O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de língua ofi cial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado. Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada.
O assunto é demasiado sério e não se resolve com ofensas avulsas contra uma pessoa que há mais de uma década se dedicou a rebater os escassos argumentos esgrimidos por alguns raros dicionaristas agindo por conta de interesses políticos mal compreendidos. Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografia do Português europeu pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.
Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para “gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos impingir o dito “acordo”. Porém, toda a sua jocosa pirotecnia não acrescenta um átomo às débeis falácias dos professores Houaiss e Casteleiro, quando entenderam “fazer política com a língua” em vez de “fazerem verdadeira política da língua”, como acontece igualmente com Tavares.
Ora, o “acordo” não é mau para um país abstracto chamado Portugal e para os “conservadores” de quem o colunista se pretende rir. Nem sequer é apenas mau para a ortografia e a fonética do Português europeu; é mau sobretudo para a já de si defi ciente aprendizagem do Português. Só para dar um exemplo, as consoantes mudas” que Tavares pretendeu ridicularizar logo no título da crónica não são tiques de bota-de-elástico. Têm funções fonéticas e etimológicas relevantes que só o esquecimento, para não dizer outra coisa, faz desprezar. Foneticamente, abrem as vogais que se lhe seguem e permitem distinguir, por exemplo, “recessão” de “recepção”, já que a tendência do Português europeu falado é, como se sabe, para o chamado “emudecimento” das próprias vogais não sinalizadas.
Além disso, etimologicamente as ditas consoantes “mudas” servem para identifi car étimos comuns, não só dentro do próprio Português, como por exemplo em “Egipto” e “egípcio”, sendo o “p” alegadamente mudo na primeira palavra e pronunciado na segunda; como também para identifi car étimos comuns noutras línguas europeias: “acção” e “activo”, por exemplo, pertencem a uma vasta família etimológica presente não só em línguas latinas como o Francês (“action”, “actif”) mas também no Inglês (“action”, “active”). Por outras palavras, a etimologia e a sua representação gráfica ajudam-nos a saber de onde vimos, se é que a história conta alguma coisa para quem se assina como historiador.
A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa, que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente “acordo” na ortografia portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia” por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante. Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)?
O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguístas portugueses e muitos brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografia, da fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno rectângulo do Sudoeste europeu. Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo” artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!
Manuel Villaverde Cabral
[Transcrição integral de texto da autoria de Manuel Villaverde Cabral publicado hoje, 10.02.12, no jornal “Público“.]
Nota: os conteúdos publicados na imprensa ou divulgados mediaticamente que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.
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Acho que os países de fala portuguesa deveriam adotar a grafia do português de Portugal, sou professora no Brasil.
Excelente texto!
Em primeiro lugar cumpro o dever de revelar o meu actual endereço electrónico. O que consta supra foi eliminado pela internet, não sei porque razão. É o seguinte:
feralberto24@live.com.pt ou feralberto54@gmail.com
Caros amantes da língua de Portugal!
O que se encontra muito bem registado neste excelente texto, há muitos e muitos meses que persisto em defender, em várias dezenas de textos da minha autoria, publicados, todas as semanas, na minha página pessoal da plataforma facebook. Parece–me que os gramaticidas que negociaram este «Pseudo Acordo Ortográfico», de 1990, não conhecem nada da linguística de Portugal, nem da riquíssima origem etimológica de línguas cultas como o Latim, o Grego e o Árabe. Por isso mesmo afirmo que, este «Pseudo Acordo Ortográfico», de 1990, só serve para destruir plenamente a vernácula língua portuguesa. É uma verdadeira «Bomba Atómica», lançada sobre a cultura de Portugal para a destruir. Sou, sempre fui, e serei, um feroz adversário deste «INCULTO PSEUDO ACORDO ORTOGRÁFICO», de 1990. Um gigantesco vírus que pode provocar uma verdadeira «pandemia» linguística entre os países da CPLP. Felizmente que Angola e Moçambique, (Parabéns), não concordaram nem assinaram este «acordo bárbaro». Desejo, sinceramente, que o povo português mantenha e propagandeie o seu conhecimento sobre a língua portuguesa que aprendeu antes deste «Criminoso Pseudo Acordo Ortográfico», de 1990. Quanto a mim, já o afirmei e reafirmo, ENQUANTO FOR VIVO, NUNCA HEI-DE RESPEITAR ESTE PERVERSO INCULTO PSEUDO ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990. É UM ATENTADO CONTRA A LÍNGUA PORTUGUESA. Para mim, está ao mesmo nível do desastre militar de Alcácer Quibir, em que Portugal perdeu a independência. Este é o maior desastre cultural de toda a História de Portugal. É uma traição. Não contem nunca comigo. Viva a língua portuguesa! Viva Portugal.
Saudações do amante do Português vernáculo.
Fernando Alberto
Sei perfeitamente quem é o Dr Vasco Graça Moura. Conheço e respeito o homem e a obra. O mesmo não poderei dizer do “culunista” Rui Tavares. Desconheço completamente de quem se trata, muito embora, a avaliar pela amostra, não lamente o facto.
Antes do mais, diz-se ser um dever deixar-se a língua como está, pois o acordo seria uma intervenção política. Ora, diga-me que língua não tem acordo ortográfico. Quanto à aprendizagem, é arriscado dizer-se se ajuda ou não – a escrita é uma convenção que não é motivada pela maneira como se fala, apesar de intuitivamente o parecer. Por isso, é sempre um código novo para as crianças. Em suma, será igual a aprendizagem. A questão da etimologia é pertinente, mas pergunto: vamos passar a escrever «poer» só para ser visível que o verbo «pôr» tem como origem «ponere»? Ou desconhecemos que farmácia é palavra de origem grega apesar de não mais escrevermos com ph? A etimologia foi-se tornando invisível com a evolução ortográfica do português, mas nem por isso se perdeu – se se estudar. Pode ser que a forma como se fala se altere com o acordo, porém isso já é do campo da adivinhação, e é supor que se fala como se escreve (afinal não era o contrário?), o que levaria por exemplo os falantes a pronunciar as consoantes mudas. Ora a aprendizagem da fala é autónoma da aprendizagem da escrita. Outra questão tem a ver com a ideia de que isto foi congeminado pelos brasileiros – e aqui o conservadorismo raia o complexo de inferioridade mais gritante. Sabia o senhor que o dito trema – afinal tão útil, concordo – desaparecerá na norma brasileira? Nestas coisas há cedências de ambas as partes, senhores. Claro que o acordo tem demasiadas zonas nebulosas, como no uso do hífen. No entanto devíamos manter-nos abertos a delinear um acordo, mais consistente, e não entrar em nacionalismos bacocos baseados em crenças metafísicas – como seja crer-se que a perda consoante é uma perda de alma portuguesa, de identidade. Como se uma língua fosse a alma de um povo, e como se houvesse essências dos povos e mais latamente das coisas. Esse debate filosófico já há muito se ultrapassou. E creio ser este o ponto de partida da crónica de Rui Tavares.
Porque é que os contras do AO90 nunca são contra o AO45?
Gosto tanto, mas tanto, deste texto!! Gosto sobretudo do facto de “pôr o dedo na ferida” quanto aos inexistentes argumentos a favor do acordo (quer da parte de Rui Tavares, quer da parte de seja quem for). Excelente!
Depois desta semana, será que vem aí finalmente a “Primavera ortográfica”, em que as pessoas decidem expressar claramente o seu descontentamento e mudar o estado das coisas? Era bonito. Era mesmo muito bonito. (Março está quase aí!)
Não tenho palavras para elogiar o sereno texto de MVC, com argumentos internos ao tema em discussão, ao contrário da tontice de RT.
Deixo apenas para reflexão 10 exemplos da outra tontice, o AO:
1-º – Egito e egípcios (na 1.ª palavra o p, como não se lia, deixou de se escrever [antes do acordo escrevia-se Egipto]; na 2.ª palavra o p surge do nada, pois Egito devia gerar egitos e não egípcios.
2.º – Cor-de-rosa e água-de-colónia escrevem-se com hífen por causa da consagração pelo uso;
3.º – Cor de laranja e fim de semana escrevem-se sem hífen, apenas porque… não.
4.º – Para (verbo) perde o acento ficando igual a para.
5.º – Pôr (verbo) mantém o acento para se distinguir de por (preposição).
6.º – Pode (pretérito perfeito) leva «obrigatoriamente» acento (pôde) para se distinguir de pode (presente do indicativo);
7.º – Demos (presente do conjuntivo) leva «facultativamente» acento (dêmos / demos) para se distinguir / se confundir com demos (pretérito perfeito);
8.º – Há várias formas simples com 4 grafias correctas: confeccionámos – confecionámos – confeccionamos – confecionamos;
9.º – Rua de Santo António: passa a ter 8 formas gráficas correctas;
10.º – Há um cabeçalho de uma carta (exemplo extremo de variação gráfica permitida) que tem 16 384 formas correctas para ser escrito.
Eu disse 16 384, não é engano. Posso mostrar o exemplo.
# – Manuel Silva
Eu sou!
Digo mais: desde que tenho prestado mais atenção à questão e vou ouvindo e lendo argumentos e estabelecendo ligações lógicas entre factos, que me tenho convencido que Reforma Ortográfica de 1911 foi uma decisão política dos republicanos. Logo sou também contra esse. Logo sou também contra, não por causa dos republicanos, mas porque se tratou de uma decisão política, com objectivos muito escondidos e escuros.
Foi a tentativa de matar uma História, aleijando a língua em que ela se encontrava escrita. Hoje já não é relevante matar a História: já está morta. Até se Inventou uma novilíngua (1984, de George Orwell) e já não se escreve “contos”, escreve-se “estórias”, para a seguir vir alguém escrever “estórias da História” http://estoriasdahistoria12.blogspot.com/ .
A História foi enterrada viva pelas mãos de sucessivos Ministros que assinaram um rio de leis e despachos ao longo das últimas dezenas de anos. Mas ainda se quer ir mais longe e este acordo demonstra isso: é preciso não deixar pedra sobre pedra. Partir tudo, para reconstruir uma espécie de “Internacional Ortográfica”.
O que virá a seguir? Um “Homem Novo”? Acreditem ou não, o esboço já está feito. Eu até penso que veste Armani.
Portanto, Sr. Manuel Silva, até contra a Reforma Ortográfica de 1911 eu sou contra.
# Pedro Pereira
16 384 formas correctas???
Eu adorava ver isso!
Palavra.
Luís Ferreira:
Há tantos casos absurdos que até lhe ofereço mais combinatórias: 524 288 (2 elevado a 18)
É um exemplo extremo, mas é verdadeiro, como poderá verificar.
Trata-se de um cabeçalho de carta (exemplo extremo de variação gráfica permitida pelo novo AO):
Ex. mo / ex. mo (x2) Senhor / senhor (x2)
Prof. / prof. (x2) Doutor / doutor (x2) Cónego / Cónego / cónego / cônego (x4) Monsenhor / monsenhor (x2) Eugénio / Eugênio (x2) Baptista / Batista (x2)
Universidade Federal de Rondónia / Rondônia (x2)
Campus de Santo António (x8) de Rondónia / Rondônia (x2)
Rua / rua (x2) de Santa Eufémia / santa Eufémia / Santa Eufêmia / santa Eufêmia (x4);
Brasil
524 288 (= 2 elevado a 18) formas correctas!!!
E estes exemplos mais banais de «uniformização» da Língua?
Algumas formas simples com 4 grafias correctas:
confeccionámos – confecionámos – confeccionamos – confecionamos;
decepcionámos – dececionámos – decepcionamos – dececionamos;
fraccionámos – fracionámos – fraccionamos – fracionamos;
tectónico, -a – tectônico, -a – tetónico, -a – tetônico, -a;
electrónico, -a – electrônico, -a – eletrónico, -a – eletrônico, -a;
Algumas expressões complexas com 4 ou mais grafias correctas:
Santa Eufémia – santa Eufémia – Santa Eufêmia – santa Eufêmia;
Igreja de Santo António – com 8 formas gráficas correctas;
Factor cardiogénico – com 4 formas gráficas correctas;
Perspectiva cónica – com 4 formas gráficas correctas;
Rua de Santo António – com 8 formas gráficas correctas;
Dactiloscopia electrónica – com 8 formas gráficas correctas;
Expectativa económica – com 8 formas gráficas correctas;
Fracção livre do antigénio da próstata – com 8 formas gráficas correctas;
Mais uniformizador do que este AO não há.
Uau!!!
Tem toda a razão!
Estou sem palavras.
Muito obrigado.
Estou estupefacto. Graças a Deus ainda Há portugueses , que defendem a lingua e sua origem. A propósito como será que esse tal senhor dito historiador, escreve o “há” que escrevi em cima?…à m….
J. Costa:
Importa-se de explicitar melhor o que quer dizer no seu comentário?
É que, para além de enigmático, as vírgulas fora de sítio (umas a mais e outras inexistentes) complicam a compreensão do mesmo.
A puerilidade do texto do Tavares não marecia o trabalho. Enfim, ganhamos um bom artigo de MVC. Mas, francamente, não merecia…
Minha cara gente, concordando ou não com o novo A.O. há que reconhecer a excelência literária do texto do Rui Tavares .Será que ninguém aqui reconhece o sarcasmo do post em causa? E que não se tratava de um texto de análise linguística, opinando pela bondade ou não do acordo em causa…das duas uma:má vontade ou falta de boas leituras!!!!
É verdade que Rui Tavares tem talento literário, EXCEPTUANDO este infeliz texto de chacota sobre o “AO”, que se virou contra si próprio como historiador: ridicularizando a História da língua auto-ridicularizou-se !
[…] Decidiu Manuel Villaverde Cabral (MVC) criticar a crónica de Rui Tavares (RT), por sinal bem esgalhada, sobre o “accordo ortográfico” renegado por Vasco Graça Moura no seu feudo cultural de Belém. Fez bem, a discussão terá de ser feita, ou, para o caso, refeita, porque andou-se vinte anos com o acordo pendurado, com poucas vozes discordantes (diga-se que VGM tem sido um incansável herói da luta anti-acordo, alma lírica de uma luta perdida à partida) e apenas agora, que o dito VGM foi alçado a uma posição de pequeno poder, todos os opositores do acordo se começaram a… opor; ter-se-ão lembrado demasiado tarde, mas que diabo, isso é um pormenor. […]
[…] MANUEL VILAVERDE CABRAL: “Consoantes Mudas ou Colunistas Surdos,” Público, 10 de Fevereiro de […]
[…] Um bom exemplo de reflexão é o texto de Manuel Villaverde Cabral, publicado no Público, que responde directamente à atoarda de Tavares e que reproduzo do ILC – Contra o Acordo Ortográfico […]