Enriquecimento pela divergência [por Isabel Coutinho Monteiro]

PTBRsightseeingLíngua Portuguesa – enriquecimento pela divergência

 A propósito da tão falada e já estafada unificação da ortografia da Língua Portuguesa, é pertinente interrogarmo-nos até que ponto o sacrifício das culturas reflectidas nas duas principais normas da língua permite concretizar o alegado objectivo de unidade linguística nas organizações e fóruns internacionais. Todos os dias deparamos com o uso da expressão “pesquisa”, quando um cidadão brasileiro diz, por exemplo, “vou fazer uma pesquisa na Internet”, enquanto nós, portugueses, dizemos “vou fazer uma busca na Internet”. No Brasil, muitas universidades e empresas têm um departamento de “P&D” (Pesquisa e Desenvolvimento), homólogo da mesma realidade em Portugal – I&D (Investigação e Desenvolvimento). Se no primeiro caso não se coloca a questão da unidade linguística no plano internacional, já o segundo leva a pensar que, numa qualquer conferência internacional sobre determinada área científica, em que estejam presentes oradores de Portugal e do Brasil, essa unidade começa a estar comprometida. Ou talvez não. Alguém já ouviu dizer que tenha havido numa conferência internacional uma zaragata vergonhosa entre oradores dos dois países a propósito desta divergência terminológica? Eu não, e o mais provável é que nunca tenha acontecido. Os oradores dos dois lados do Atlântico aceitam quase sem darem por isso o termo divergente usado pelos seus homólogos do outro lado. E as conferências prosseguem sem grandes sobressaltos e com efusivas manifestações de agrado de ambas as partes. Continuando no plano internacional, supostamente, a Língua Portuguesa tende a desaparecer se não operar rapidamente a tal unificação da ortografia. Como explicar, então, que os dois países usem terminologias divergentes ao aderirem a resoluções e declarações de organismos internacionais, como a OIT, por exemplo, de que tanto Portugal como o Brasil são Estados-Membros e adoptaram a Agenda do Trabalho Digno, no primeiro caso, mas do Trabalho Decente, no segundo? De facto, em Portugal não faria muito sentido falar de “trabalho decente” sem se correr o risco de interpretações brejeiras e até ofensivas. De resto, o Decent Work mais não é do que uma forma de garantir uma vida digna aos trabalhadores. Imaginemos agora uma Conferência da OIT em que, mais uma vez, estivessem presentes oradores portugueses e brasileiros, o que realmente acontece com alguma frequência. Alguém desvalorizou as prestações de um ou do outro lado pelo facto de usarem termos divergentes? Que eu saiba, não! E os exemplos de divergências terminológicas em eventos internacionais sucedem-se, a começar pela designação que cada um dos países dá a determinada convenção que ratifica. Que se saiba, isso nunca impediu Portugal ou o Brasil de marcarem presença nas conferências das Nações Unidas e das suas agências especializadas. Ora, se até agora as divergências terminológicas não comprometeram e, aparentemente, não ameaçam vir a comprometer os contributos que os dois países têm a dar em tais fóruns, ilustrando com as suas divergências uma riqueza cultural fundada na diversidade geográfica da Língua Portuguesa, porque virá a ortografia a determinar o seu desaparecimento da cena internacional? Esta questão já foi colocada demasiadas vezes para que os defensores do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 continuem a ignorar que têm de vir a terreiro expor, decentemente, as verdadeiras razões subjacentes à teimosia em impor um acordo que nada resolve, mas tem gerado antagonismos que anteriormente não existiam. Isabel Coutinho Monteiro

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