posteriormente rejeitado pelo decreto-lei 2.623 de 21.10.19554, ou seja, 10 anos depois. Neste acordo, exigia-se ao Brasil que conservasse as consoantes mudas não-articuladas, que já haviam abolido, aspecto que esteve na origem da sua revogação. Agora, invertendo-se o «imperialismo linguístico», expressão, então, usada pelos brasileiros (e a nossa ver correctamente), são os autores da “Nota Explicativa” que classificam de “teimosia lusitana”, como se de um “critério científico” se tratasse, o termos mantido as consoantes mudas, respeitando o factor etimológico da ortografia portuguesa (europeia). Não se pode esquecer igualmente que, a propósito do AO de 1990, os linguistas brasileiros, “os mais fundamentalistas”, conforme foi, na altura, sublinhado, propuseram durante a sua discussão que, tendo em conta o número de falantes brasileiros, a língua deveria passar a chamar-se “língua brasileira”. Não representa esta atitude uma aberração do ponto de vista da história da língua e da cultura?
Na obra já indicada, refere ainda Fernando Pessoa que «a palavra escrita consegue escapar aos equívocos inevitáveis da palavra falada», apontando os exemplos de dois verbos de igual som: “coser” (com agulha) e “cozer” (ao lume). Este AO de 1990, de tão “inovador” que deseja ser, chega ao ponto de fomentar o equívoco na própria palavra escrita e basta lembrarmo-nos da confusão entre a preposição “para” e o verbo “parar”, escrito na 3ª pessoa do singular do Presente do Indicativo ou na 2ª pessoa do singular do Imperativo sem o acento agudo, gerando-se assim o equívoco. Não haverá quem não tenha lido o exemplo de «alto, e pára o baile», agora «alto, e para o baile», ou outros títulos de notícias em que temos de retirar o sentido, analisando a categoria morfológica empregue. Ter-se-á transformado o “equívoco” num “critério científico”? Parece que sim!
Como esquecer também que em 1986, ano-génese do AO de 1990, se pretendeu abolir o acento das palavras esdrúxulas e que só o caricato exemplo de «cagado», com dois significados, o substantivo “cágado” e o particípio passado do verbo, fez os mentores desta famigerada aventura recuar na sua proposta?
É ponto assente, e publicamente já assumido, que este AO responde a um “lobby” político, indiferente, como é natural, a toda a actividade espiritual. Esperemos que os portugueses reajam como os brasileiros, e dentro de algum tempo, constatando a degradação da língua portuguesa, herança que devíamos honrar, forcem a revogação deste apressado e polémico AO de 1990. Nesse sentido, chamamos a atenção dos leitores para uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) a qual pode ser lida e assinada no seguinte endereço: http://cedilha.net/ilcao
Servindo-nos novamente da edição de Luísa Medeiros, terminamos com as palavras de Fernando Pessoa, escolhidas para epígrafe da obra já referida e que estão em profunda harmonia com o texto do “ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa”: «Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma.»
Maria do Carmo Vieira
Lisboa, 23 de Abril de 20121 Fernando Pessoa não o cumpre, na sua única obra publicada em vida, Mensagem (1934).
2Fernando Pessoa, A Língua Portuguesa (edição, Luísa Medeiros). Lisboa, Assírio Alvim, 1997
3Idem.
4Maurício Silva (USP), Reforma ortográfica e nacionalismo linguístico no Brasil. (www,filologia.org.br/revista/…/5(15)58-67.html)In Revista Villa da Feira, Terra de Santa Maria, Ano XI, número 31, Junho de 2012
[Texto recebido por email, da autora.]
3 comentários
Um artigo com esta fulgurante qualidade literária ver sòmente luz na imprensa regional diz bem da qualidade da imprensa dita de referência.
Cumpts.
Infelizmente não há muita esperança em que a Assembleia da República tenha em conta os milhares de assinaturas já recolhidas. Os deputados, cuja liberdade de voto também é muito relativa, também não devem ser sensíveis, na sua maioria, à falta de senso deste chamado Acordo Ortográfico. No entanto vale sempre a pena lutar para tentar travar este atentado à Língua Portuguesa. Uma forma mais pragmática será, possivelmente, a de promover uma campanha generalizada de boicote à aquisição de jornais e livros redigidos na “nova ortografia”.
A excelência deste artigo contrasta com a mediocridade e o servilismo da maioria dos deputados, que ao invés de impedirem a degradação da língua portuguesa, actuando no âmbito dos mandatos que receberam para representar o País, estão a soldo de interesses económicos dúbios e do imperialismo brasileiro.
Pela minha parte, já há muito que passei aos actos: não compro livros nem jornais que adoptaram o dito “acordo ortográfico”.