«Primeiro Ato (e depois desato?)» [Nuno Pacheco, “Revista 2”, 02.06.13]

NP_Rev2_02Jun2013Todos os pretextos são bons para falar dos irmãos Gershwin e este é tão bom como qualquer outro. Lembram-se da canção Let”s Call The Whole Thing Off? No filme Shall We Dance (Vamos Dançar?, 1937), coube a Fred Astaire e Ginger Rogers cantá-la, em dueto. Era (foneticamente) assim: “You say eether and I say eyether, You say neether and I say nyther (…), You like potato and I like potahto, You like tomato and I like tomahto (…) You say laughter and I say lawfter, You say after and I say awfter.” Ira Gershwin (o letrista, a música fê-la o irmão George) brincava com a pronúncia para colocar um casal em desavença: se um gosta de “putéitóu” e “tuméitóu” e outro de “putatu” e “tumatu” como haviam de se entender, hã? Enquanto pensam, experimentem ouvir a versão, também em dueto, que deste tema fizeram Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. Absolutamente impagável.

Gershwin à parte, “divergências” destas também se encontram noutros ramos. Na política, por exemplo. Eça de Queirós, nas suas Farpas (que reuniu em 1890 num livro intitulado ‘Uma Campanha Alegre’, cuja leitura vivamente se aconselha), já notava “divergências” assim entre os partidos da monarquia constitucional. Uns defendiam as “liberdades públicas”, outros as “públicas liberdades”. Como haviam de se entender, nesse intransponível abismo? Muitas décadas depois, também os partidos da extrema-esquerda portuguesa se combateram como inimigos por defenderem coisas absolutamente inconciliáveis. Um queria Paz, Pão e Liberdade; outro Liberdade, Paz e Pão; e outro, finalmente, Pão, Liberdade e Paz. O preço destas “diferenças” era um ódio vertido em escaramuças constantes.

Hoje, felizmente, apesar de crise e ‘troikas’, estamos mais civilizados. Ou não? Vejamos: há quem diga que, no Parlamento, se votou a co-adopção de crianças por casais do mesmo sexo. E que isso pode abrir portas à adopção, coisa perigosa. E há quem garanta que não foi nada disso: o que se discutiu foi a ‘coadoção’, que pode abrir portas à ‘adoção’, coisa bem diferente. Claro que há o problema da adaptação das crianças, dizem uns. Nem pensar, respondem outros. O que há é um problema de ‘adatação’. E está dito. Mas isso dependerá da capacidade intelectual de cada um… Errado: o que conta mesmo é a capacidade ‘inteletual’. Sim, a do ‘inteleto’. A que faz as pessoas “inteletentes”, como toda a gente sabe. O problema pode ser, no entanto, detectado a tempo. ‘Detetado’, quis vossa excelência dizer. Agora já não se detecta, só se ‘deteta’. De teta? Mas isso não tem a ver com os lactentes? Não, tem a ver com os ‘latentes’, que estão em repouso e por isso podem ser adotados. Ou seja, pode-se-lhes conceder um dote. De preferência em “late”, que é o que eles bebem quando são pequeninos. Senão não eram latentes, perceberam? E isto não é ilusão de óptica, é de ‘ótica’, portanto não se admirem se virem alguém com três ouvidos. Pode ser para ouvir Gershwin.

Houve um tempo em que portugueses e brasileiros brincavam com as suas diferenças: comboio e trem, eléctrico e bonde, autocarro e ônibus, gelado e picolé, rebuçado e bala. Agora até isso deixou de ter graça, porque são os próprios portugueses que, atolados na mixórdia criada com o chamado acordo ortográfico (AO), transformaram a ironia de Gershwin no pesadelo do momento. Os disparates que se ouvem e lêem são de aterrar o mais pacato dos cidadãos (já ouvi gente com responsabilidades a dizer ‘corruto’ e ‘corrução’ tal como ‘espetadores’ ou ‘efetivo’ sem acentuação no E). Há um grupo, felizmente reduzido, que vê nesta amálgama uma espécie de Graal linguístico e continua embevecido com os seus efeitos. Género “tuméitóu” e “tumatu”, é bom de ver. Mas felizmente há uma maioria que, aos poucos, se vai desta canga libertando com alívio. No dia 23 foi a Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, por unanimidade, votando pela “não-aceitação e recusa da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990”. No dia 26 foi o juiz Rui Teixeira, do caso Casa Pia, agora no Tribunal de Torres Vedras, que proibiu o AO nos pareceres judiciais. “Nos tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário.” Lavre-se a acta. Com C, por favor.

[Transcrição integral de texto, da autoria de Nuno Pachecopublicado na “Revista 2”, suplemento do jornal “PÚBLICO” de 02.06.13. “Links” adicionados por nós.]

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4 comentários

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    • Antonio Ferreira on 2 Junho, 2013 at 17:27
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    Obrigado, Nuno Pacheco, pelo fantástico esclarecimento. Você consegue ir ao fundi das coisas… Longe estava eu de ligar “Top Hat” a esta confusão desaxordista… Mas você fe-lo de forma simples e brilhante. Mais uma vez, obrigado. A. Ferreira

    • Maria José Abranches on 2 Junho, 2013 at 18:01
    • Responder

    Excelente! Uma delícia! E que prazer ouvir esse belíssimo dueto!

  1. Uma maravilha e uma farpa bem metida na cornadura do AO90. Obrigado Nuno Pacheco, por nos relembrar esse esplendoroso musical dos anos ’30.

  2. Texto divertido e importante, este de Nuno Pacheco. A ironia pode ser uma arma preciosa contra o malcheiroso AO. Os portugueses têm sentido de humor (e uma imaginação fértil no que toca a anedotas) e esta é uma via que poderá ser seguida. Como diz um médico meu amigo – que se recusa a escrever Ereção – uma erecção assim é algo incompleto, é fraqueza, é moleza… é pila de ministro!

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