«Reflexos cidadãos» [carta ao jornal Público]

Ex.ma Senhora Directora do “Público”,

Reflexos cidadãos

Costumo dizer que a democracia é uma senhora muito antiga, muito digna, muito exigente e sempre insatisfeita. Trata-se de facto de uma construção minuciosa, rigorosa e permanente que nos convoca a todos, em todos os momentos. E que exige de nós um esforço constante de busca da verdade, pela procura de informação, pelo estudo, pela reflexão crítica, pela abertura aos mais diversos pontos de vista e opiniões. Há que duvidar das certezas, sempre e sobretudo quando não suportam o confronto com as interrogações e as dúvidas que legitimamente suscitam.

Gosto de recordar (cito de memória) Pierre Mendès France: “só haverá verdadeira democracia, quando a sociedade for constituída por verdadeiros cidadãos agindo permanentemente enquanto tais”. E o que é um verdadeiro cidadão? “É aquele que não deixa aos outros a responsabilidade de decidir daquilo que lhe diz respeito e à comunidade a que pertence.”

Vêm estas considerações a propósito da imposição acelerada do Acordo Ortográfico de 1990, de que a maior parte dos cidadãos portugueses está a ser vítima, por parte de quem detém o poder político – Presidente da República, Governo, Assembleia da República – e de alguns media, com destaque para a RTP, que tem particulares responsabilidades de serviço público.

De salientar que, além de aplicar o Acordo, a RTP apresenta um pequeno programa – agora consagrado ao português “correto”, que já está a “ensinar” a escrever com as novas regras. Aproveito para denunciar este programa, do meu ponto de vista, muito mal concebido, visto que uma língua não é feita de palavras isoladas, e mais nocivo do que esclarecedor, até porque sugere erros em que as pessoas nunca antes tinham pensado!
Mas esta pressa em “ensinar” o Acordo – e não em discuti-lo – verifica-se também no sector da Educação, já que os professores são bombardeados com propostas de formação sobre o Acordo, promovida designadamente pelas editoras e pela Universidade Aberta. Aliás, há já muito tempo que o Ministério da Educação vem falando a duas vozes. Os técnicos do GAVE, por exemplo, já nas instruções para os exames de 2010 aconselhavam a aceitação das grafias que aplicassem o Acordo! E ainda não havia nada de oficialmente decidido quanto à entrada em vigor do mesmo. Num momento em que a nossa língua está de rastos no ensino, fruto das múltiplas experiências, teorias e reformas pedagógicas das últimas décadas, faltava-nos “a cereja sobre o bolo”, como dizem os franceses: a instabilidade, a desorganização, a aventura e a desautorização duma ortografia consolidada, com 66 anos de aplicação e de estudo!

Pequeno parêntese: contrariamente aos sonhos de grandeza de quem nos governa, nenhuma credibilidade internacional pode trazer à nossa língua o facto de andar agora “a aprender a escrever”! Visibilidade e descrédito talvez nos traga, como povo capaz de ridicularizar a própria língua, com pelo menos oito séculos de História e de vida, e cujos primeiros textos escritos conhecidos datam de 1214-1216!

Segundo um conceituado professor universitário francês, especialista da língua portuguesa, a definição clara da norma, a sua solidez e estabilidade são trunfos que valorizam qualquer língua aos olhos de quem a aprende e ensina no estrangeiro:
«A norma de Portugal é bastante fácil de definir, pois ela goza de um vasto consenso e foi muitas vezes estudada. A do Brasil, pelo contrário, coloca um problema específico, pois está longe de ser universalmente reconhecida pelos próprios brasileiros. Enquanto esperamos que, como em Portugal, um consenso se estabeleça no Brasil, a apresentação da norma brasileira terá de permanecer muitas vezes incerta e imprecisa.» (in Manuel de Langue Portugaise – Portugal-Brésil , Paul Teyssier, Éditions Klincksieck, 1976, traduzido do original francês – o destaque é meu).

A discussão pública que uma questão desta gravidade exige, pela “vandalização” que representa da nossa língua, o português de Portugal, tem sido ultrajosamente escamoteada, para criar a ilusão do consenso que não existe e do facto consumado, conceito inaceitável para cidadãos que se prezem.

Esta minha carta, reflexo cidadão, foi-me inspirada pelo artigo de Pacheco Pereira, no “Público” de 12 de Fevereiro, intitulado “Weimarzinho”: “A consciência cultural da democracia, das suas instituições, das suas formas e procedimentos dissolve-se por todo o lado. O populismo e a demagogia crescem exponencialmente.” E ainda: “Por cá, em Weimarzinho, a língua torna-se tropical e africana (como os capitais e a banca) e afasta-se velozmente do latim por diktat do Estado e tratado de papel passado (eu quero no “Público” a grafia anterior ao Acordo Ortográfico).” Também eu e muitíssimos outros portugueses confiamos no “Público” para nos ajudar a defender a dignidade da nossa língua!

Outro reflexo cidadão: em anexo, segue um protesto que enviei para a RTP, logo a 17 de Janeiro último e que, com o título “Acuso a RTP”, foi publicado na “Gazeta da Beira” e no sítio da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico (http://www.cedilha.net/ilcao). Devo dizer que foi graças ao “Público” que soube desta iniciativa, que imediatamente subscrevi, com a qual venho colaborando e que me empenho em divulgar por todos os meios ao meu alcance.

Termino transcrevendo o último parágrafo duma insuspeita e esclarecedora análise “do percurso histórico da questão ortográfica no Brasil do século XX”, intitulada “Reforma ortográfica e nacionalismo linguístico no Brasil”, da autoria de um professor brasileiro, Maurício Silva (USP) e que vale a pena ler integralmente:
“Assim, pode-se dizer que grande parte da discussão em torno da ortografia da língua portuguesa – como, de resto, em torno da própria língua – redunda na tentativa de afirmação nacionalista de uma vertente brasileira do idioma, em franca oposição à vertente lusitana.” (in http://www.filologia.org.br/revista/artigo/5(15)58-67.html)

Os meus cumprimentos e agradecimentos pelo respeito pela nossa língua de que o “Público” vem dando provas.

Maria José Abranches Gonçalves dos Santos
(Prof. Aposentada do Ensino Secundário – Português e Francês; ex-Leitora na Universidade de Paris III)

(Enviada para cartasdirector@publico.pt, a 04/03/2011)

[Transcrição integral, com autorização da autora, cujo endereço e contactos foram aqui omitidos.]

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9 comentários

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    • MARIA AMÉLIA SARMENTO on 27 Março, 2011 at 14:23
    • Responder

    Concordo inteiramente com tudo o que neste artigo se diz, pois igualmente acho o novo acordo ortográfico um total descrédito da nossa Língua mãe.

    • Lourival M. de Souza Jr. on 27 Março, 2011 at 14:40
    • Responder

    Olá, tudo bem? Sou brasileiro, mas repudio esse acordo com todas as minhas forças. Eu sempre tive muito apreço pelo português europeu justamente pelo fato de ter preservado traços etimológicos herdados do latim. Aqui no Brasil, a língua foi completamente “detonada”, parece qualquer coisa, menos português. Sou daqueles que acreditam que a língua falada e escrita no Brasil não é a portuguesa, mas a “brasileira”, mesmo.

    Faço um apelo sincero ao povo português: lembrem-se de que seu maior patrimônio é sua língua, pois ela expressa visceralmente a essência desse grande país, tudo que ele representa na história mundial, toda uma peculiaríssima trajetória enquanto nação.

    Escrevo em português brasileiro apenas por ter nascido brasileiro e ter aprendido esta variante da língua, mas tenham certeza: se português fosse, me recusaria terminantemente a aderir a essa aberração chamada “AO de 1990”.

    Sempre que acesso algum site português e vejo nele a nova grafia, paro de lê-lo imediatamente, não suporto a idéia de que a imprensa portuguesa está em sua maior parte acovardada e não tem a dignidade de defender esse patrimônio maior que é a língua portuguesa européia.

    Por favor, portugueses, não desistam, lutem até onde lhes for possível contra esse atentado cultural. Espero que daqui a algum tempo vocês consigam alguma mudança efetiva no sentido de levar o governo português a revogar esse acordo estúpido. E também espero que vocês boicotem todos os órgãos de imprensa que aderiram ao mesmo.

    Para terminar, também quero parabenizar o Público por essa atitude sensata, espero que o jornal se mantenha firme em seu propósito de defender a língua portuguesa e de lembrar aos portugueses que eles devem fazer o mesmo, se por acaso prezam de verdade a própria cultura.

    Abraços…

    • Maria José Abranches on 28 Março, 2011 at 17:25
    • Responder

    Caro Lourival M. de Souza Jr.,

    Muito obrigada pelo seu belíssimo texto e pelo ardor com que aprecia, valoriza e defende o português europeu!
    Sou contra este Acordo desde que ele apareceu e milito energicamente contra ele desde Abril de 2008. Obrigada pelo seu apoio e compreensão.
    Oxalá possam os meus compatriotas ser sensíveis aos seus argumentos!

    Com toda a simpatia,

    Maria José Abranches

  1. E’ engracado falar de democracia, pq isso leva ‘a pergunta: porque e’ que 10 milhoes de pessoas falantes de Portugues devem poder impor a sua vontade ou opiniao aos restantes 200 milhoes de pessoas que tambem falam Portugues?

  2. @ Toni
    Duzentos milhões? Já os contou? Já os ouviu? Falam todos português?
    Cumpts.

    • Manuela Carneiro on 2 Abril, 2011 at 19:29
    • Responder

    Se a Língua é de Portugal o país impõe.

    • Rui Valente on 3 Abril, 2011 at 1:41
    • Responder

    @ Toni
    Não se trata de 10 milhões a impor algo a 200 milhões.
    Trata-se de 10 milhões a evitar que algo lhes seja imposto.
    Ninguém quer impedir o Brasil de escrever como quiser.

  3. Toni,
    quem não entende as coisas e, ainda assim, se permite ter opinião corre o sério risco de produzir asneira.
    Como é óbvio (mesmo para quem sofra de preguiça mental), nenhum português pretende obrigar algum país a adoptar esta ou aquela ortografia. Temos mais com que nos preocuparmos. Aquilo que os militantes anti-acordo não querem é ver a sua ortografia nacional vilipendiada por um bando de analfabetos.
    Que os brasileiros escrevam como quiserem! Nada contra!
    Mas, não mexam na nossa ortografia. Aliás, sendo nós apenas 10 milhões, nenhum mal ao mundo há-de vir por continuarmos a usar a nossa norma…
    Percebeu, ou é necessário um desenho?

    • Maria Fernanda Pinto on 30 Junho, 2011 at 15:27
    • Responder

    Essa de um país ter uma língua e ter de abdicar dessa mesma língua em favor de outra criada para satifazer as necessidades de um MAIOR número de pessoas que pensam que falam a mesma (mas não falam!), é de tal maneira infantil que até faz pena!!! Venham dizer isso para França, Inglaterra, Alemanha, etc … levam logo no nariz!
    Esse senhor Toni, devia inventar uma forma de expressão só para ele, de preferência “gesticulativa”! Iria mais com a sua lógica!

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