«Anunciada revisão do Acordo Ortográfico» [FMV, Público]

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Debate: o Ensino e o AO90

A anunciada revisão do Acordo Ortográfico

Por Francisco Miguel Valada

Sou um professor pensador, não preciso do programa para me dizer o que devo fazer. Os colegas que querem que o programa seja prescritivo e autoritário são meros funcionários
Paulo Feytor Pinto, Jornal de Notícias, 27/3/2010 [link externo]

O professor tem que saber e tem que cumprir as regras que lhe são ditadas
Edviges Ferreira, Sociedade Civil, RTP, 13/1/2010

1. Aparentemente, terá passado despercebida a entrevista de Francisco José Viegas ao Correio da Manhã de 30/10/2011, em que o secretário de Estado da Cultura escancara a porta à revisão do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e impugna o conteúdo quer das actuais “acções de formação”, quer, em última análise, do próprio AO90. Sublinha Francisco José Viegas que embora o AO90 seja “irreversível não quer dizer que não seja corrigível”. O AO90 é corrigível. Houve um responsável político que o disse. É um facto. Resta saber se Francisco José Viegas, além de comunicar tal iniciativa ao Correio da Manhã, informou as escolas, o Governo e “todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo”, não esquecendo os redactores do Diário da República. Na ordem do dia, teremos, em conjectura e se tudo correr bem, além da reavaliação da base IV e da eliminação da base IX, a completa inutilidade das publicações actualmente saídas do Lince com amputação consonântica, mutilação diacrítica, hifenização arbitrária e facultatividade à vontade do freguês. Seria importante que este intuito de Francisco José Viegas passasse das páginas do Correio da Manhã para as mesas de trabalho do senhor ministro Nuno Crato e da senhora presidente da Associação de Professores de Português (APP), Edviges Ferreira.

2. Em entrevista à Única do Expresso de 3/9/2011, Nuno Crato alegava que o AO90 “é um facto. Como disse salvo erro o ministro dos Negócios Estrangeiros, neste momento não é uma questão de opinião” [link externo]. Antes pelo contrário. Enquanto o desígnio de Francisco José Viegas não se concretizar, o texto em apreço será sempre uma súmula de opiniões órfãs e descosidas e não uma colectânea de factos comprováveis. Desafio o senhor ministro a ler a alínea c) do ponto 4.2 da Nota Explicativa e a exigir: i) estudos sobre o “enorme esforço de memorização” das crianças de 6-7 anos diante dos P de recepção e C de selecção pré-AO90; ii) estudos que comprovem um menor “esforço de memorização” perante o “-eção” da receção AO90 e o “-essão” da recessão comum; iii) averiguar se esse “esforço de memorização” levou os autores do AO90 à criação, na base IV, 1.º, b), do espectro que ensombrou a recta final do século XX: a enigmática figura da letra C em aflição e em aflito…

3. Há dois meses, assustei-me com o formidável objectivo que Edviges Ferreira pretende obstinadamente atingir: “Penalizar os seus alunos que escreverem com a antiga grafia” (PÚBLICO, 8/9/2011). Aparentemente, nada demove a presidente da APP da exemplar aplicação dos respectivos e correspondentes correctivos, nem sequer a nota ministerial de 6/9/2011 a determinar que se “considerarão como válidas exclusivamente as regras definidas pelo AO a partir dos anos letivos [sic]” 2013-14 (6.º ano) e 2014-15 (4.º, 9.º, 11.º e 12.º anos). Seis dias depois, a presidente da APP voltava à carga no Correio da Manhã (12/9/2011), num registo mais suave, sem soar a palmatória: “Entendo que se deve penalizar os erros, mas isso fica ao critério dos professores” . As regras determinam 13-14 e 14-15, mas Edviges Ferreira quer fugir para a frente e começar a castigar de rompante, em 11-12, sem vocabulário ortográfico estável, sem acções de formação esclarecedoras, sem consideração ponderada, séria e objectiva dos pareceres científicos.

4. Assegurava a presidente da APP, na edição de 7/9/2011 do Jornal de Letras, que “contra as mudanças há sempre muitos “velhos do Restelo””. Sempre me surpreendeu o silêncio com que os especialistas em estudos camonianos reagem a este tropo recorrente: o Velho do Restelo vem invariavelmente à tona para silenciar a opinião contrária. Em vez de se discutir, debater e esclarecer, emerge o venerando homem e afunda-se a discussão. Na estrofe 94 do Canto IV d”Os Lusíadas, não é prestada qualquer informação sobre o mister da personagem. Durante a prelecção a que se dedica (estrofes 95-104), apesar de revelar aptidão para discorrer sobre mitologia, geografia e actualidade de finais do século XV, o Velho do Restelo não alude a qualquer aspecto cartográfico, não se pronuncia sobre a construção e a reparação das naus, remetendo-se a um prudente silêncio acerca de instrumentos náuticos, cálculos matemáticos e cosmográficos. Temos a certeza de que a opinião do “Velho do Restelo” não é uma opinião técnica avalizada. Pelo contrário, “contra as mudanças” foram elaborados pareceres, milagrosamente desencarcerados da gaveta onde se encontravam a acumular bolor, graças à acção da senhora deputada Zita Seabra. Reduzir quem se dedica ao estudo das escritas de base alfabética à condição de Velho do Restelo é inaceitável. Gregory Bateson (a propósito do “órgão da linguagem”) recomendava prudência na leitura das metáforas de Noam Chomsky. O mesmo conselho fica para quem envereda pelo atalho da menção àquele que, do cais, com voz pe?ada hum pouco aleuantando, se limitou a reflectir uma opinião não especializada sobre a gesta.

5. Teria Paulo Feytor Pinto (ex-presidente da APP) abandonado a óptica do “basta uma meia hora para os professores aprenderem as novas regras. E depois é aplicá-las” (PÚBLICO, 2/9/2009)? Teria sido anunciado que Paulo Feytor Pinto subscrevera a Iniciativa Legislativa de Cidadãos (https://ilcao.com/)? “Regras com ambiguidades que abrem a porta a arbitrariedades e que, por isso, são uma ameaça à transparência” (PÚBLICO, 8/9/2011 [link externo]) seria a solução do enigma defina as bases IV e IX do AO90 em termos técnicos e em dezoito palavras. O repto era, afinal, outro.

[Transcrição integral de crónica da autoria de Francisco Miguel Valada publicada no jornal Público de 24.11.11. Link disponível apenas para assinantes do jornal online. Links inseridos por nós no texto.]

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11 comentários

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  1. Então, segundo FJV, o AO90 é «irreversível»? Pois… deve ser tão «irreversível» como o acordo de 1945…

    Não faltam, no grande «cemitério da História», ideias, factos, entidades e até países «irreversíveis». Como o «Reich dos 1000 anos». Ou a URSS. Aliás, Edviges Ferreira teria sem dúvida uma carreira de sucesso com o Adolfo ou com o José.

    O «aborto ortográfico» não é «corrigível» mas sim, pura e simplesmente, revogável.

  2. Ai esta senhora Edviges!… Quem assim a nomeou, parece que não mediu o alcance do erro… LOL… Não admira que não estime as palavras, e ainda estime menos as crianças…!
    O mesmo se aplica a Edite (do verbo editar?) Estrela (do verbo estrelar?)… Coisas… LOL

    • Manuel Luís de Bragança on 25 Novembro, 2011 at 11:26
    • Responder

    Já dizia o poeta “Pensar é como andar à chuva: chateia”. Quando o secretário “do estado da cultura” afirma, sobre o acordo ortográfico, que “o facto de ser irreversível não significa que não seja corrigível” admite que o acordo é passível de correcção, ou seja, que está errado. No entanto é simultâneamente irreversível. Ou seja: está mal mas implementa-se.
    Referindo-se ao acordo ortográfico como algo que “dá configuração mais poderosa à língua” quererá dizer o quê? Que a torna bífida? É confrangedor ler/ouvir este tipo de expressões, na linha do “OMO lava mais branco”, quando o assunto é a Língua Portuguesa.

    • Maria José Abranches on 26 Novembro, 2011 at 0:22
    • Responder

    Li a entrevista de FJV. Resumindo, as grandes linhas da política “nacional” para a língua materna dos portugueses são:
    – O Acordo Ortográfico, que é “irreversível”, mas “corrigível”. (Daí que logicamente e com toda a honestidade esteja já em aplicação nas escolas e em breve na administração pública…).
    – Como o AO já está aí, “é preferível aproveitar o que tem de bom: dá uma configuração mais poderosa à língua portuguesa.” (O que isto possa significar em termos linguísticos ou outros não se vislumbra…).
    – “Daqui a uns anos o português de Portugal desaparecerá da Internet, engolido pela variante mais forte, que é o português do Brasil. (Grande desígnio nacional, defendido publicamente, sem complexos!…).
    – “É preferível assumir que essa situação existe e tentar fazer o melhor.” (Isto é, sejamos pragmáticos: vamos dar uma ajuda, pois o mais fácil é macaquearmos a ortografia do Brasil, para parecermos brasileiros e mais rapidamente desaparecermos…).

    Ao serviço desta causa “nacional”, a Secretaria de Estado da Cultura também “apoia” (isto significa o quê?) essa colecção que por aí anda, destinada a massacrar os nossos clássicos!

    Portugal no seu melhor!

    • James Goulart on 26 Novembro, 2011 at 19:13
    • Responder

    A grande verdade é que o AO90 está aí e queiramos ou não, permanecerá. Ainda que consigam as assinaturas necessárias isto não quer dizer que A.R irá revogá-lo.
    O português do Brasil impera na internet. Basta uma simples olhadela na Wikipédia ou uma pesquisa no Google para que isto se constate facilmente.
    Inteligente seria fazer o que a Espanha acaba de fazer. Sabendo que sua variante não ‘domina’ o mundo, optou por fazer mudanças em conjunto com outros 20 países. Claro que isso seria esperar muito de Portugal. Afinal, é um país que aprendeu a chamar a destruição de povos e culturas mundo a fora de, simplesmente, “conquistas gloriosas”. Tudo bem, deixemos a história em paz.
    Enfim, enquanto estamos discutindo aqui contra a nova ortografia a mesma está sendo ensinada a milhares de crianças portuguesas ou brasileiras. Hoje sinto que de certa forma Portugal começa a colher o que um dia plantou.
    Ainda que eu seja brasileiro, admito que não gostei das mudanças ortográficas.

    Cumpts.

  3. O que impera na internete é mau português. O abrasileiramento recente só reforça.
    Cumpts.

    • James Goulart on 28 Novembro, 2011 at 0:56
    • Responder

    Ainda que nos guiemos por normas diferentes concordo com o que disseste. E hoje o falar ou escrever português em desacordo com as normas vigentes, seja a brasileira ou mesmo a portuguesa, tem-se tornado comum. Lembro-me de um tempo em que só se via tais disparates no Brasil. Hoje é possível ver isso até mesmo em Portugal. Penso que a juventude portuguesa assim como a brasileira não se importa minimamente com tais questões.
    Cumpts.

    • Luís Ferreira on 28 Novembro, 2011 at 22:52
    • Responder

    Pois impera. E um dia escreveremos assim:

    http://www.vivaolinux.com.br/dica/Compilando-Allegro-no-Linux

    • James Goulart on 29 Novembro, 2011 at 0:55
    • Responder

    @Luís

    Ou escreveremos assim:
    http://www.linguateca.pt/Repositorio/ErrosMedeiros/

    Cumpts

  4. Os erros de brasileiros ou de portugueses em nada nos deviam impedir de defender a língua que é comum a ambos. E este acordo é completamente doido, nem faz sentido, nem unifica coisa nenhuma. Acho que seria um motivo para ambos se juntarem e exigirem que políticos de profissão deixem de mexer e remexer naquilo que não lhes compete, especialmente contra o parecer de quem realmente sabe do assunto. Mas isso é só a minha opinião, claro…

  5. O Zé recorda-se da revista Cláudia nos anos 80, e de achar aquilo… tão estranho como o Espanhol.
    ‘Atualmente, ele para para pensar…’

    -como foi possível?,
    -quem foi capaz?

    -foram os mesmos que destruiram todo o futuro da nossa Pátria, Zé… pessoas inteligentes e conhecedoras, visionárias, altivas e com muita medalha de mérito ao dependuro.

  1. […] vez em quando, tão certo como dois e dois serem quatro, aparecem as objecções à TRR, emerge a enigmática figura da letra C em aflição e em aflito, projecta-se o espectro da corrente mais extremada do “anti-AO” (*) e intervêm os adeptos do […]

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