A aldeia de Astérix [jornal Público]

Os leitores, o PÚBLICO e o acordo ortográfico

Esta ainda não é a aldeia de Astérix

click para ver ampliação da página original digitalizada Não sei o que pensa a generalidade dos leitores acerca da decisão tomada pelo PÚBLICO de se manter fiel às normas da ortografia tradicional. Só posso presumi-lo, sem rigor estatístico, a partir da correspondência que me é dirigida. A verdade é que não me chegam reclamações contra essa opção editorial, mas recebo, com alguma frequência, manifestações de apoio à orientação adoptada – vindas sobretudo de leitores que querem saber se o seu jornal se propõe continuar a resistir à mudança ortográfica já consumada em vários e influentes órgãos de comunicação social.

Na direcção do PÚBLICO é igualmente “empírico” – pois “nunca foi feito qualquer inquérito” – o conhecimento das preferências dos leitores sobre a adesão ou não às regras do acordo ortográfico (conhecido por AO 90) que já se encontra em vigor, embora ainda longe de uma aplicação generalizada. “Mas é sintomático” – sublinha o director adjunto Nuno Pacheco – “que todas as cartas ou mensagens que recebemos sejam contra o AO 90 e não a seu favor“. Tal como é sintomático que apenas dois cronistas (Vital Moreira e Rui Tavares) tenham feito questão de escrever segundo as novas regras (o que aceitámos, referindo isso mesmo; podíamos ter recusado, mas não o fizemos porque prezamos acima de tudo a liberdade)”.

A reforçar esta percepção de que as simpatias dos leitores se inclinarão mais para a manutenção da ortografia tradicional, a mais recente tomada de posição do jornal contra o AO 90 (“Um acordo inútil”, editorial do passado dia 4) deu origem a uma torrente de muitas dezenas de mensagens de apoio, que vão da simples congratulação (“É bom poder ainda ler as notícias em português correcto” – Mafalda Amado; “Fico feliz por saber que alguém dos media não assina o novo acordo ortográfico” – Ana Maria Gonçalves) à sugestão de intervenção política (“Proporia, dentro da legislatura que se vai iniciar, uma tão rápida quanto possível revisão do acordo” – Armando Benfeito). Na sequência desse editorial, e de uma crónica de Nuno Pacheco, que a 6 de Junho criticava a primazia dada à fonética pelos defensores do acordo, o tema regressou durante uns dias ao espaço das Cartas à Directora (com um leitor a criticar os argumentos utilizados pelo PÚBLICO e outros a subscrevê-los) e ao debate nas páginas de opinião.

Na qualidade de provedor do leitor, não vejo motivo para discordar da resistência da direcção do PÚBLICO à mudança ortográfica. Mas cabe-me procurar respostas às interrogações dos leitores que manifestam inquietação pela sustentabilidade futura dessa posição, quando se aproxima – se não houver alterações de calendário – a adopção das – novas regras no ensino e nos documentos oficiais.

É o caso, entre outros, do leitor Rui Valente, que já em Março passado escrevia: “Com a adesão da RTP à televisão em ‘dirêto’, estamos cada vez mais cercados por este disparate nacional que dá pelo nome de AO 90. Sendo que a política do PÚBLICO face ao acordo, expressa em editorial, é a de que este não será aplicado enquanto tal for possível, receio que também o PÚBLICO possa, um dia, entender que já não é possível’ continuar a escrever como escreve. Imagine-se um cenário (longínquo, esperamos) em que já toda a comunicação social aderiu ao acordo, a nova norma é ensinada nas escolas, toda a comunicação oficial é feita pelas novas regras e as agências publicitárias (e respectivos outdoors nas ruas) cumprem também o AO 90. Não seria de estranhar que, num cenário assim, o PÚBLICO, para evitar o arrastar da coexistência entre duas grafias, reconsiderasse a sua posição”. Sugeria este leitor que, “antes de chegarmos a esse cenário”, o jornal encarasse a possibilidade de “assumir uma posição combativa”, fazendo sua, ou pelo menos divulgando-a, a causa dos que se opõem ao AO 90, apoiando nomeadamente «um movimento [em curso] para lançar uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos na Assembleia da República, com vista à revogação do actual acordo”.

click para ver ampliação da página original digitalizada Recentemente, o mesmo leitor lançou um novo desafio: “Gostaria de ver o ‘meu’ jornal renovar o propósito enunciado” em Dezembro de 2009 (quando o PÚBLICO revelou que não iria adoptar a nova grafia), “mas gostaria ainda mais de o ver ir mais longe, proclamando uma recusa simples, mas liminar, inequívoca e sem prazo do AO 90″. Tendo o compromisso inicial sido reafirmado na edição de 4 de Junho – em que se sugeria mesmo o “corajoso abandono” do acordo -, quis saber se a direcção editorial considerava sustentável manter essa posição face à prevista generalização da nova ortografia e, nomeadamente, à sua anunciada introdução nas escolas no próximo ano lectivo.

Recebi uma resposta clara. “Sim. Porque achamos que ainda é possível inviabilizar o acordo” – afirma Nuno Pacheco, para quem “a forma como tal adesão se fez (contornando o texto inicial do próprio acordo, que obrigava ‘à ratificação de todos os Estados’ para avançar, o que não sucedeu) mostra bem como o processo foi sobretudo político e não linguístico/científico”. “Os muitos argumentos denunciando as suas incongruências bastarão” – acredita – “para reavaliá-lo”.

Solicitado a explicitar melhor o sentido da posição anteriormente divulgada (“no espaço noticioso, o jornal mantém como regra não acatar tal acordo enquanto tal for legalmente possível”), escreve o director adjunto do PÚBLICO: “O ‘legalmente possível’ refere-se à ameaça, velada, de que o AO 90 terá forma de lei dentro de três anos, coisa que não lembrou a ninguém, nunca, em matéria de ortografia, mas que os defensores do AO brandem, à falta de argumentos consistentes (…). É o argumento da autoridade contra o argumento da razão. Haverá multas? Processos judiciais? Não se sabe. Daí o ‘legalmente possível’, embora a nossa determinação seja mantê-lo para sempre, porque achamos que só isso faz sentido”.

Quanto à posição mais “combativa” sugerida por Rui Valente, o mesmo responsável editorial manifesta reservas: “O PÚBLICO perderá crédito se, neste campo, se substituir à sociedade civil, assumindo qualquer proselitismo na matéria e tornando-se uma espécie de ‘jornal de combate’ antiacordo. Mas do ponto de vista editorial bater-se-á por isso, claro, no espaço de opinião, abrindo as suas páginas ao debate necessário. E às iniciativas que forem tendo lugar na sociedade civil, onde o caso deverá resolver-se.

Fica assim mais clara a doutrina do jornal nesta matéria, e aparentemente a contento dos leitores que têm manifestado apreensão face a um eventual recuo na “determinação” anunciada. Poderá dizer-se que as incógnitas de natureza legal referidas por Nuno Pacheco deixam ainda a sombra de uma dúvida, e que essa é uma dúvida inevitável. E também não me parece possível predizer o que acontecerá se, em vez da inviabilização do AO 90 desejada pela direcção do PÚBLICO – ou de uma larga frente de “objecção de consciência” à sua efectiva aplicação -, se vier a assistir, a prazo, à adopção generalizada da nova ortografia na educação, na edição, na comunicação, dando lugar a um cenário tipo “aldeia de Astérix”, como o antecipado por Rui Valente quando escreve: “A isto se resume o meu desafio ao PÚBLICO: se a minha língua não pode ser preservada no meu país, que o seja ao menos num jornal do meu país”.

Num tal cenário, seria avisado conhecer com o rigor possível o que pensa a generalidade dos leitores do PÚBLICO. O que é mais uma razão para manter o debate vivo nas páginas do jornal.

José Queirós, Provedor do Leitor

[Esta é uma transcrição integral do artigo do Provedor do Leitor, José Queirós, publicado hoje, 26 de Junho de 2011, no jornal Público. Os destaques a bold e sublinhados são de nossa responsabilidade.]

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4 comentários

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  1. Anima-me ver o “Público” aclarar a sua posição. E se chegarmos algum dia à “aldeia do Astérix” exilar-me-ei lá com os bravos, pois que – Por Toutatis! -, dos fracos não reza a História.
    Cumpts.

    • Maria Silva on 26 Junho, 2011 at 21:54
    • Responder

    Pessoalmente, não gosto do acordo, do ponto de vista linguístico, mas compreendo o objectivo (político) que está na sua base. Ainda não o adoptei, porque o jornal oficial do País, o Diário da República, também ainda não o fez, e não vejo por que razão deverei orientar-me pelas decisões dos diversos meios de comunicação social. Julgo saber que o D.R. passará a escrever na nova forma a partir de Janeiro de 2012. Se assim for, nessa altura segui-lo-ei.

  2. Muitos terão de o fazer (aderir) por razões disciplinares laborais (no Estado ou nas empresas). Infelizmente, essa será uma pressão (ainda que ilegítima) mais difícil de combater.
    Parabéns ao PÚBLICO pela coragem e por saber ficar do lado da Razão.

  3. @PJA Mas há algum impedimento legal à manutenção da escrita pré-acordo? Os jornais não podem escrever lá o que bem entenderem da forma que bem entenderem? Podem sempre pôr um disclaimer a dizer que o texto não está de acordo com a ortografia em vigor…

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