Na quarta-feira, porque a cada ano tudo se repete, lá se celebrará mais um aniversário do 25 de Abril. Tão perto e já tão longínquo, 38 anos. Revolução ou golpe de Estado, conforme a lembrança de cada um. A euforia da libertação, claro, inesquecível. Os belos versos de Sophia, que já tantos estragaram citando-os mal e a despropósito. Os cravos e o Arsenal. Chaimites nas ruas. A vila morena na cidade branca. Otelo e Salgueiro Maia. Símbolos e ilusões. Utopias e desenganos. Avanços perigosos e, no reverso, a quietude.
Tudo isso que ficou, lá longe, mas ainda ao alcance da memória. Certo é que a ditadura não caiu, foi derrubada. Mesmo que nesse acto ela tenha involuntariamente colaborado, de tão gasta. E a verdade é que a democracia, certamente imperfeita, depois se implantou e por aí anda, com as suas virtudes e vícios, as suas recompensas e fingimentos. E, a par dela, a liberdade: de dizer, afirmar, escolher, recusar, contrapor, contestar, protestar.
Imaginemos agora, por momentos, esta curiosa ficção: um escasso grupo de cidadãos chega ao Parlamento e propõe ao Governo e aos deputados uma ditadura. Tal e qual, uma ditadura. Não teria bem esse nome, claro, por causa da carga negativa que arrasta, mas seria uma coisa a bem do prestígio da expressão pátria, da sua unidade essencial, de uma política comum, que esta coisa de ter tantos partidos a dizer-se e desdizer-se a todo o momento (garantiam) é realmente uma canseira. Perante tal proposta, e presente na sessão, o Governo resolveu pedir uns pareceres. Recebeu vários. O Instituto de Política Teórica e Comportamental opunha-se ferozmente. A Associação Portuguesa de Políticos opunha-se radicalmente. O Departamento da Política Caseira da Universidade Nacional opunha-se terminantemente. E a Direcção-Geral das Altas e Médias Políticas opunha-se categoricamente. Ah, havia ainda o parecer da Academia de Políticas Lisbonenses, totalmente favorável. Num parecer assinado, claro está, por um nome rigorosamente independente: o autor da proposta de mudança de regime. Tudo resumido, pesados os prós (um só, mas veemente) e os contras (muitos mas facciosos, logo dispensáveis), foi-se a votos. A unificação política, ou seja, a ditadura, foi aprovada com os votos dos três maiores partidos e a abstenção de um quarto. Houve votos contra, claro, mas apenas 16. E a ditadura passou a lei, aprovada pela democracia.
Um cenário impossível? Com a ditadura sim, pelo menos por enquanto. Mas tudo o que aqui se descreve já se passou em Portugal, no início dos anos 90 do século passado, com o abominável acordo ortográfico (AO). Está nos livros e nos jornais, não é preciso inventar nada. Houve vários pareceres, todos desfavoráveis. E houve um favorável. Assinado, claro, pelo autor do acordo. E o Parlamento miseravelmente votou-o sem o discutir, como se pode ler na acta da Reunião Plenária da Assembleia de República de 4 de Junho de 1991, publicada no Diário da Assembleia da República n.o 87, de 5 de Junho de 1991. Das 32 páginas dessa edição, só duas e meia são dedicadas ao AO e para descrever algumas trocas de palavras entre deputados sobre questões processuais. De resto, discutiram-se ou aprovaram-se temas relacionados com os militares, a actividade cinematográfica, a defesa do consumidor, os regimes de indemnizações nas empresas nacionalizadas ou para vítimas de crimes, as taxas sobre produtos petrolíferos, a cooperação técnica e militar com a Guiné-Bissau e Cabo Verde e até a criação das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto. Isto em quatro horas e meia, entre as 15h25 e as 19h55. No meio disto, o AO foi despachado em menos de um fósforo. Honra ao deputado independente Jorge Lemos, que ainda tentou travar o “monstro” com um requerimento, rejeitado pelos votos do PSD mas que teve votos favoráveis do PS, PCP, PRD e dos independentes Helena Roseta e Jorge Magalhães. No final, o “monstro” passou. PSD, CDS, PRD e 12 deputados do PS votaram a favor. O PCP absteve-se. E houve apenas 16 votos contra. Abril escreve-se hoje abril, com caixa baixa, já repararam?
[Transcrição integral de artigo de Nuno Pacheco publicado na Revista 2 do PÚBLICO de hoje, 22.04.12.]
[Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito (quando dizem ou se dizem) e são por definição de interesse público (quando são ou se são).]
1 comentário
Nesta semana, no final de uma aula em que falei da relação da música com o regime de ditadura, um aluno do 5º ano, relembrando o significado do mês e também lamentando o AO, conclui:
– Professor, Abril devia escrever-se sempre com letra grande.